30 de julho de 2021

A última caminhada

Tentei caprichar na última caminhada pelo meu antigo trajeto. Espero na vida ainda fazer muitas caminhadas, mas nunca mais será pelo mesmo trajeto pois vendemos a casa, o ponto de origem das saídas. Era um sábado de sol, até rareado em nosso nublado município, e procurei o centro da cidade, como de costume. Havia pouca presença de pessoas nas ruas, muitas cortinas de ferro baixadas até o nível da calçada. Os cães ainda não haviam levado seus donos para passear, como de hábito fazem aos fins de tarde. Avancei muitas quadras, na linha reta que nossa geografia permite.

Um ponto que me chamou atenção foi em frente ao albergue municipal. Um desolado estava sentado ao meio fio, meio cabisbaixo, para caracterizá-lo desolado. Outro, alto, bastante magro, como se um vento pudesse envergá-lo, saiu de dentro do prédio de entranhas a nós misteriosas. Ele trazia uma marmita e oferecia ao colega, que não consegui, na passagem de minha trajetória, identificar se aceitava, se iria comer, se declinava do convite, se refutava a bóia. Joguei meu olhar para um destino mais distante. Em frente ao albergue, para quem não sabe, localiza-se um dos hospitais da cidade. Lembrei da internação de minha mãe, quando eu justamente conseguia um emprego de verba importante, até para minha confiança profissional e cotidiana. Porém, minha mãe havia passado por delicado procedimento renal na mesma época, o que amansava qualquer sentimento positivo e, mais do que isso, nos preenchia de total preocupação na maioria das horas sóbrias.

Enderecei meu olhar para o maior alcance possível, para dentro daquele conjunto arquitetônico de janelas, que ameaçavam mostrar, mas não permitiam saber-se quem se ocultava para dentro do colosso hospitalar. Uma pessoa em pé também refletia no mesmo exercício, procurava acompanhar o movimento transeunte e dos raros carros pela via. Perguntava a supostos seres superiores sobre os porquês dessa vivência, procurava um modo de passatempo, cansada da programação de televisão aberta disponível, queria aproveitar a vista alta porque morava em uma casa, queria se sentir em casa pela vista alta porque morava em um apartamento, queria desviar o olhar da cena talvez bucólica e deprimente do quadro clínico na cama próxima, queria encontrar uma resposta da qual não tinha, na esperança que o próprio reflexo no vidro ou que a minha passagem, caminhando levemente curvado de fones brancos aos ouvidos, trouxesse. Espero ter ajudado.

Segui me ajudando ao procurar meu caminho pelas bandas da zona norte, região que acho feia pelo seu complexo de engenhos, mais ou menos abandonados, necessitados de pintura, manutenção, limpeza. Pichações ininteligíveis, uma escola em que minha avó trabalhou atirada às traças, da mesma forma que um prédio administrativo recentemente utilizado pela prefeitura. Prédios de funções cruciais no século passado ou em temporadas recém passadas. Restaurantes que trocaram de nome. Uma família na praça que bifurcava a rua logo adiante. Somente eles no banco do parque. Um casal, pelo que me recordo e uma criança a rodopiar, pequeno primata sobre sua bicicleta, procurando diversão enquanto os adultos apenas desfaziam o laço do enfado de qualquer fim de semana à tarde. A criança que pouco difere da presença ou ausência desses dias e quando se dá por conta caminha a esmo por sua terra natal. O adulto que sabe que sábado é folga e obrigação de aproveito, mas como fazê-lo? A criança sabe como agir e rodopia entortando o guidão da bicicleta, manuseando-o ora para um lado, ora para outro. Os ultrapasso. Encontro calçadas tão estreitas que preciso flertar com a ideia do meio da rua, contra os perigos dos carros em sentido contrário. Eu os vejo antes de me verem. Nenhum problema em desviarmos levemente o percurso.

Da calçada estreita, reparo em um conjunto de degraus que não bem representam uma escada, mas levam para um prédio de pequeno comércio, armazém ou farmácia - como são comuns por aqui as farmácias - para onde na vidraça em vitrine anunciam o jornal descontraído para quem se descontrai Diário Gaúcho. Meu amigo me informou outro dia quando ali passávamos que naquela escadaria haviam matado um ex-menino e agora ex-adulto que estudava conosco na mesma escola. Declinado ao tráfico de drogas teve o triste fim por encomenda bem cumprida através dos disparos que viraram anúncio na página dos nossos Diários Gaúchos locais, em foto do corpo estirado circulada por alguns meios virtuais - possivelmente, porque a mim não me interessaria ver.

