30 de maio de 2017

Heróis imaginários

Uma pessoa emite quatro opiniões, teorias, teses, pontos, ideias, enfim. Eu concordo com três. Devo julgá-la pela que considero errada, preconceituosa ou equivocada E ignorar as outras três? "Não, essa ideia não porque veio daquele que falou aquela asneira." Somos autocríticos para realmente ouvirmos o que os outros dizem ou para ouvirmos o que nós mesmos dizemos? Realmente damos espaço às desculpas ou ao aprendizado? Procuramos a perfeição? Procuramos heróis? Ou procuramos aprendizado e evolução? Casos e casos. Questionamentos, meus caros.
Foto que ilustra o texto "A (des)construção do Herói", de Luiza Drummond.

14 de maio de 2017

Spike Lee on Rio de Janeiro

Foto: Henrique König


Estava no Rio de Janeiro, não havia dúvida. Mais uma aventura por lá. No dia anterior ao grande envolvimento, tinha um passeio por algum morro, não habitado como nas favelas, mas um morro ainda de vegetação e no qual se poderia escalar. Quase me ocorre um acidente, mas passo bem.

No dia seguinte, converso com Clara, minha amiga do bairro de Botafogo. Após uma conversa virtual, ela me oferece chocolate e não tenho como recusar. Estou na casa dela. Limpo o chocolate dos cantos de minha boca em sua roupa. Estou lá sobre o pretexto de um trabalho, de estudo. A família dela interfere, parece circular próxima ao quarto.

A envolvo em meus braços, ela aceita. Mas em seguida seus familiares parecem perceber essa movimentação e justamente se postam a atrapalhar. Ela mesmo parecia constrangida um pouco com a situação e eu não lembrava se ela havia terminado com aquele músico. Mas continuamos a missão do trabalho de estudos. Meio por obrigação, meio como desculpa para nosso encontro. A mãe dela estava na casa, o irmão é mais velho e parece-me um pai ou padrasto com uma muleta, que chega em casa e vai com dificuldades até o quarto deles descansar.

Clara tem uma coleção de dinossauros de brinquedo, verdadeiras miniaturas, pois caberiam uns quatro na palma de cada mão. O irmão dela surgiu ao quarto e derrubou uma caixa, espalhando exemplares para baixo da cama. Meio constrangido por talvez eu estar atrapalhando a rotina familiar, me disponho a juntar, digo a ele que não tem problema. Ele se desculpa pelo atabalhoamento, meio sem querer querendo. Juntamos e colocamos de volta na caixa. Percebo que ele e Clara possuem um método específico de colocar, todos enfileirados, legitimamente ajeitados nas caixas de sapato. Eu apenas os juntava e atirava para dentro mas, percebendo a ação deles, começo a enfileirar da maneira que julgavam correto. O trabalho nos exige minutos e concentração mental e física para enfileirar aquelas centenas de animaizinhos. Quase me arrependo de ter topado o encontro.

Em algum momento, começo fortemente a desconfiar de seus familiares. Já insinuo que nada mais consigo de objetivos paralelos, mas a desconfiança aumenta com as interrupções e entradas deles ao quarto para convite a lanche ou perguntas banais. O ápice da desconfiança surge quando percebo que o pai ou padrasto dela não estava com a perna engessada e de muletas. Com a perna sobre a cama no quarto de frente ao de Clara, uma voz de um narrador me aponta que ele ainda utiliza um modelo de chuteira que se assemelha ao gesso para ficar disfarçada. Ele primeiro pede para restringir os meus movimentos, como se estranhamente eu fosse o aleijado do momento. Então, ele percebe minha desconfiança e parte em ação. Até começa a cambalear fingindo, mas para não me deixar escapar começa a caminhar mais firme.

Até agora não sei qual foi o papel de Clara nisso tudo, mas realmente parecia não saber dos acontecimentos que se seguiriam. Ela me ajuda a encontrar a porta de saída do apartamento. Mal nos despedimos, mas, ao menos naquela hora, esteve do meu lado para facilitar a fuga de seu familiar. Ele me persegue pelas escadarias daquele prédio de paredes brancas. É como uma obra de outro século com suas escadas em caracol, embora moderno. Consigo correr rapidamente e vê-lo somente lances de escada atrás. Chego a me lançar de um andar ao outro e incrivelmente não me machuco como se tivesse habilidades de parkour.

