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09/08/2025

Uma Mulher Casada (1964)

Ao contrário da análise positiva de Alphaville, Uma Mulher Casada talvez seja um dos filmes que menos gosto da filmografia de Godard durante a era da Nouvelle Vague. Este filme é de 1964 e conta a história de Charlotte, uma jovem esposa dividida entre dois homens: seu marido oficial, Pierre, e o amante, Robert. Ela é madrasta do pequeno Nicholas, filho do primeiro casamento de Pierre.

Seus pretendentes são mais velhos. Pierre é piloto de avião e constantemente está fora da cidade no exercício da profissão. Robert também tem de tirar dias fora, porque é ator de teatro. Charlotte vive à espera das viagens de Pierre para manter seu relacionamento extra-conjugal. Das suas poucas tarefas é manter o garoto Nicholas sendo buscado diariamente da escola.

Entre tantos elogios feitos recentemente aos filmes de Jean Luc Godard, este não é dos mais chamativos, explicando o porquê: não há filosofia mais densa e trabalhada, não há um roteiro cativante com as personagens, as atuações também não chegam a ser memoráveis ou divinas, não há acontecimentos que suscitem a trama em ação ou grandes suspenses. É um drama bastante morno, mas procuraremos atingir o objetivo de elencar pontos do filme.

Godard consegue mesclar seu gosto pela História ao pontuar uma viagem de Pierre, que passou da Alemanha a Auschwitz, na Polônia, local do maior campo de concentração da Segunda Guerra. O assunto permeia o filme. Em um dos encontros clandestinos de Charlotte com Robert, o destino é uma acanhada sala de cinema, precisamente na poltrona 12, quando a sessão de filme era referente à Segunda Guerra Mundial, e especificamente sobre os campos de concentração e suas aparências normais para os cidadãos que pudessem ver apenas de longe, de fora. É uma coincidência, pois Robert não tinha acesso a esse assunto que Charlotte travou com Pierre.

A trama do filme se desenvolve do meio para o final. Charlotte estava marcando consultas médicas e com a suspeita de uma gravidez. Ela descobre estar grávida em andamento, de três meses. Na hora, o espectador já fórmula a única pergunta possível: de quem será o filho? Há uma esperança de que a própria Charlotte tenha a resposta, mas adiantamos que ela não tem. Portanto, a dúvida é levada até o final do filme. Poderia ela, nessas escapadas, ter um cálculo mais preciso de com quem tenha dormido nesse tempo, mas durante o filme é provado que ela poderia estar até mesmo com os dois pretendentes em um único dia. Na manhã com Robert e à noite com Pierre, de volta de viagem.

Em visita a amigos de Pierre, a filosofia corre um pouco à solta no filme, mas entende-se que não com a profundidade de outras obras de Jean Luc. O objetivo maior do filme é entender a cabeça - e nela a bagunça - da situação entre um marido que tem um filho pequeno de outro casamento e almeja ter um filho de Charlotte, a cabeça da própria Charlotte, dividida entre os dois compromissos, e o bom vivente Roberto, sem a responsabilidade familiar e tentando alavancar sua vida de ator. Segundo ele, nunca foi casado. É um que dispensa compromissos do tipo.

A liberdade de escolha de Charlotte, à mostra da possível traição feminina, chocante aos olhos de 1964, são temas que podem ser mais reveladores, nesse olhar retrospectivo. Vale a lembrança, como outras análises por mim feitas, sobre os casamentos arranjados que perpassam tantas culturas pelo mundo em pleno 2025. Trata-se então de uma realidade francesa e europeia em plena década de 1960.

O feminismo aparece em algumas cenas do centro da trama. Charlotte frequentava uma piscina, de um clube ou pública, mas indiferente. Ali, tinha amigas e também passou a escutar a conversa de mulheres mais jovens, iniciando a vida sexual. Uma das adolescentes aconselhava a outra sobre como seria a experiência, sobre despir ou não, manter luzes acesas ou não, algum comportamento corporal de um jeito ou de outro. Charlotte escutava com a nostalgia de quem há muito estava iniciada e agora com compromissos maiores, tanto com o cônjuge, o cuidado com o enteado e o planejamento do que estaria por vir. Em meio a essas conversas, assuntos de penteado, de vestimentas e de signos do horóscopo, novidades e assuntos clássicos do que se considera moda feminina.

Em casa, com a empregada doméstica, com a madame da qual esquecemos o nome, Charlotte também desenvolve conversa a respeito de relacionamentos, modernidade e aparência. Apesar de sua beleza definitiva, a personagem principal estava incomodada com o tamanho de seus seios, preocupação e pressão julgadas sobre as mulheres e suas aparências. Revistas femininas, conceito que se estendeu por décadas nos salões de beleza e salas de espera, erguiam métodos capazes de corrigir postura, aumentar as mamas, etc.

É de se pensar por esse lado também a diferença de classes e do feminismo na época, entre madames que tinham a possibilidade de escolha, enquanto outras simplesmente as serviam em emprego, ou lutavam por direitos contra preconceitos raciais, por exemplo. A conhecida diferença entre feminismo branco e feminismo negro; lugar de fala acentuado para época (imaginem só em Estados Unidos, por exemplo). Em depoimento da empregada, sabatinada em perguntas sobre como era seu relacionamento em casa, ela reclama que os homens muitas vezes reduzem a relação ao sexo; assim, ela precisa fingir para manter tudo bem - é a falta de direito de escolha, de autonomia sobre o corpo sendo transmitida nesse depoimento. Ao final, porém, talvez sintoma também de suas limitações de perspectiva, educação sexual e lazer, a empregada opina que essa forma de amor é a única verdade na vida, e, quando considerado o todo, é um remédio contra apatia.

Interessante que, após esses depoimentos, chega a hora da revelação no consultório médico: Charlotte descobre definitivamente que está grávida. Ela aplica uma sabatina ao doutor sobre aspectos, por exemplo, do prazer que uma mulher pode sentir, e se ele, o médico, poderia ajudar a descobrir de quem seria o filho. Em depoimento que pode ser considerado contínuo à situação das muitas empregadas domésticas e mulheres e casais de classes sociais mais baixas: Charlotte pergunta sobre o controle da natalidade. O ano, lembrem-se, era 1964, e a explanação do médico é mais um trunfo de Godard para antecipar problemáticas do mundo atual. Por enquanto não havia necessidade do controle de natalidade, mas este poderia vir a ser um grave problema. Assim foi e é em alguns países (como não lembrar o caso da China acima de bilhão de habitantes e como isso vem à tona para Índias, Bangladesh e Paquistão, e também para realidade de países da África). Enquanto Europa e regiões das Américas viviam a expansão das famílias amparadas pela medicina que reduzia a mortalidade infantil, hoje essas mesmas regiões do globo já apresentam quedas vertiginosas no número de filhos por mulher.