Contorno essa calçada e prefiro investir pelo contorno da zona norte em shopping que só lembro tê-lo adentrado em distante infância. Prédio branco de arquitetura duvidosa e amplo estacionamento, por onde alguns gradeados condôminos olham para o exterior de suas vidas no espaço urbano. Eu contorno a rua e sigo em frente, ao esmo meio planejado de meus movimentos. Pelos condomínios observo e sou observado por vidas que há muito tempo habitam por aquelas bandas. São pessoas que curvaram o dorso mais do que hoje erroneamente me curvo. São cabelos que branquearam ou caíram, são casais que se criaram ou se desfizeram, são mortes que os separaram ou a plena vontade garantida pelas assinaturas em ata de divórcio. São casais recontratados, são novas e velhas uniões, são bodas das mais diversas cores. São gente junta com filhos distantes. São gente junta, com o filho ao lado esperando alguma ordem serviçal de busca ou entrega. São amigos que se ajuntam para curtir o solzinho no que no Rio Grande do Sul se ponderou em comum acordo chamar de lagartear e o dia estava propício para tal atividade preguiçosa.

Enquanto escrevo essa breve passagem, meu maior exemplo próximo, meus pais discutem os hábitos dos vizinhos que se interferem em nossa vida através dos ruídos que descubro próprios dos apartamentos, que muito afetam a ordem natural do desenrolar de meus pensamentos. Quase me misturo à discussão, mas prefiro continuar debruçado sobre minhas linhas. Onde eu estava? A zona norte. Os casais idosos. Os amigos de longa data. Os passos retesados, tensos, diminutos, calculados no anti-quedas. A oposição jovial a cruzar o caminho, de passos incertos, arrogantes, incalculáveis, inimigos da matemática mortal que sombreia a vida. Arrogantes por ignorarem o fim que a todos nós aguarda. Caminham determinados com o mate, com a cuia, com a certeza de mal de alguém falarem, de se atualizarem por seus smartphones. Visualmente namoro vultos, acompanho passos, ao mesmo tempo ciente de que não devo exagerar-me nas perseguições visuais, evito chamar a atenção quaisquer que seja e prefiro o trotar a esmo que volto a repetir como objetivo e finalidade. Abandono as visões mais ou menos agradáveis, me dirijo a outras, gosto da inconstância, gosto da improbabilidade, da probabilidade, da surpresa do que vou encontrar pela frente.

Passo por um par de charretes, comuns a nosso município, incomuns para o corretor ortográfico que aqui grifa em vermelho como se, assim como é para muitos, elas não existissem. Acompanho de revesgueio seus movimentos para dentro dos descartes alheios, o manuseio, na seleção, o subir e o descer do veículo, com a esperança que vem e que vai, como ondas. Não se comunicaram entre eles e nem eles comigo. Segui minha viagem. Reencontrei duas moças com as quais havia cruzado caminho mais cedo. Não entendi para onde iriam, já que a avenida de destino jovem era para o outro lado. Me dirigi para lá, passando dessa vez por guaritas de segurança para um trecho de bairro serpenteado por casas mais altas e subsidiadas. As guaritas correspondiam ao pouso/local de trabalho de porteiros e seguranças particulares contratados. Desafiavam o tédio com o gosto amargo do café, com palavras-cruzadas ou simplesmente procurando algum dorso para onde pousar os olhos.