Em um determinado andar que ainda me parece bastante alto, todos travamos. Há outros jovens no local. Há um banheiro logo em frente na continuação das escadas. Um banheiro limpo, igualmente ladrilhado e esbranquiçado como os demais andares. Era uma boa tentativa de esconderijo do maníaco que me perseguia. Há também como se uma lan house ou algumas pessoas mexendo em computador no mesmo andar, alguns metros à esquerda da entrada dos banheiros. Todos ficam hipnotizados ou perplexos. Mais do que isso! Ficam horrorizados pelas cenas que seguem. Há como um sistema para hackear sites e a internet fica poluída de cenas de tortura a jovens, pedofilia e violência sexual. O momento de maior tensão ocorre quando percebo que algumas das jovens que estavam horrorizadas na saída do banheiro estão sendo gravadas no monitor: tudo ocorrendo muito próximo a mim. No mesmo prédio. No mesmo andar. Na mesma sala.

Fico paralisado de medo. É uma grande operação que toma conta da internet, expõe imagens para o mundo todo e tortura jovens de diferentes formas. Na primeira vez que olhei a sala ali na frente, eram quatro jovens sentadas e amarradas. Voltei meu olhar aos monitores dos demais paralisados e quando torno a olhar para sala, são mais jovens. Um encapuzado comanda as ações contra os adolescentes imobilizados.

Percebo que minha caçada não havia terminado e tenho que voltar a fugir e relatar às autoridades. Um flashback surge em minha mente e associo diretamente o familiar de Clara como um dos responsáveis, talvez o chefe da grande operação, da grande quadrilha, da ação desses hackers que vendem essas imagens torturantes para movimentar dinheiro. Mais do que isso, propinam pessoas para silenciar as manobras e continuar com essa grande rede, que atravessa a deep web para figurar e ingressar na internet mais conhecida. Essa rede criminosa que recolhe jovens para seus planos malignos. Meu quase acidente no dia anterior na escalada do morro pode ter sido uma manobra para me silenciar. Mas pelas descobertas feitas e pela situação que já envolvia milhares (talvez milhões!) de reais e a vida de tantas pessoas, precisava prosseguir e fazer a coisa certa, custe o que custasse.

Eu estava sendo perseguido para evitarem que descobrisse as coisas e para eu fazer parte dos capturados, os torturados com as imagens divulgadas. Me resta fugir e pressinto novamente a ação do malfeitor próximo a mim, talvez a poucos metros, a poucos andares. Corro e desço, corro e desço até finalmente encontrar a portaria. Sabia que o prédio estava grampeado e muitos dos funcionários ou moradores deveriam saber das movimentações criminosas. Olho apavorado para o porteiro, mas ele não esboça reação. Passo pela portaria envidraçada, que aparenta uma clínica por manter o branco em predomínio. Chego até a porta gradeada e aperto todos os botões, até os do interfone para desesperadamente liberar a porta. Consigo ouvir o barulho metálico e puxar a pesada abertura para um breve sentimento de liberdade. Estou nas ruas do Rio de Janeiro e preciso de ajuda.

Embora eu sigo correndo a passos largos, tenho em mente que não posso contar com qualquer pessoa. Me passa pela cabeça que a operação é muito grande, tomou conta da internet pelo país e eu estava diante das fontes. Tenho meu testemunho, precisaria de mais provas. Quem acreditaria em mim? Em quem posso confiar? Falar com a pessoa errada ali na volta seria o fim da linha. Não falar e ser pego pelos capangas, igualmente. E o qual o papel de Clara nisso? Desconfiava? Ela sabia? Ou salvou minha vida ao me deixar sair na hora certa? Esqueça Clara, pense, pense.
Foto: Henrique König

Passo por lojas e comércios abastados de produtos baratos e varejistas. É como uma manhã ou tarde normal para feirantes e vendedores. Há muito movimento nas estranhas calçadas, desconhecidas de minha pessoa. Meus olhos mal captam tudo que está acontecendo e segue a acontecer em volta. Eu olho e não encontro a ação dos sequestradores. Para acionar autoridades e tentar desqualificar e prender o bando, eu precisava de mais provas. Não conheço as ruas em volta, mas me surge uma única ideia: preciso voltar ao prédio.

9 de maio de 2017

Domingo de Términos

O churrasco estava por acabar. Alguns convidados, possivelmente os familiares, reuniam as sobras em recipientes para seguir com eles em viagem, no pensamento futuro de novas refeições. Isopor, plástico, isopor, organização, cabe mais um, leva você, pode levar. Aperto de mão, abraço, dois beijos, talvez um só, um aceno à distância. Era o crepúsculo da festividade. Preparava um breve discurso, mas o ex-colega, na atualidade de formando, de formado e de anfitrião tinha mais convidados. Mal consigo pronunciar o lead do que eu queria dizer. Considero bastante as oportunidades de desenvolver tarefas que ele me deu ao longo do curso de Jornalismo. Hashtag gratidão.