A situação da classe média em que Pierre tinha o único filho pequeno Nicholas, Robert não era pai e Charlotte passava a esperar o seu primogênito, demonstra já uma sociedade europeia bastante desenvolta em planejamentos. Situação recorrente à zona urbana, enquanto os rurais ainda possuíam maior natalidade com os cuidados das muitas tarefas do campo. Observação que pode sim ser retomada ao Brasil, com o habitual atraso de décadas, mas com resultados inclusive semelhantes.

Enfim, apesar da obra Uma Mulher Casada não ser da magnificência a que Godard nos acostuma, ela tem sim pontos altos que refletem o comportamento, os debates e as discussões da época. Godard era mestre em inserir nos diálogos banais, nos vazios, números, notícias, novidades, tópicos de interesse da sociedade e que garantem, passado mais de meio século, uma contemporaneidade clássica, um achado, um apanhado de informações ricas e dignas da época, objeto de estudo sedutor para acompanhar o desenvolvimento e os peculiares caminhos da humanidade.


Cenas sensuais são comuns em Uma Mulher Casada (1964)
Olhar crítico de 2025 deve entender as nuances e novidades apresentadas por Godard de forma ousada às telas da época.


08/08/2025

Bando à Parte (1964)

Bando à Parte é mais um filme de Jean Luc Godard lançado em 1964, em uma fase muito trabalhadora do então jovem diretor francês. A cinematografia é assinada pelo camarada Raoul Coutard. Bando à Parte conta a história de um trio. São dois jovens trambiqueiros que tentam convencer uma simples moça, trabalhadora e estudante, a roubar o alto dinheiro de seus patrões, com os quais ela mora; e depois zarparem, fugirem, caírem fora.

Odile está apaixonada por Franz, um dos capangas, que, juntamente com Arthur, quer arquitetar o audacioso golpe. Franz e Odile (Anna Karina) se conheceram em aulas de inglês. Godard debocha do ensino da língua estrangeira, sobre a metodologia das aulas e o comportamento infantil dos estudantes, mesmo todos eles sendo adultos. Flertes e bobajadas acontecem durante a aula. Nos intervalos, Franz investe sobre Odile e Arthur aparece para compor o trio em busca do grande assalto.

É um filme que satiriza as técnicas de Hollywood, as histórias de grandes grupos, gangues e roubos. A técnica narrativa de Godard é cômica, chegando a propor um minuto de silêncio no meio do filme, quando o trio de reúne em um bar, e também uma pausa bem humorada para dança, avançando o tempo do filme.

O satírico também está nos personagens, com Odile muito inocente e pueril, tomando rumo e convencida a participar do roubo apenas com muita técnica e crueldade dos demais rapazes. Os patrões da jovem também são satirizados de modo que a Madame Victoria e o senhor que guardavam o almejado dinheiro seriam queixos elevados, sendo ele um sonegador de impostos, segundo Odile. O fato de ser um sonegador dificultaria que o patrão abrisse caso com a polícia para reaver a quantia do roubo.

Godard propõe uma reflexão na imagem que ilustra este capítulo em resenha, uma vez que debocha de uma possível queda de importância do idioma inglês, o que até passa a acontecer na modernidade com a ascensão da economia e da relevância da China e do Mandarim pelo mundo. Por que estudar inglês e não mandarim? O diretor sempre abria espaços no roteiro para inserções de sua preferência política e críticas à sociedade burguesa europeia. A história de Bando à Parte é uma história de safadeza, mas também um conflito de classes, de gerações. A história do planejamento e da execução final de um roubo repleto de momentos de tensão e comicidade. Não é um dos meus favoritos da vasta obra de Jean Luc, mas fica o registro da ficha de leitura a respeito desse filme de 1964, este realizado ainda em preto e branco.





02/07/2025

Interview (1970)

Filme da Índia, Interview é uma produção muito interessante. Traz imagens da época, de como era uma grande cidade indiana, no caso Calcutá. O personagem principal é um ator de verdade, o jovem adulto Ranjit Mallick. Ele vive com a mãe e com a irmã. O filme consiste na preparação de Mallick para a entrevista mais importante de sua vida, quando um tio lhe garantiu uma oportunidade de emprego. Tendo experiência com jornais, o jovem considera que a oportunidade estava no papo e que a entrevista seria apenas mera formalidade.

Em preto e branco, o filme lembra outros clássicos da época, produzidos, por exemplo, em França e Itália, os maiores vencedores de Oscar estrangeiros e de demais festivais na época. A direção e a assinatura de roteiro ficam a cargo de Mrinal Sen, diretor bengali que esteve vivo até recentemente, com sua morte ocorrida aos 95 anos.

Ao longo do dia, Ranjit Mallick passa por muitas peripécias, tendo em conta de que a missão que parecia simples, torna-se complexa. Desde atividades simples como fazer a barba e arrumar o cabelo até procurar seus amigos para conseguir terno e sapatos adequados, a principal tramoia do filme. A crítica social final é deveras válida, sobre como a sociedade capitalista, ainda mais no capitalismo tardio indiano, em meio a engatinhar pós superar a sugativa ocupação britânica, levava em conta a aparência acima das qualificações. A dificuldade para um jovem sair da vida extremamente simples de viver com a família em busca de um emprego em uma considerada importante multinacional - no começo do filme, o tio de Mallick afirma que os investimentos vinham da Escócia - também levantando a questão de até que ponto havia superação do domínio britânico.

O fluxo das vias, o trânsito desorganizado, os becos e pequenas ruas onde milhares de pessoas vivem, os bondes e os barbeiros abarrotados do vai e vem diário. A busca pela aparência correta, por um bom nó de gravata, por um terno sob medida - visto que o do pai de Mallick não lhe servia, o pai tinha muita pança e sobravam as calças.

Mallick se envolve na denúncia de um pequeno assaltante em um bonde e acompanha as testemunhas até a delegacia. Nisso precisa registrar rapidamente a queixa e ter tempo de realizar a entrevista na pontualidade das três da tarde. O terno torna-se o grande problema, pois o aspirante ao emprego esqueceu-o no vagão. Como recuperar o tecido perdido? Telefonar para quem? Quem poderá lhe socorrer?