Mais adiante, enquanto caminho entre as maiores casas do bairro, com garagens amplas e muros que escondem momentos alegres em churrascos ou tristes apesar dos dinheiros, me aproximo da avenida de maior público e passam por mim uma família de ciclistas: duas mulheres e duas crianças. Penso na minha incompetência para desbravar os mesmos movimentos sobre duas rodas. Sigo caminhando até perpendicularmente ultrapassar a avenida movimentada em direção a uma recordista de imóveis à venda, local onde os jovens gostam de disputar rachas nas tardes de domingo ou nas noites de qualquer dia. Me surpreende e surpreende a vários motoristas um desavisado na contramão, recebendo a saraivada de buzinas para que guiasse pelo rumo correto. Ele consegue um desvio para a rua lateral, onde some de minha vista. Apresento a dúvida constante entre o sol quente ou a sombra a esfriar no resfolegar do fim de tarde. A parede frontal do clube de tênis projeta uma imensa sombra até o asfalto da rua. As árvores altas que ornamentam a agremiação terminam o serviço de encobrir o sol. Não gosto de caminhar por entre os demais andarilhos e corredores, na via central, disputando espaço também com bicicletas. Prefiro a calçada mais distante dos holofotes crossfiteiros. Gosto de observar se há algum jogo de futebol rolando em um campo em que muitas vezes frequentei na infância.

Acho interessante quem diga que a algum lugar muitas vezes foi, sendo que não foi. Ao passo que por mais que tenha ido dezenas de vezes ali, ponho em dúvida se digo que fui frequentador. Mas fui, bastante joguei bola naquele campo da via central de traves inclinadas para trás, desde a construção ou sabe-se lá qual efeito do solo ou do entortar por forças humanas. Alguns batem bola, me questiono porque não jogam juntos, recordo da máscara em meu rosto, desgraçada pandemia e encontro assim a resposta. Melhor que cada grupinho jogue somente com os seus - quando vê nem deveriam jogar. Observo, também não quero chamar atenção, assim como também passo pelas pracinhas e tento adivinhar do quê as crianças brincam, se diferente ou semelhante aos meus passos de infância. Raramente entendo. E quem as entende passados tantos anos? Mais me afasto desse conhecimento tão importante enquanto me estendo por outras áreas que para o quê servem?

Transferido de calçada, rumo à direção onde bate sol, ainda encontro uma outra família que me chama atenção. Após a mãe passar com o pensamento desvirtuado e distante, segue-se a ela a dupla de crianças. Um irmão mais velho empurrando sua menor versão, uma menina dentro de um carrinho assim projetado para crianças. Ele tem um determinado semblante de insatisfação, pois, tão pouca idade, de certo gostaria que alguém o empurrasse. Os irmãos mais velhos cedo lidam com essas tarefas. Novamente frisando, a mãe adiante na calçada e o par de pequenos dando seu jeito de acompanhar os maiores e mais separados passos da progenitora. O olhar emburrado do menino gordinho ficou-me na mente. A menina, ignorando a empatia ao mano, sorria divertindo-se.

Tentei um olhar complacente ao menino que trabalhava na ingrata missão de carregador, mas não sei afirmar se ele compreendeu. Talvez mais adiante compreenda, se assim se deparar com essa reproduzida cena, conforme o passar das gerações. Para os últimos passos, regressei para minha zona de sempre, o supermercado abandonado por onde lacraram as paredes e, mesmo assim, pela fachada alguns montam acampamento nesses caóticos tempos de pouca política governamental de acolhimento e renda de susbsistência - milhões de desempregados. Pelo cenário das pichações e tendo como vista de seus barracões improvisados o pátio acimentado de onde havia o ir e vir dos carrinhos de super. Logo adiante, nem 50 metros, uma padaria com drive thru, novidade pandêmica, contrasta os pontos do retrocesso e do avanço, do que fechou e do que abre, de quem se alimenta e quem precisa lutar arduamente por algo tão básico. Um pouco mais adiante, me deparo que há o conjunto colossal arquitetônico de prédios dos mais altos de nossa cidade, por onde dizem viver muitos dos jogadores do Grêmio Esportivo Brasil. Grande obra em condomínio de gramas naturais e artificiais, salões de festa, portaria e outras exclusividades que excluem a nós passeadores de calçadas.