Esperava por mais recém ex-colegas no churrasco, que até o mês passado eram colegas de curso e de classes que deixamos para trás no findar de abril. Sobravam eu e um casal de ex-colegas. Ele terminou o curso no mesmo prazo que eu. Antes de começarmos a trajetória em 2013, foi uma referência vê-lo pelas redes sociais como um redator de renome na internet. Ela, por sua vez, tornou-se parceira dele em maior tempo que a duração de nosso curso. Logo no primeiro ano de ingresso estreitaram relação. Após dois semestres cursados conosco, ela seguiu para outro rumo de carreira acadêmica, mas o casal manteve-se e desfrutariam da simpática carona de meu pai pela primeira vez, se não me falha a memória.

Durante o período de Jornalismo, meu pai me acompanhou em idas e vindas, de maneira que muitos dos colegas em maiores ou menores graus de amizade e reconhecimento à minha pessoa também foram agraciados com a poupança de dinheiro de ônibus, de maior segurança ao trajeto ou de simplesmente poupar cansativas ou arriscadas caminhadas.

Antes que a camionete de meu pai deslizasse prateada sobre as areias do bairro da praia, conversávamos o que chamaríamos de últimas resenhas. No tom de despedida, o ex-colega confessou o sentimento que lhe atingiu em cheio nas palavras do anfitrião da festividade. "Só senti que acabou quando me perguntou se eu ia na aula amanhã." O tom sarcástico de nosso ex-colega, anfitrião e então já ex-anfitrião da tarde foi uma paulada que me atingiu, mesmo tomando conhecimento das palavras somente em compartilhamento do outro amigo. Realmente nos dávamos conta: não haveria mais aulas.

As fichas caem aos poucos. Levo comigo essa dentre poucas certezas que nos cabem em bolsos e na alma. As fichas demoram a cair em relação à morte de um parente ou de uma pessoa próxima, um amigo ou uma amiga. Demoram a cair. Demoram a cair as fichas das trocas de emprego ou de cidades. Demoram a cair as fichas das etapas que concluímos e que dão início a novas etapas. As promessas de reencontros quase sempre são vazias. O afastamento das pessoas que faziam parte da etapa concluída é praticamente inevitável. Os mais otimistas talvez colham pedras para replicar esse trecho que escrevo, mas realmente trata-se de mutações, transformações e adultérios no caminho. E as mudanças de caminhos e de calçadas requer mudanças nos ciclos e nas pessoas presentes neles.

As despedidas são veladas como são veladas as palavras que tomam um recorte comum. Nos velórios, os pesares, os pêsames, os sentimentos e consentimentos em relação aos mais necessitados de conforto espiritual na hora. Nas festas de troca de ano, os desejos de próspero (palavra que só se utiliza em réveillon), bem sucedido e estimado ano pela frente. Assim como os populares "parabéns e tudo de bom" nos aniversários.

No espaço que trafega na minha mente, via pela estrada de concreto que liga a praia ao centro e vice-versa, como se aproximava o destino final do casal, que dividia comigo o banco traseiro da camionete, enquanto meus pais ocupavam os lugares à frente. Estava na hora de saltar. No breve discurso que novamente ensaiei no silêncio absorto de meus pensamentos, consegui dizer ao companheiro jornalista quando eles desceram do carro: "nos vemos por aí", ou coisa parecida.

O domingo desses términos de etapa concluída trazia o anoitecer, que é mais veloz nas proximidades do inverno. O azul toma conta em tons mais acinzentados, meio leitosos. O pouco que sobra de luz é como uma recoberta camada amarelada que não tarda em sumir e trazer de vez a escuridão. No anoitecer daquele domingo ainda acabou a sequência dos títulos gaúchos do Internacional, com o Esporte Clube Novo Hamburgo sendo campeão do estadual pela primeira vez em sua centenária história. O domingo dos términos marcava novas etapas. Novas etapas que demoram a nos esclarecer as coisas que ficam e que saem. As pessoas que ficam e que saem. Como demoram as fichas a cair de que o Internacional teria pela frente sua primeira participação na Série B e o Novo Hamburgo poderia enfim degustar sua primeira conquista de tamanho renome. Términos e inícios.