Em instantes no filme, nas técnicas também ensaiadas no cinema europeu, Mallick rompe a parede, como é dita a expressão, e conversa com o público. São momentos interessantes de críticas sociais e questões suscitadas para audiência, convocada a participar. É o primeiro de uma série de alguns filmes recuperados de Mrinal Sen para assistir nos próximos dias. Sem promessas, novas críticas podem ser apresentadas na desbravação do cinema do agora país mais populoso do mundo, ao recentemente superar a China. 

Nota final para o filme Entrevista, dos bengalis:

⭐⭐⭐⭐⭐



05/02/2025

Mamma Roma (1962)

Filme de Paolo Pasolini 🇮🇹, Mamma Roma conta a história de uma mulher que trabalhou na prostituição no interior da Itália, juntou algum dinheiro para cuidar de seu filho, se transferindo à Roma, onde, ao que parece, também já havia feito carreira, e conseguiu comprar uma casa e administrar uma banca em feira local. Virou feirante e ainda completava renda com faxinas. Foi mãe e pai para o pequeno Ettore.

Crescido, jovem aos 17 para 18 anos, Ettore chega à Roma e começa a andar com outros jovens sem estudo e perspectiva. Vale a sempre válida lembrança dos tempos de Europa pós-guerra, onde nem tudo, ou na verdade quase nada eram flores. Ettore vagueia com os demais em uma formação entre o entretenimento e a formação delinquente. Conhece a amiga dos guris, chamada Bruna e logo se afeiçoam. Mas os demais não vão deixar barato para o caipira, como era reconhecido.

Ao mesmo tempo, a preocupada Mamma Roma tem de lidar com um velho caso da sua vila no interior. O rapaz, na época bem mais moço do que ela, a persegue em Roma, para cobrar como uma dívida, mas que se demonstra algo moral posteriormente, como se a então prostituta tivesse imoralizado o cidadão de bem. Ao mesmo tempo, Ettore desconhece o passado mais conturbado de sua mãe, acreditando que sua renda sempre era proveniente da feira, da faxina ou de outros serviços considerados honestos pela sociedade fofoqueira.

Ettore se apaixona por Bruna e a notícia chega aos ouvidos de Mamma Roma. Preocupada com a repetição caótica do que ocorreu em sua vida, ela arma um plano com uma amiga mais nova, para que ela seduzia o jovem Ettore, o que estava no papo para sedutora amiga. Sem saber, o cômico é que uma briga entre os guris já havia determinado um distanciamento, uma separação de Bruna com Ettore. Desconhecedora do desentrelace entre os jovens, Mamma Roma insiste em seu plano e crê que nele obteve êxito com a colega da noite. Ettore assim estaria curado da paixão pela andarilha Bruna, que, por acaso, também tinha um filho pequeno, em coincidências com a vida da então jovem Mamma Roma.

A construção do filme se dá entre a personagem Mamma Roma que tenta deixar para trás a vida errante e da construção do jovem Ettore, em que não teve formação escolar, tem dificuldade de opções de emprego e acaba caindo na vida de pequenos furtos e delitos. O desespero de uma mãe que só queria o bem para seu filho, mas não tinha muitos métodos nem ideias de como atingir seus objetivos.

Temáticas comuns para época do cinema italiano, em mais uma grande obra clássica. A rebeldia da juventude, os valores sociais contestados, o preconceito que atravessa de passado a presentes, o desespero de famílias capengas e desunidas, a falta de perspectiva das periferias. Tudo isso pode ser observado na hora e quarenta e dois minutos do filme Mamma Roma. 

Nota final em 4,5 / 5.



07/01/2025

Estado Itinerante (2016)

Análise de curtas brasileiros. Estado Itinerante é um curta brasileiro, dirigido por Ana Carolina Soares, que conta uma história de Minas Gerais. O espectador acompanha a trajetória de Vivi, uma jovem trabalhadora, que mora na periferia, provavelmente de Belo Horizonte ou de outra grande cidade da conurbação mineira. 

Vivi trabalha como cobradora de ônibus e o itinerante no filme está na vida em transição da passageira. No serviço, em que recém havia começado na empresa, a chance de recomeçar, mas também passando por muitos perrengues entre queixas, fofocas, estranhamento com motorista, má conduta de passageiros e outras histórias. Apesar disso, a amizade feminina com outras trabalhadoras pode ser o caminho para superação de seus próprios dramas.

A organização do filme surpreende com cenas de reviravolta, a violência que cerca a periferia, que persegue a figura da mulher, a tentativa de imposição masculina, seja pela figura de motoristas (que não aparecem, ouvimos só as suas vozes impositivas), seja pela família de Vivi, a qual também não vemos. O relacionamento abusivo é evidente, sabe-se dele pelo depoimento da própria protagonista ao confirmar que seu anel é de casamento, e a violência doméstica deixa marcas na pele e no psicológico. 

A jovem tenta se virar e ainda, através da bebida de fim de expediente, rotina comum dos assalariados brasileiros, vislumbrar alguma saída, no broto das ideias, na música, no fundo do copo, no cigarro a intervalos ou em alguém. Vivi surpreende nesses apenas 25 minutos de curta-metragem, que de fato contam muito sobre nosso Estado e a itinerância dele. A rotatividade, a busca sempre transicional pela sobrevivência, entre as fugas e as feridas, a procura por se encontrar.

Nunca é demais lembrar que são várias as Vivis (e, vá lá, os também, trabalhadores brasileiros) que necessitam de um ombro extra, a terceirização de um ombro ao fim do turno, esse direito trabalhista tantas vezes surrupiado, gente que necessita de compreensão por parte dos clientes e usuários, do comércio aos sistemas. Sairmos do automático para enxergar histórias que estão diante de nós, refletidas nas comunitárias janelas de ônibus.

Data de lançamento: 3 de setembro de 2016

Diretora: Ana Carolina Soares

Duração: 25 minutos

Produção: Denise Flores

Roteiro: Ana Carolina Soares

Elenco: Lira Ribas, Cristal Lopez, Maria Aparecida, Diane Rodrigues, Daniela Souza



03/01/2025

O Medo Consome a Alma (1974)

Rainer Werner Fassbinder foi um dos diretores mais polêmicos da História. Uma ousadia extravagante para colocar em suas histórias e adaptações problemáticas muito avançadas para época, mas que também ditariam tendências na modernidade alemã. Por exemplo, temáticas que abordavam a existência da homossexualidade, o preconceito entre classes, o machismo (talvez a temática entre essas mais presente em chocantes cenas em seus filmes) e finalmente o tema de O Medo Consome a Alma (1974), com a abordagem do preconceito racial na Alemanha. Além dele, é claro, o etarismo, termo que entraria em voga somente renitente décadas depois. Sinais do avançado Fassbinder em trazer, entre um cigarro e outro, as tendências futuras para pautas.