Mais adiante e mais condomínios, os mais velhos apelidados de Rua Brasil e mais adiante os novos blocos de prédios que erguem-se em velocidade absurda, mudando o cenário, o horizonte, a vista ao céu e tudo o mais do que me era familiar de bairro Areal - e já não o é. O posto de gasolina, a entrada para a rua em terra muito em breve asfaltada como nunca havia sido, meus pais que haviam morado ali três décadas atrás. Abandonam o bairro e agora a rua recebe a camada asfáltica. Típica para aplicar a Murphy. Pelos paralelepípedos distorcidos das últimas quadras, visualizo o senhor que sempre está parado ali com o rosto de olhar vidrado, que eu sempre tento cumprimentar; ele quase não se mexe, mas responde afirmativamente à minha tentativa. Todas as vezes é engraçado e ao mesmo tempo desconfortável e assustador. Tem obra na esquina, um parente meu distante e entrando para a idade idosa toca a massa obreira junto com jovens do sistema braçal, apoiando-se em empregos do que há disponível para fazerem. Costado de outro conjunto de prédios em rua de esgoto à vista, calçadas que somem e reaparecem, terrenos baldios, mas a maioria construída como bem quis o autor, de simulacros de palacetes a apertadas aproveitações de terreno. Chego a meu destino final, no fim do final da quadra, para meus últimos momentos em hoje, passados 14 dias, apenas sonhado bairro no invólucro sútil de minha mente.

Fim de papo.

27 de julho de 2021

Sepultamento

Estou preso no buraco

Do apartamento

É um simulacro

De um sepultamento

Um dia eu vou

Um dia eu vou ter um treco

No outro dia vou ter mais nada

No outro dia eu vou ter um terno

E uma moradia fixada


Um dia eu vou ter um treco

No outro dia vou ter mais nada

No outro dia eu vou ter um terno

E uma moradia fixada


Um dia eu vou ter um treco

No outro dia vou ter mais nada

No outro dia eu vou ter um terno

E uma moradia fixada


Num dia a cabeça cansada

No outro dia eu viro um boneco

Em uma caixa embalada

Em uma parede de cimento


Num dia não se aguenta nada

No outro dia nem se tenta

Para dentro da gaveta

Rumo à outra morada

20 de julho de 2021

Viagem ao Desconhecido - Ana - Capítulo 1

Ana havia estranhado que conhecia nenhum daquelas dezenas de passageiros. Ela já havia feito aquela viagem também dezenas de vezes, entre a região metropolitana e sua pequena cidade, Sertão Santana, ao sul de Porto Alegre, rumo ao Sul do Sul. Viu cada pessoa mecanicamente demonstrar o bilhete ao cobrador, que era um mero assistente do motorista. Ela impulsionou com dificuldade sua mala de rodinhas para o degrau correspondente das entranhas do ônibus. A bagagem de mão colocou a tiracolo e se dirigiu também para o interior da nave. Escolheu um bom lugar, deu-se por conta, nem tão atrás, para perto do banheiro, nem tão para frente, onde sentia-se inoportuna, como se atrapalhasse o trânsito dos transeuntes que embarcariam depois, embora dessa vez ela fosse uma das últimas a subir a bordo.

Deu uma última olhada pela janela que já iniciava o processo de embaçar-se pelo fluxo de respirações daquele diminuto enxame. Diminuto, porque, por conta da pandemia, o número de passageiros era reduzido no local e o acesso era restrito aos portadores de máscara. Ela aproveitou o espaço disponibilizado pela poltrona ao lado e melhor aconchegou-se. Afundada no conforto que lhe era disponível, mergulhou os olhos para o interior de sua mente, mantendo a visão encoberta pelas próprias pálpebras. Antes, verificou se a playlista de seu dispositivo conectado ao aplicativo Spotify estava de acordo com suas vigentes exigências. Estava tudo em ordem.

Ana acordou achando que havia perdido o horário. Sabia que a viagem não era tão longa quanto quando vivia em Rio Grande e o ir e vir da região metropolitana lhe custava mais no dinheiro das passagens e mais horas empobrecidas por escutar somente suas repetitivas canções, vez ou outra alternadas por novas descobertas dos últimos tempos. Sabendo que Sertão Santana não distanciava-se tanto da capital do estado, era possível que houvesse cochilado e perdido a saída. Mas, ao olhar pela aparente normalidade em sua volta, concluiu também que se perdesse a hora de saltar seria notificada pelo mesmo assistente que apoderava-se de seu bilhete no embarque. "Estava tudo em ordem", repetia mentalmente para si mesma, talvez balbuciando o final da sentença com a ponta dos lábios.

