Tentei caprichar na última caminhada pelo meu antigo trajeto. Espero na vida ainda fazer muitas caminhadas, mas nunca mais será pelo mesmo trajeto pois vendemos a casa, o ponto de origem das saídas. Era um sábado de sol, até rareado em nosso nublado município, e procurei o centro da cidade, como de costume. Havia pouca presença de pessoas nas ruas, muitas cortinas de ferro baixadas até o nível da calçada. Os cães ainda não haviam levado seus donos para passear, como de hábito fazem aos fins de tarde. Avancei muitas quadras, na linha reta que nossa geografia permite.
Um ponto que me chamou atenção foi em frente ao albergue municipal. Um desolado estava sentado ao meio fio, meio cabisbaixo, para caracterizá-lo desolado. Outro, alto, bastante magro, como se um vento pudesse envergá-lo, saiu de dentro do prédio de entranhas a nós misteriosas. Ele trazia uma marmita e oferecia ao colega, que não consegui, na passagem de minha trajetória, identificar se aceitava, se iria comer, se declinava do convite, se refutava a bóia. Joguei meu olhar para um destino mais distante. Em frente ao albergue, para quem não sabe, localiza-se um dos hospitais da cidade. Lembrei da internação de minha mãe, quando eu justamente conseguia um emprego de verba importante, até para minha confiança profissional e cotidiana. Porém, minha mãe havia passado por delicado procedimento renal na mesma época, o que amansava qualquer sentimento positivo e, mais do que isso, nos preenchia de total preocupação na maioria das horas sóbrias.
Enderecei meu olhar para o maior alcance possível, para dentro daquele conjunto arquitetônico de janelas, que ameaçavam mostrar, mas não permitiam saber-se quem se ocultava para dentro do colosso hospitalar. Uma pessoa em pé também refletia no mesmo exercício, procurava acompanhar o movimento transeunte e dos raros carros pela via. Perguntava a supostos seres superiores sobre os porquês dessa vivência, procurava um modo de passatempo, cansada da programação de televisão aberta disponível, queria aproveitar a vista alta porque morava em uma casa, queria se sentir em casa pela vista alta porque morava em um apartamento, queria desviar o olhar da cena talvez bucólica e deprimente do quadro clínico na cama próxima, queria encontrar uma resposta da qual não tinha, na esperança que o próprio reflexo no vidro ou que a minha passagem, caminhando levemente curvado de fones brancos aos ouvidos, trouxesse. Espero ter ajudado.
Segui me ajudando ao procurar meu caminho pelas bandas da zona norte, região que acho feia pelo seu complexo de engenhos, mais ou menos abandonados, necessitados de pintura, manutenção, limpeza. Pichações ininteligíveis, uma escola em que minha avó trabalhou atirada às traças, da mesma forma que um prédio administrativo recentemente utilizado pela prefeitura. Prédios de funções cruciais no século passado ou em temporadas recém passadas. Restaurantes que trocaram de nome. Uma família na praça que bifurcava a rua logo adiante. Somente eles no banco do parque. Um casal, pelo que me recordo e uma criança a rodopiar, pequeno primata sobre sua bicicleta, procurando diversão enquanto os adultos apenas desfaziam o laço do enfado de qualquer fim de semana à tarde. A criança que pouco difere da presença ou ausência desses dias e quando se dá por conta caminha a esmo por sua terra natal. O adulto que sabe que sábado é folga e obrigação de aproveito, mas como fazê-lo? A criança sabe como agir e rodopia entortando o guidão da bicicleta, manuseando-o ora para um lado, ora para outro. Os ultrapasso. Encontro calçadas tão estreitas que preciso flertar com a ideia do meio da rua, contra os perigos dos carros em sentido contrário. Eu os vejo antes de me verem. Nenhum problema em desviarmos levemente o percurso.
Da calçada estreita, reparo em um conjunto de degraus que não bem representam uma escada, mas levam para um prédio de pequeno comércio, armazém ou farmácia - como são comuns por aqui as farmácias - para onde na vidraça em vitrine anunciam o jornal descontraído para quem se descontrai Diário Gaúcho. Meu amigo me informou outro dia quando ali passávamos que naquela escadaria haviam matado um ex-menino e agora ex-adulto que estudava conosco na mesma escola. Declinado ao tráfico de drogas teve o triste fim por encomenda bem cumprida através dos disparos que viraram anúncio na página dos nossos Diários Gaúchos locais, em foto do corpo estirado circulada por alguns meios virtuais - possivelmente, porque a mim não me interessaria ver.