A senhora Emmi Kurowski é uma viúva na casa dos 60 anos que, fugindo de uma inoportuna noite de chuva, se abriga em um bar especializado em receber imigrantes. A música árabe preenche ao fundo as cenas iniciais no nefasto ambiente. Sem jeito, ela pede uma Coca-Cola na obrigação de consumir e consumar sua presença. O imigrante marroquino Ali, que na verdade possuía um nome muito mais longo, mas era conhecido pejorativamente como Ali, é encorajado e retira Emmi para dançar. Os dois passam a se entender rapidamente formando esse casal deveras inusitado.

Se o filme anterior analisado neste canal, o Flor do Equinócio (1958) de Yasujiro Ozu tratava do poder de escolha das mulheres para o casamento, será que observamos tantas mudanças para Alemanha pós guerra, neste espaço na Munique em filme de 1974? A senhora Kurowski, viúva de um polonês, desejava companhia em casa e a chegada do negro marroquino Ali iluminou seus dias, fazendo com a que a solitária veterana logo vislumbradas uma união com o rapaz mais de 20 anos mais jovem.

Mas o preconceito racial aflora em uma Alemanha ainda muito preconceituosa, brotando animosidade desde o prédio onde Emmi vive, passando pela apresentação de Ali aos filhos da matriarca, e até no serviço, onde Emmi trabalha na faxina, na limpeza de um prédio em que cada empregada se dedica ao espaço público de dois andares. No caso empregatício, ainda há uma cena em que uma das funcionárias foi demitida por roubo e a nova contratada é uma moça da Bósnia Herzegovina, que passaria a receber um salário marcos menor do que as demais serventes, justamente e puramente por ser estrangeira, estar menos adaptada ao idioma, às condições de trabalho e aos seus direitos ignorados.

Assim também se sentia o negro Ali, sem nome, pejorativamente chamado por um nome comum aos árabes, trabalhando em uma oficina e, antes de Emmi, vivendo em uma peça de alojamento com outros cinco homens. A oportunidade do casamento desperta uma nova viva e perspectiva em Ali. Mas os problemas cercam o inusitado casal, sempre em cenas duras, cruas e, por que não, cruéis depositadas desde as lentes orientadas de Fassbinder. Em O Medo Consome a Alma - ditado árabe dirigido por Ali a Emmi em uma cena íntima de ambos no apartamento da senhora  - o drama é uma constante, como é constante nos filmes do falecido alemão, o qual ele mesmo adorava aparecer em seus filmes, geralmente com papéis secundários. Dessa vez o bigodudo aparece como genro de Emmi, casado com a única filha mulher da senhora de Munique.

Fassbinder era tão desgraçado que mesmo trazendo essas temáticas contra preconceito, interpreta muitas vezes os personagens mais rudes, agressivos ou preconceituosos. No caso de sua atuação em O Medo Consome a Alma, o genro de Emmi tem um chefe turco e o despreza. Não aceita receber ordens de estrangeiros. Os repudia e obviamente não aceitaria o casamento inusitado de sua sogra com um marroquino.

Sabe-se que mais de cinco milhões de turcos vivem atualmente na Alemanha. Mais outros marroquinos, tunisianos, argelinos como Ali, mais outros muçulmanos de além África, e como a sociedade alemã, passadas décadas, porém poucas gerações do asqueroso nazismo, lida com eles? Preconceitos velados? Cenas escondidas entre as paredes de prédios e apartamentos? Diferenças entre interiores e as grandes cidades como é Munique?

Fassbinder foi marcante no chamado Novo Cinema Alemão e deixou como legado filmes intrigantes como a ousada proposta de O Medo Consome a Alma - não bastasse a escolha certeira em temáticas ainda nos brindou com poéticos títulos de inebriantes obras.

Nota final em 4,5 / 5






17/10/2024

Buquê de rosas

Viaje por minhas imperfeições 

São tantas, mas não faça menções 

Nem honrosas, nem rosas 

Pelos colchões


Viajo pelas lições de sua vida

Comprimidos muito melhores

Que aspirinas

Viajo, nado nada sincronizado

Espasmos 

Viajo 

Por trás das lentes, das cortinas


Viaje por minhas imperfeições 

Estou quase acabado

Minha versão final

Corpo quase abandonado

Viaje por quem bate o ponto

Todo dia sem desconto

E já nem sabe nem porquê


Um buquê de flores se esfarela 

Se ninguém compra elas

Para onde vai?

A comida do mercado

Com o prazo encerrado

Encerrada pelas grades

E as cortinas das cidades

Melodias do metal


Viaje pelas minhas imperfeições

Sou assunto, sou ações 

Sou um mundo de questões

Nada superficiais

Ai ai ai 

Why?

03/09/2024

O Nome da Rosa + Diary of a country Priest

Por ontem assisti ao filme O Nome da Rosa de 1986. Inspirado no livro famoso de Umberto Eco. Um mosteiro no norte da Itália. Um jovem aprendiz e seu mestre. Crimes que se sucedem sem solução imediata. Investigação. Profanações as mais diversas. Cruzamento entre a vida de monge e a vida pagã. Pecados, culpa e remissão. 

O jovem experimenta as tentações. Os livros se tornam o foco da jogada. Foi a primeira experiência cinematográfica em que visualizei o que diziam sobre os mosteiros guardarem as bibliotecas da época. Os primeiros registros. Cópias bíblicas e de outros livros que deveriam ser mantidos inalcançáveis, em sigilo, adormecidos em segredo. As bibliotecas eram labirintos guardados a sete chaves. Ler conteúdos seria profanar. A Idade Média corria assim antes da luz renascentista e o avanço das ciências. 

Os ratos permeiam a narrativa. A doença era uma chaga constante. As mortes passam a ocorrer. Suicídio ou vilania? Alguém empurrou o irmão de uma altura para morte ou se matou? E o outro que amanhece descoberto de cabeça para baixo? Questões que interrompem a tranquilidade da vida no monastério.