Mas uma coisa chamou sua atenção a um par de segundos depois. Mirando em frente, para a poltrona imediatamente dianteira a seu nariz, notou que o nome da empresa era DATA, diferente da que muitas vezes viajou, a DATC. Primeiro sentiu-se delirante pelo efeito sonífero de suas horas de inércia e resolveu contrapor a vontade dos especialistas em tempos pandêmicos (os infectologistas) e passar as costas dos dedos, os nós sobre os olhos. Retirou qualquer princípio de remela que se formaria naquele lapso e correu panoramicamente a vista, em um movimento traveling, como a câmera de um filme rodado em primeira pessoa. Notou o pior, para certificar de que o erro não era o captado pelos olhos: todas as poltronas, mais cerca ou mais longe, informavam que a empresa de transporte que a conduzia a Sertão Santana (ou para onde?) era a DATA.

Em seguida, notando a ainda total apatia e tranquilidade dos demais passageiros mascarados, sem reconhecer um único rosto que lhe fosse comum do cotidiano de pacato município emancipado em 1992, tentou adivinhar as respostas com seus próprios recursos. Trazia consigo um cafona relógio de pulso, que, para sua surpresa, o descobriu travado em um horário muito próximo ao de embarque. Como poderia isso? Em seguida, sacou da bolsa o celular que traria a resposta do horário e outras tantos, tudo isso ao alcance de poucos códigos a serem destrinchados pelos inquietos dedos. Mas, ao tentar a senha para liberar a tela inicial, foi surpreendida com o acesso negado. Tentou novamente. Ora, Ana, acorde logo, está perdendo tempo errando coisas que nunca erra. Um relógio de pulso com problema de bateria, um celular com bateria, olha ali, 93%, mas trancafiado pelo seu eleito esquema de segurança. Tão seguro que agora nem ela conseguia liberá-lo ao uso. "Droga" - exclamou e era possível que seus passageiros vizinhos pudessem ouvi-la a lamuriar.

Um senhor que apenas tentava esconder o bigode proeminente sob a máscara, com um rosto magro que lembraria o de um personagem Mario Bros envelhecido, a observava com um olhar atônito, circundando a barreira do indiscreto, diria-se. Percebeu, como era de costume, a quantidade significativa de população velha no veículo. Estranhou que, pelo tanto que pensava ter dormido, não havia sinal ainda da chegada ao município de Sertão Santana, ela que praticamente decorava cada buraco que o ônibus colidiria na estrada, fazendo balancear-se suas 18 toneladas sobre. Ficou cada vez mais inquieta e passou a tamborilar com os dedos, que lhe restava fazer?

Não queria utilizar o banheiro do veículo, pela pandemia e porque nunca quis, nem em outros tempos, claro que não queria. Mas resolveu ir para lá, dirigir-se aos fundos, 50% da intenção para realmente aliviar-se, fazia tempo não urinava, outros 50% para tentar puxar uma conversa sobre a demora da viagem e descobrir o que estava acontecendo. Trôpega, mas nem tanto, observando que a estrada devia ter sido requalificada desde a última vez que deixara a capital para aqueles rumos, a visitar seus pais, eles já vacinados, ela ainda não. Apoiou levemente a mão somente sobre algumas poltronas, tomando o devido cuidado de encostar em nenhum topo de cabeça, entre aqueles pelos grisalhos do que um dia foram louros, outros plenamente entregues à calvície. 

Não viajava com os óculos para leituras próximas, provavelmente estava estojado para dentro de sua bolsa, que permanecia inerte sobre a poltrona enquanto ela tentava entender aqueles símbolos escritos à porta do banheiro, quando estava interna a ele. Havia um aviso, desses das companhias de transporte sobre o bom uso dos dispositivos e também haviam algumas pichações que desocupados faziam ao fingirem-se de ocupados com as necessidades fisiológicas: jovens. Cada vez mais tonta, criando quase uma poderosa vertigem, deu a descarga, lavou as mãos e começou o caminho inverso ao que fizera. Inclinou-se um pouco, quase de joelhos, distribuindo sua massa para equilibrar-se a algum desavisado solavanco. Queria assim tomar a atenção de uma senhora. Ignorou o distanciamento social em busca de derradeiras respostas.

- Demorando a viagem hoje, né, senhora?!

Nada de resposta. Ela não parecia ouvir direito. Com a noite que caía, o semblante em frente, em riste, queixo levemente arrogante.

- Sabe se falta muito para Sertão Santana? - Insistiu Ana.