Contorno essa calçada e prefiro investir pelo contorno da zona norte em shopping que só lembro tê-lo adentrado em distante infância. Prédio branco de arquitetura duvidosa e amplo estacionamento, por onde alguns gradeados condôminos olham para o exterior de suas vidas no espaço urbano. Eu contorno a rua e sigo em frente, ao esmo meio planejado de meus movimentos. Pelos condomínios observo e sou observado por vidas que há muito tempo habitam por aquelas bandas. São pessoas que curvaram o dorso mais do que hoje erroneamente me curvo. São cabelos que branquearam ou caíram, são casais que se criaram ou se desfizeram, são mortes que os separaram ou a plena vontade garantida pelas assinaturas em ata de divórcio. São casais recontratados, são novas e velhas uniões, são bodas das mais diversas cores. São gente junta com filhos distantes. São gente junta, com o filho ao lado esperando alguma ordem serviçal de busca ou entrega. São amigos que se ajuntam para curtir o solzinho no que no Rio Grande do Sul se ponderou em comum acordo chamar de lagartear e o dia estava propício para tal atividade preguiçosa.
Enquanto escrevo essa breve passagem, meu maior exemplo próximo, meus pais discutem os hábitos dos vizinhos que se interferem em nossa vida através dos ruídos que descubro próprios dos apartamentos, que muito afetam a ordem natural do desenrolar de meus pensamentos. Quase me misturo à discussão, mas prefiro continuar debruçado sobre minhas linhas. Onde eu estava? A zona norte. Os casais idosos. Os amigos de longa data. Os passos retesados, tensos, diminutos, calculados no anti-quedas. A oposição jovial a cruzar o caminho, de passos incertos, arrogantes, incalculáveis, inimigos da matemática mortal que sombreia a vida. Arrogantes por ignorarem o fim que a todos nós aguarda. Caminham determinados com o mate, com a cuia, com a certeza de mal de alguém falarem, de se atualizarem por seus smartphones. Visualmente namoro vultos, acompanho passos, ao mesmo tempo ciente de que não devo exagerar-me nas perseguições visuais, evito chamar a atenção quaisquer que seja e prefiro o trotar a esmo que volto a repetir como objetivo e finalidade. Abandono as visões mais ou menos agradáveis, me dirijo a outras, gosto da inconstância, gosto da improbabilidade, da probabilidade, da surpresa do que vou encontrar pela frente.
Passo por um par de charretes, comuns a nosso município, incomuns para o corretor ortográfico que aqui grifa em vermelho como se, assim como é para muitos, elas não existissem. Acompanho de revesgueio seus movimentos para dentro dos descartes alheios, o manuseio, na seleção, o subir e o descer do veículo, com a esperança que vem e que vai, como ondas. Não se comunicaram entre eles e nem eles comigo. Segui minha viagem. Reencontrei duas moças com as quais havia cruzado caminho mais cedo. Não entendi para onde iriam, já que a avenida de destino jovem era para o outro lado. Me dirigi para lá, passando dessa vez por guaritas de segurança para um trecho de bairro serpenteado por casas mais altas e subsidiadas. As guaritas correspondiam ao pouso/local de trabalho de porteiros e seguranças particulares contratados. Desafiavam o tédio com o gosto amargo do café, com palavras-cruzadas ou simplesmente procurando algum dorso para onde pousar os olhos.
Mais adiante, enquanto caminho entre as maiores casas do bairro, com garagens amplas e muros que escondem momentos alegres em churrascos ou tristes apesar dos dinheiros, me aproximo da avenida de maior público e passam por mim uma família de ciclistas: duas mulheres e duas crianças. Penso na minha incompetência para desbravar os mesmos movimentos sobre duas rodas. Sigo caminhando até perpendicularmente ultrapassar a avenida movimentada em direção a uma recordista de imóveis à venda, local onde os jovens gostam de disputar rachas nas tardes de domingo ou nas noites de qualquer dia. Me surpreende e surpreende a vários motoristas um desavisado na contramão, recebendo a saraivada de buzinas para que guiasse pelo rumo correto. Ele consegue um desvio para a rua lateral, onde some de minha vista. Apresento a dúvida constante entre o sol quente ou a sombra a esfriar no resfolegar do fim de tarde. A parede frontal do clube de tênis projeta uma imensa sombra até o asfalto da rua. As árvores altas que ornamentam a agremiação terminam o serviço de encobrir o sol. Não gosto de caminhar por entre os demais andarilhos e corredores, na via central, disputando espaço também com bicicletas. Prefiro a calçada mais distante dos holofotes crossfiteiros. Gosto de observar se há algum jogo de futebol rolando em um campo em que muitas vezes frequentei na infância.