Por fora do treinamento dos padres, ocorria a vida pagã, que, para os compromissados na pureza cristã, eram profanadores, pecadores dos mais sérios. Renegar a Jesus nessas condições renderia penas máximas. A Inquisição atuava forte, perseguição a ser destacada com i maiúsculo. A destruição das barreiras é evidenciada ao final na cena que com certeza usou maiores recursos financeiros.

Diary of a Country Priest

Este filme de 1951 se tornou um de meus favoritos. A vida do jovem padre transferido para o interior da França. Os desafios em que ele passa para ser aceito, para dominar seu vício em álcool, para deter ou não seus desejos pela mulher que se apresenta.

O jovem ganhou a desconfiança dos demais em um primeiro momento. Tenta fazer amizade com um contraditório caçador, profissão mais comum ainda para época. 

A sequência da vida do jovem D'Ambricourt (papel de estreia do ator Claude Laydu) é permeada de enigmas, contradições, debates de valores sociais. Até hoje é notável a diferença do tratamento, da confiança em cidades grandes ou vilarejos de interior. Os valores católicos foram testados e metamorfeados constantemente. As possibilidade de mudanças sociais para indivíduos do campo se apresentavam muito limitadas. Entre o ser e o parecer a diferença pode ser gritante.

Quais os requisitos para alguém liderar uma vila? Para ser um líder respeitado? Para ser um padre confiável? A religião seguida à risca seria o antídoto aos vícios ou pode se tornar o próprio vício?

Os desvios da vida Santa devem ser sempre contornados ou nos fazem humanos? Perguntas que saltam e que podem permanecer após acompanhar as trajetórias cristãs de ambos os casos transcorridos nos filmes em questão. Perguntas que se modificam conforme as épocas ou que até em nosso período contemporâneo permanecem torneadas.

18/01/2024

Entre minha tia, Pierre Goldman e Petzold

Chove de leve ali fora, do outro lado da janela. São 3h30 da manhã quando inicio o texto. Provavelmente serão pelas quatro quando encerrarei. Aguardo pela minha tia, que vem a Santa Catarina. Este a sem crase. Vou a Santa Catarina. Volto de Santa Catarina. Estou lendo um livro de um Judeu chamado Pierre Goldman. Ele era filho de poloneses, mas nasceu em Lyon, na França. Por isso o livro se chama Lembranças Obacuras de um Judeu Nascido na França.

Ele aborda o preconceito racial e os conflitos armados que permearam toda sua vida. Um erro de grafia no livro é assalto à mão armada, que leva crase, mas a cada citação no livro não há o sinal gráfico. Irrelevâncias. Escrevo a partir do meu celular. Sinto fome, mas não quero correr o risco de interromper o sono de meus pais, talvez a coisa mais preciosa que eu zele em vida, porque sei o quanto meu pai é esforçado quando acordado e merece repouso. Minha mãe passa o dia seguinte muito debilitada quando dorme mal. Eles merecem dormir bem. Não saio do quarto para comer algo para não correr o risco de cortar o sono deles. Mesmo sabendo que a aproximação de minha tia na rodoviária fará com que ela emita uma mensagem e acorde minha mãe. E meu pai a busque na rodoviária. Eu de metido insone devo ir junto de acompanhante.

Escrevo a partir do meu celular com o carregador não original, que fica acusando o mau contato entre dispositivo e aparelho. Raios.

Pierre Goldman se defendeu de tribunais injustos que imputiram assassinatos, homicídios em sua ficha criminal, que, segundo a vítima do sistema, deveria constar apenas de assaltos, quando nem fazia uso das referidas armas. Goldman fez contato com homens das Antilhas, congoleses, haitianos e demais latino-americanos. O livro tem tudo a ver com o clima pós segunda guerra. Goldman era um Judeu não pertencente ao país de seus pais, uma Polônia cada vez mais antissemita, barril de pólvora entre sovietes e anti-stalinistas. Também nunca foi um francês, sofrendo o preconceito racial por ser considerado um estrangeiro judeu. Engraçado que quando foi para os Estados Unidos, em uma passagem de navio, trabalhando para um comandante noruegueses, nos EUA, Goldman era visto como "o francês". As coisas mudam.

Minha tia conviveu no mesmo apartamento comigo no fim de 2022. Me ajudou em um período difícil de minha longa doença, quando eu não conseguia evacuar direito, pelo mau funcionamento de meu intestino, que não absorve mais vitaminas como deveria (atualmente tenho reforçado vitamina B oralmente, mas já levei injeções também em outros tempos).

A vinda de minha tia, que voltou a morar em Pelotas mesmo após a insistência de meus pais que ela ficasse em Santa Catarina, a vinda dela tornou-se um evento importante de meu verão. Estou muito isolado, sem amigos por aqui. Ter a companhia de minha tia pode me fazer bem. Deixo aberta a possibilidade disso. Me faz lembrar perspectivas quando, por exemplo, o volante Jailson saiu do Grêmio e não era assim dos mais importantes. Tempos depois a qualidade de elenco recaiu e a torcida esteve em polvorosa para que ele voltasse, o que nunca ocorreu. Fez campanhas e títulos pelo Palmeiras. Além dele, lembro o caso de Rafael Carioca. Ou até Douglas Costa, que viria como salvador. Maior desperdício da história que já vi no futebol brasileiro. Perspectivas.

Pois a perspectiva de minha tia próxima a mim, pessoa da qual nunca fui tão ligado, aumenta na medida em que não tenho outras pessoas com quem contar. E assim devo me acostumar por idade ou distância, ou rotinas atarefadas dos demais, ou menos tempo ou menos grana para disporem conosco. Nos viremos.

Além do livro de Pierre Goldman, a ver com o assunto, os últimos filmes de Christian Petzold, talvez o cineasta alemão que eu mais goste, escalando posição preciosa entre todos os europeus (estou acompanhando toda filmografia dele). Petzold dedicou os últimos anos a filmes com referências de segunda guerra mundial, a exemplo de Phoenix e agora Transit, o qual estou assistindo. Parei e aqui escrevo. Em Transit, traduzido como Em Trânsito, o personagem foge pela França cada vez mais ocupada pelos nazistas, necessitando de passaportes falsos, desculpas, dinheiro e muita desenvoltura. O interessante deste filme, além da troca de identidade com o escritor que se matou no início da trama, o interessante é que Petzold não se preocupou em ocultar os novos carros e as novas ruas francesas ou alemãs. Adaptou um filme de segunda guerra em um mundo como podemos presenciar em cenários dos anos 2020. O filme ainda dispõe de cartas, luminárias, trens (?), mas também há carros modernos e ruas que não escondem o avanço tecnológico pelo qual passamos.