A senhora dessa vez se virou, entre o bruscamente da surpresa de alguém falando com ela, que parecia absorta em qualquer pensamento que o valha, e o calmo e sereno de quem não devia satisfações àquela intrometida. Com a boca coberta pela máscara, a senhora não hesitou em enrugar, franzir a testa o máximo que pôde para exprimir seu total desconhecimento sobre o que a desconhecida falava. Não havia modo de se entenderem.

- Desculpe - disse por último Ana, já embrenhando-se pelo corredor rumo ao seu lugar, nem tanto atrás, nem tanto à frente. Arriscou uma olhadela para trás e certificou-se da cena que a vez rubrar por sob a máscara, mas sem que pudesse esconder a transmissão de sua vergonha: a senhora a encarava, aparentemente ainda incrédula pelo encontro repentino.

Ana quase errou os passos, por pouco seus joelhos não conheceram deliberadamente o solo do corredor, precisou apoiar as mãos mais do que gostaria. Para completar o vexame que só ela (e a senhora?) sabia carregar, encostou na careca de um dos vovôs à sua direita. Era um princípio de pesadelo, sem dúvida. Maior ainda tornou-se quando o ônibus, com Ana já recostada, querendo proteger-se de corpo e extremidades todas para dentro das roupas, tal qual uma tartaruga em modo de defesa, na falta de uma terra fértil para o movimento do avestruz, o ônibus guinou em curva à direita, à qual Ana não fazia ideia de qual entrada significava aquele trajeto. Deparou-se ela pela janela que tratava-se de altos e góticos portões de ferro retorcido em bonitas e trevosas formas e pintura. De pronto não sabia se aquela bem retocada pintura a assustava ainda mais no tom brilhoso do negro ou se uma ferrugem tornaria tudo mais decrépito e inacreditável. Uma placa confirmou sua total e horripilante suspeita, aponderando-se de si uma realidade inacreditável: estava ela, pelas formas vistas ao longe, não mais pela leitura embaçada de seus olhos de perto, placas que indicavam que ela estava em algum lugar perdido e oculto pelo leste europeu.

Como sair dali?

19 de julho de 2021

vento na janela

a janela bate com o vento

na constância de um ritmado pêndulo

faz pensar minha decisões vividas

faz pensar as que ainda serão decididas

faz pensar em como todas doem

faz pensar onde elas podem

me levar

o vento sopra na sua inconstância 

me leva daqui aos tempos de criança

às vezes leva embora às vezes traz

minhas ânsias 

às vezes a paz forma com ele aliança

e com vento a janela balança

traz com ela o corvo de alan poe entre outras

lembranças

e se hoje a umidade não a embaça

do corvo e dos tempos restam sobre ela

carcaça 

o vento animado ou só fazendo seu trabalho 

rebatendo-se nos galhos das plantas

traz maior preguiça para quem se levanta

traz a esperança a quem fica deitado

o vento personagem central audível 

de acordo com quem ele contata

bate na murada, na calha e na estátua

bate na escada, nas folhas farfalha

em tabela da janela aos meus ouvidos

trilha sonora dessa hora dos pensares

desconhecidos

se sobrepõe por novos caminhos

entre idos e vindos - trajetos perdidos

entre os achados segundas domingos

e álbuns de fotos há tempos sem carimbos

pelos carinhos há muito acabados

pelos clamores há muito apagados 

pelos amores que já não me desperta

não é possível com esse vento deixarem

janela aberta 

Alma dos Mortos

Se o vento fosse pela alma dos mortos estaria ventando pouco ainda. Pelotas, julho de 2021.

Tento proteger-me dos fins trágicos enquanto observo tantos outros.

17 de julho de 2021

Pá Virada

Não quero buscar tratamento como se eu tivesse que necessariamente ser corrigido como em uma esteira fabril. Quero saber lidar com esse formato de pá virada.

Saber lidar é o bastante. Como lidar é a incógnita, tremenda variante fugitiva, escorregadia por entrededos.

Compondo sóbrio e sábado

Sábado e sóbrio e compondo

Pondo uma palavra após a outra

Pondo uma pedra após a outra

Sobre o poço da tristeza


Compondo sóbrio e sábado

Pondo um dado após o outro

Pondo um fato após o outro

Subindo por inevitáveis escadas


Compondo sábado e sóbrio 

Pondo um imbróglio após o outro

Sobrepondo e sobrepondo

Até que o coração inchado de tantos sábados 

Pareça novo

Pondo para fora

Por mais uns minutos, por mais umas horas

Vislumbrando ao longe aurora 

Como um pequeno ninho: domingo

Mundo Ruim

Será que (só) nós (iniciados) sabemos que o mundo é (tão) ruim (assim) ou apenas nós sentimos o quão ruim ele é? Fato é que para nós ele é péssimo.