Acho interessante quem diga que a algum lugar muitas vezes foi, sendo que não foi. Ao passo que por mais que tenha ido dezenas de vezes ali, ponho em dúvida se digo que fui frequentador. Mas fui, bastante joguei bola naquele campo da via central de traves inclinadas para trás, desde a construção ou sabe-se lá qual efeito do solo ou do entortar por forças humanas. Alguns batem bola, me questiono porque não jogam juntos, recordo da máscara em meu rosto, desgraçada pandemia e encontro assim a resposta. Melhor que cada grupinho jogue somente com os seus - quando vê nem deveriam jogar. Observo, também não quero chamar atenção, assim como também passo pelas pracinhas e tento adivinhar do quê as crianças brincam, se diferente ou semelhante aos meus passos de infância. Raramente entendo. E quem as entende passados tantos anos? Mais me afasto desse conhecimento tão importante enquanto me estendo por outras áreas que para o quê servem?
Transferido de calçada, rumo à direção onde bate sol, ainda encontro uma outra família que me chama atenção. Após a mãe passar com o pensamento desvirtuado e distante, segue-se a ela a dupla de crianças. Um irmão mais velho empurrando sua menor versão, uma menina dentro de um carrinho assim projetado para crianças. Ele tem um determinado semblante de insatisfação, pois, tão pouca idade, de certo gostaria que alguém o empurrasse. Os irmãos mais velhos cedo lidam com essas tarefas. Novamente frisando, a mãe adiante na calçada e o par de pequenos dando seu jeito de acompanhar os maiores e mais separados passos da progenitora. O olhar emburrado do menino gordinho ficou-me na mente. A menina, ignorando a empatia ao mano, sorria divertindo-se.
Tentei um olhar complacente ao menino que trabalhava na ingrata missão de carregador, mas não sei afirmar se ele compreendeu. Talvez mais adiante compreenda, se assim se deparar com essa reproduzida cena, conforme o passar das gerações. Para os últimos passos, regressei para minha zona de sempre, o supermercado abandonado por onde lacraram as paredes e, mesmo assim, pela fachada alguns montam acampamento nesses caóticos tempos de pouca política governamental de acolhimento e renda de susbsistência - milhões de desempregados. Pelo cenário das pichações e tendo como vista de seus barracões improvisados o pátio acimentado de onde havia o ir e vir dos carrinhos de super. Logo adiante, nem 50 metros, uma padaria com drive thru, novidade pandêmica, contrasta os pontos do retrocesso e do avanço, do que fechou e do que abre, de quem se alimenta e quem precisa lutar arduamente por algo tão básico. Um pouco mais adiante, me deparo que há o conjunto colossal arquitetônico de prédios dos mais altos de nossa cidade, por onde dizem viver muitos dos jogadores do Grêmio Esportivo Brasil. Grande obra em condomínio de gramas naturais e artificiais, salões de festa, portaria e outras exclusividades que excluem a nós passeadores de calçadas.
Mais adiante e mais condomínios, os mais velhos apelidados de Rua Brasil e mais adiante os novos blocos de prédios que erguem-se em velocidade absurda, mudando o cenário, o horizonte, a vista ao céu e tudo o mais do que me era familiar de bairro Areal - e já não o é. O posto de gasolina, a entrada para a rua em terra muito em breve asfaltada como nunca havia sido, meus pais que haviam morado ali três décadas atrás. Abandonam o bairro e agora a rua recebe a camada asfáltica. Típica para aplicar a Murphy. Pelos paralelepípedos distorcidos das últimas quadras, visualizo o senhor que sempre está parado ali com o rosto de olhar vidrado, que eu sempre tento cumprimentar; ele quase não se mexe, mas responde afirmativamente à minha tentativa. Todas as vezes é engraçado e ao mesmo tempo desconfortável e assustador. Tem obra na esquina, um parente meu distante e entrando para a idade idosa toca a massa obreira junto com jovens do sistema braçal, apoiando-se em empregos do que há disponível para fazerem. Costado de outro conjunto de prédios em rua de esgoto à vista, calçadas que somem e reaparecem, terrenos baldios, mas a maioria construída como bem quis o autor, de simulacros de palacetes a apertadas aproveitações de terreno. Chego a meu destino final, no fim do final da quadra, para meus últimos momentos em hoje, passados 14 dias, apenas sonhado bairro no invólucro sútil de minha mente.
Fim de papo.