Por fim, gostaria de afirmar que gosto muito dos heróis das tramas de Petzold, pessoas comuns e muitas vezes entricheiradas entre escolhas, além do bem e do mal. Diferença sagaz, preciosa em relação aos mais vistos de Hollywood, em personagens que despertam apenas admiração ou raiva, ufanismo demasiado, leitura rasa. Nos filmes de Petzold somos convidados a pensar em situações cotidianas e ao mesmo tempo extremas: o que eu faria naquela situação? Preciso roubar? Preciso fugir? Preciso amar? Preciso abandonar? Preciso aplicar um golpe? Preciso fugir das autoridades? Quem tem a razão, tão mutável e movediça, tão escamoteada e fugidia? Assim acompanharmos os últimos minutos do filme Transit, para descobrir se nosso protagonista ficará ao lado da família que encontrou pelo caminho ou fugirá com o passaporte que está encaminhado, concedido para iniciar uma nova vida não nos Estados Unidos, mas no México. 

O que será que Pierre Goldman escolheria se fosse ele no papel principal não do livro biográfico de sua vida, mas nesta interessante trama do filme de Petzold? Goldman que, ao largo do livro parece querer se livrar da morte - que o perseguia em pensamentos e ações desde a infância-, justamente por um amor distante, de uma antilhana distante, no tropical caribenho, encontra uma desculpa para manter-se vigilante no sonho de libertar-se da prisão e continuar combatendo, talvez ao lado das diversas organizações comunistas estudantis das quais fez parte, ou deseja apenas uma vida em calmaria, mais justa e menos ambiciosa. O que escolher para salvação e continuação quando os caminhos se entrecruzam e as soluções não são tremendamente iluminadas e dispostas como a facilidade de escolher um ingrediente nas gôndolas do supermercado ou um livro de uma estante?

Assim vivemos entre liberdades e aprisionamentos e eu, enquanto ainda chove, e passam das prometidas quatro da manhã, espero minha tia chegar na rodoviária.

17/01/2024

A natureza manda

Enorme temporal que chega também a Santa Catarina.

Nossas cidades estão preparadas para o que o tempo fará com elas? Não estão.

Aliás, tudo que a humanidade construiu jamais se compara com a natureza. No fim, ela que manda.

O homem tem poder da destruição equivalente à natureza.

A bomba atômica, por exemplo.

Podemos destruir o mundo antes da natureza.

Mas o poder de construção superior ao da natureza nós não temos.

Não minimizando nossos exímios engenheiros. Mas sim exaltando a natureza. Ela manda.

27/06/2023

O Inverno / L'hiver (1969)

"Havia um tempo em que eu não sabia se era feliz ou infeliz. Sinto falta dele."

"... disfarçava suas falhas por trás das pretensões artísticas"

Paisagens belgas bem representadas em L'hiver (1969)

O filme L'hiver (1969) do diretor nascido na Tunísia e com considerada curta carreira em França, Marcel Hanoun, retrata um casal, uma atriz desistente e um diretor frustrado. Eles estão na Bélgica na tentativa da gravação de um documentário. Além das conversas mais ou menos vagas, mais ou menos filosóficas, mais oh menos nostálgicas dos protagonistas, Sophie também troca ideias com o amigo do casal, o cinegrafista, que completa o enxuto elenco da trama experimental, que mescla imagens de Bruxelas, suas pontes, seus prédios, suas águas e um pouco de seu povo, com as incursões frustradas dos profissionais na corda bamba do fracasso.

A película mostra um pouco do cinema francês da época, com cortes de imagens reflexivas, colocações mais ou menos sutis para maiores significados. Interpreto algumas passagens, como por exemplo a adição de uma música despretensiosa, desconexa, como trilha para ambientar a falta de entrosamento do casal. Ela que decidiu seguir passos da carreira do diretor, ele que a nem escala para seus projetos de difíceis conclusões. Ela que caminha em busca de respostas, gastando sapatos sobre as seculares pedras calçadas da capital belga. Ela italiana, de Veneza, que revela nem ao menos conhecer Florença, possível destino prosseguinte deles.

O diretor insatisfeito com as realizações de seu trabalho, infeliz também no casamento mantido a persistências de uma época em que ainda havia a manutenção maior de matrimônios (em relação a hoje) enquanto já se aumentavam as hipóteses/possibilidades de divórcio.

O filme demora a engrenar, não transmite tantos elementos para uma narrativa de sequência de cenas, então pode ser proveitoso para observação de quadros, cenas, escolhas sentimentais, mescla com a arte que aparece em quadros de pinturas, exploração do espaço urbano, preenchimento de vazios, elementos cinematográficos- como o diretor pensando em sua obra-, além de questões comuns a casais de quaisquer épocas, em diálogos nos quais tentam novamente nortearem-se, seja dentro da relação ou em suas vidas, em geral. Para onde irão depois disso?

Minha avaliação foi constituída em quatro estrelas das cinco possíveis

⭐⭐⭐⭐

Casal distanciado é protagonista na trama do tunisiano Hanoun

Marcel Hanoun foi autor de poucos filmes, mas produziu na cinematografia com as estações do ano, das quais já assisti o filme sobre o Verão, em que uma jovem vai para uma casa de campo e reflete sobre seu tempo na cidade, seu relacionamento e a política através das manifestações de maio de 1968 na França. Pretendo assistir ainda às estações faltantes, Outono e Primavera.



02/04/2023

Longa caminhada de 2023

Uma caminhada longa, das mais longas que pude fazer desde que um dia me mudei para os lados do Porto/Centro - preferencialmente Centro em questões de preços de fretes, preferencialmente Porto, em questões poéticas e mesmo geográficas, desafiando as placas de ruas. A saída na rua coincide com a venda de garagem no vizinho, que utilizou a escrita em inglês "GARAGE SALE" para se exibir ou chamar atenção não sei de quem - a minha talvez, para criticar a desnecessária forma estrangeira pra informar que tá vendendo uns itens velhos e vintage. Bom que os vizinhos desconhecem estas linhas traçadas. O vizinho da casa da frente, um sobrado em que na parte de baixo está instalada uma ferragem, sr. Nelson está desta vez no alto, sobre a casa, como assim o vejo pela primeira vez, parece mexer na caixa d'água e cumprimenta outros vizinhos que por ora passam na rua. Sorrio para essa curiosa cena.