Procura-se

Procuro fazer tudo certo. Sei que não vou conseguir, nem que adiantaria caso conseguisse.

O mundo é o todo e nos escapa. 

O melhor foi ontem

Arrumando as mudanças para trocar de casa me dei conta de que o melhor dia sempre será o que já passou, porque a dor do dia também já foi.
O melhor dia sempre será ontem.

Como escritor

Como escritor, sempre pensei em contar as tragédias e não vivê-las.

14 de julho de 2021

Reflexões sobre o filme Salt and Fire

Não se escreve mais sobre as estrelas porque as cidades nem as deixam vê-las.

Aprendi que todos os gestos, ações e palavras podem contagiar os outros e criar memórias que nem fazemos ideia que geramos.

O deserto sempre é autoconhecimento.

Quando não houver mais para onde ir, para onde vamos?

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"A Verdade é a filha única do Tempo"

9 de julho de 2021

nouvelle vague

eu queria viver contigo uma nouvelle vague
eu queria estar contigo até que o dia acabe
eu queria escrever contigo algo que ninguém apague
eu queria viver contigo uma nouvelle vague

eu queria viver contigo um filme francês
eu queria estar contigo até que acabe o mês
eu queria começar contigo no era uma vez
contigo eu quero terminar com toda a lucidez

eu queria viver contigo uma nouvelle vague
eu queria viver contigo algo que ninguém pague
eu queria abrir contigo portas que ninguém abre
solucionar, solucionar contigo coisas que ninguém salve
compartilhar, compartir contigo coisas que ninguém sabe
e alternar e viver contigo mesmo em outra vibe

arquitetar contra o inimigo um plano de maldade
e fugir, se esconder contigo em um esconderijo
e na fuga revezar contigo, tu dirige, eu dirijo
acabar em qualquer lugar, teu olhar como abrigo

eu queria viver contigo uma nouvelle vague
acabei escrevendo uma música pela metade

despluga que acabou

2 de julho de 2021

Tomar um Veneno

Agora eu vou tomar um veneno
Por aqueles dinheiros
Por aqueles sentimentos
Por todos aqueles que estou devendo

Saúde para todos!
Todos menos pra mim
Benção para o povo
Que chegou o meu fim

Agora eu vou tomar um veneno
Uma pena que disso tudo eu desconheço
Se me perguntar, não sei qual recomendo
Pode ser indolor, pode ter mais dor
Essa diferença é o de menos

Pois agora eu vou tomar um veneno
Por aqueles do poder
Por aqueles que almejam
Por todos aqueles que estão vivendo

E um viva para todos!
Todos menos eu
Do mais velho ao mais novo
Praquele que nem nasceu
Deixo aqui meu 'boa sorte'
Que hoje vou aos braços da morte

Agora eu vou tomar um veneno
Qualquer nome que soe esloveno
Qualquer nome que soe eslovaco
Pode chamar que agora só tem vácuo
E procurar meu CPF cancelado

A Última Dose

Agora eu quero ter um final trágico
Por incrível que pareça é muito mais fácil
Do que os momentos que são mágicos
E chegaria tão rápido e tão ágil
Quando se dá conta já partiu

Agora eu quero ter um trágico final
Por óbvio que é muito mais fácil
De rimar
Coloca qualquer coisa legal
Que você não vai decepcionar

Agora eu quero um laço transparente
Que me enforque que me deixe
Sorridente
Um laço apertado com dois nós
Eu não aguento nem mais eu

Não vai ser a primeira pessoa
Que vai se acabar nem tão à toa
Também logo não vai ser a última
Que chegou à essa máxima culpa

Agora eu quero ter um final trágico
Por incrível que pareça é muito mais fácil
Do que os momentos que são mágicos
E chegaria tão rápido e tão ágil
Quando se dá conta já partiu

Agora eu vou beber a última dose
No obituário chamada de overdose
Espero que alguém que se preze
Seja quem escreve sobre essa morte