Parece que Pelotas finalmente conseguiu e, com exceção da praça principal, no afastamento pelas ruas, o número de catadores e vasculhadores de lixo é maior do que o de pedestres à paisana. Que dessa vez não me culpem a Lulas, porque Bolsonaro governou os quatro anos anteriores a este texto e essa criação bizarra é de obra dele, angariada pelo biênio de Michel Temer entre 2016 e 2018. Trechos do centro da cidade estavam tão vazios que recordavam os meses mais agravados de pandemia de covid-19, praticamente em um formato de lockdown - por hoje não mais obrigatório. Quase ninguém nas calçadas e ruas. Durante essa caminhada, me dirigi rumo ao bairro Areal, onde morei quase toda a vida, desta vez para constatar, certificar de que não sinto saudades daqueles lados. Mas em parte estive errado, porque a nostalgia carregada naquelas ruas promove efeitos inevitáveis. Foi por onde muitas vezes andei, cumprimentei vizinhos, contornei por desconhecidos e por animais caseiros ou de rua. Na oportunidade tive a sorte de cruzar com três gatos pretos, que eu talvez componha foto ao final deste texto. Eles apareceram um a um, talvez a compreender em breves segundos que eu não seria ameaça a suas integridades. Apenas um se aproximou mesmo de mim e rocei pela nuca dele meus dedos e também a chave que carregava já nas mãos, pela não confiança justificada por um furo que só tem aumentado em meu bolso.

O trio de gatos causou reação, talvez mesmo de inveja, de um gradeado cachorro. Deixei-os para trás. Cumprimento a torcida gremista que massacrou sem dó nem piedade o Internacional em número de camisas na rua. Uma goleada talvez não antes vista sem que se trate propriamente de um dia de jogo. Um placar elástico em oito ou nove ou mais camisas contra uma solitária. Lembro das camisas porque por ali, visualizando minha dantesca cena de aceno aos gatinhos pretos estava um possível uber reclinado em seu banco e a utilizar uma camisa do Grêmio. Ao menos se fosser vizinho ou parente de alguém naquela localidade da Gonçalves Chaves, não demonstrou qualquer movimentação referente a isso. Quando retornei a passar pelos gatos, ele arrancou o carro e foi para outro lugar.

Entre ver os gatos pela primeira e pela última vez, fui até minha antiga casa no Areal, pelos lados da avenida São Francisco de Paula e fim da Gonçalves Chaves. A casa permanece na mesma cor em que meus pais a conservavam. A casa dos vizinhos está cada vez mais feia, como pude constatar. Por entre o mato que cresce desrregrado pelo final da Gonçalves, cruzei com o velho senhor de apelido Pica-Pau, que segue magro e montado sobre uma motocicleta. Aproveitou alguns metros na contramão da rua, que agora dispõe de sentido único, e logo tomou a São Francisco, talvez percebendo que nas minhas mãos brotava um celular para testemunhar mais momentos de nostalgia.

Outra casa que moramos naquela região está ocupada e transformada completamente, agora com o adereço de piscina à frente da casa principal, manutenção de apenas algumas das árvores frutíferas que eram conservadas. O asfalto finalmente cobre o final da Gonçalves Chaves, como nem sei bem se um dia sonhamos, mas não é o visual dos mais bonitos, embora funcional. Creio que meu pai, para não escangalhar o carro nas pedras desconjuntadas, aprovaria e muito esse asfalto onde alguns devem voar baixo aproveitando da honorária imprudência que podem se permitir. 

Passei pela casa de minha tia Arita. Ela revela ter 88 anos, idade que eu ponho dúvida, mas por ora acredito a ponto de reproduzi-la aqui (Na revisão foi dada sua idade em 92 anos). De seus filhos, nenhum está em casa. Revela que o que melhor conheço está pescando. Reconheço que o dia, de sol, embora um pouco de frio, era favorável a isso. Proponho no assunto o asfalto advindo na rua, em que ela, sem se lembrar, me questiona se já estive por aquelas bandas desde a nova conservação da via. Digo que sim, estive próximo do Natal, em dezembro, com meus pais, já naquela semana de distribuição de presentes, porque depois rumaríamos a Santa Catarina, onde meus pais hoje moram.

Pois bem, a chegada do asfalto naquela rua, fazia tempo que se reclamava do pouco cuidado prestado ao esgoto, às calçadas e às pedras desconjuntadas do meio da rua. A constatar que dentre esses três problemas, o das calçadas irregulares permanece, mas pelo visto não se pode ter tudo. E logo no trecho da rua em que morou o governador do estado. Foi antes de ser reeleito que veio a verba e a aplicação finalmente do asfalto. Também aproveito para osbervar tia Arita, que antes possuía grande disposição e vigor físico. Revela que a avó dela passou dos 100 anos. Ela ainda tem chance, embora tenha reduzido um pouco essas esperanças, mas ninguém sabe por antecipação do futuro. Chegou quase aos 90, a exemplo de minha avó, para finalmente o trecho da rua onde mais moraram ganhar a nova camada asfáltica, na transição do bairro Areal rumo à modernidade. Percebo também grades que meu pai fez naquela região, nos seus tempos de trabalhador autônomo. As grades feitas por meu pai duraram mais do que algumas vizinhas que por ali moravam, como recordo de uma senhora até bem abastada financeiramente, oriunda de Canguçu. Esta já foi. Outras pessoas da região simplesmente se mudaram. Parte estrutural das casas permanece. Às vezes o material dura mais do que as pessoas. Às vezes as pessoas veem grandes transformações, e duram mais do que o material. A vida é cíclica e imprevisível.

Não sei se tenho mais muito o que acrescentar em relação ao texto. Discuti com um policial ao querer colher informações sobre um acidente de carro em um cruzamento no centro da cidade. Penso apenas depois que poderia ser até enquadrado em desacato à autoridade. Depois dei dois reais para um sujeito que revelava sua necessidade de voltar de ônibus ao Laranjal. Reclamou que a passagem estava cara. Ele sem direito à meia-passagem ou qualquer outro auxílio. Por fim, na quadra seguinte, já bem no centro, no coração da cidade, presenciei um pai desferir um tapa forte contra a cabeça de uma criança. O chamei de mongolão e que não deveria fazer isso. Não sei o quão alto falei porque estava degustando música em fones de ouvido. Aliás, a playlista das músicas que um dia cliquei em curtir foi quase que totalmente satisfatória, o que revelo em tom de surpresa e contentamento.

Passados todos esses pormenores em episódios, consegui chegar até minha rua e concluir minha missão, minha caminhada de volta para casa. Não havia mais Nelson mexendo na caixa d'água, em lugar onde agora eu já o tinha visto. Mas havia fumaça em direção às últimas casas do bairro, praticamente ribeiras ao canal São Gonçalo. Porque a vida é assim: um incêndio após o outro.

15/12/2022

O caminho de desistir sempre é curto, o de prosseguir não é tão longo

Duas horas da manhã e meu cérebro não descansa. Um vagabundo - ou mais - cruza a rua e importuna quem esteja acordado ou de sono leve. Acho que apenas suporto essa cidade. Que no fim das contas não é tão diferente de outras. E em todas elas eu seria obrigado a me encontrar comigo.

O caminho de desistir sempre é bastante curto. O de prosseguir não é tão longo. Tudo cabe em uma vida. Há vidas de vários tamanhos.

No fim das contas acredito em minha irmã e que pode haver punição à alma dos suicidas. Os espíritas afirmam isso. E também afirmaram que eu necessitava de um psiquiatra. Ou então os presentes na sessão  - em que eu estava ausente - mentiram para mim. Mas minha irmã, abilolada ou demasiado inteligente em algumas questões, afirma com segurança sobre as almas. Escolho manter a minha intacta. Às vezes com motivos terrenos o bastante. Às vezes, na falta de algo melhor, pelo depoimento de minha irmã.

20/08/2022

As calçadas

As calçadas 

Tão sempre cagadas 

As calçadas 

Tão sempre cagadas


Todo dia

As pessoas cagam 

Não é sempre

Que a chuva lava


As calçadas

Tão sempre cagadas

As calçadas 

Tão sempre cagadas 


Os cachorros no passeio

Parece

Que miram bem no meio

Das calçadas 

Do meu caminho 

Desvio para o lado

Escapo por pouquinho 


Os cachorros 

A culpa é dos donos

O ônus 

Se caminho com sono


As calçadas

Tão sempre cagadas

As calçadas 

Eles limpam nada 


Os japoneses

Sem sapatos em casa

Os iranianos

Entendem dessa pauta


Porque as calçadas 

Sempre tão cagadas

Os cachorros no passeio

Andarilhos madrugada

13/07/2022

Mais um dia em Florianópolis

Há milhões de formas de escrever um texto. O que será abordado e como será abordado. Tenho feito minhas consultas e exames em Florianópolis, capital de Santa Catarina. Na última manhã dessas missões, quis aproveitar o fato da pluralidade de oportunidades de compra de uma capital para substanciar minha pequena coleção de livros. Para isso, procurei por sebos em Florianópolis e a rua com mais resultados foi a rua João Pinto, no final do centro, já próxima da Avenida Beira-Mar. O plano de sair um pouco mais cedo de casa não se concretizou e, pelo caminho, a tormenta de nebulosidade e muito vento formava um cenário antagônico para a travessia que me era necessária. O carro foi deixado no mesmo estacionamento de sempre, um pouco mais barato e com certa proximidade da consulta médica que eu deveria realizar na avenida Rio Branco, uma das cortantes do centro florianopolitano.

Do estacionamento em direção à rua dos sebos, um caminho guiado por GPS, que indicava o trajeto farovável aos carros, me fazendo quebrar por ruas em que não haveria necessidade. Perdendo no quesito de economia do tempo, consegui chegar com tempo hábil para conferir alguns resultados de compras. Antes disso, havia cruzado a famosa Praça 15 em que se ajuntavam jovens e velhos possivelmente bêbados, emendadores de uma noite de folia ou que haviam caprichado no despejo da pinga logo no café da manhã, visto que se tratava do meio para o final da manhã. Eles riam, gargalhavam e gritavam, provavelmente improbidades de quando em vez. Passei rapidamente pelo contorno da praça sem me ater às barbaridades que eram ditas. O cheiro da urina também se apresentava por algumas travessas e calçadas, das quais eu até preferir trafegar pelo meio das ruas em que isso era possível pela não-vinda de veículos. Trajeto feito no calculado tempo de 12 minutos desde o início do tracejar, consegui chegar até a um bar de esquina na baixada da praça e confirmei com um senhor que ali se tratava no que eu imaginava ser a João Pinto. ELe me confirmou com um breve movimento afirmativo com a cabeça, sem esboçar a mínima reação. Pela Rua João Pinto, alguns poucos desocupados, outros transeuntes apressados, aproveitadores e sacanas, trabalhadores e mensageiros, poucas pessoas por aquela travessa fria que pouco recebia sol, aparentava total aspecto de umidade e acinzentamento. Aquela travessa não permitia carros, mudando minha expectativa inicial de tratar de uma rua de calçamento antigo, estreita, mas que pudessem passar ao menos um veículo de cada vez. Não era o caso. Apenas pedestres eram permitidos, eu sendo um deles por ali pela primeira vez. Não tinha tempo a perder e adentrei ao primeiro sebo que se apresentou à minha vista, fato que comemorei silenciosamente com meus botões. Já havia passado por lojas de artigos de surf, locais para lanche, artigos de limpeza e manutenção, mas visualizar o meu destino, um sebo, foi a primeira vez.

O senhor dono daquele espaço me recepcionou e foi logo perguntando qual era o meu desejo, como se eu, apenas por ser levemente jovem, não conhecesse o funcionamento das lojas daqueles artigos. Eu conhecia a distribuição das prateleiras. Ou julgava conhecer. Confesso que a ajuda prestada por ele me direcionou mais diretamente a meu esperado destino. Alguns espaços ainda não haviam sido etiquetados, o que ele logo confessou se tratar de uma loja nova que havia posicionado. Confesso também nesse processo que essa afirmação me fez engolir em seco, pensando se ali se tratava do mais digno dos sebos que eu poderia adentrar. Um recém erguido em suas gôndolas poderia representar uma limitação de títulos que eu não desejava deparar-me. Afinal de contas, vindo de Pelotas e morador temporário de Imbituba, esperava encontrar em Florianópolis velhas novidades as quais eu não veria facilmente pelas gôndolas pelotenses. Mas ali estava no sebo do senhor que mais tarde naquele episódio conheci pelo nome de Marcos.

Fui diretamente aos títulos internacionais, perguntei mais uma vez por títulos do escritor Bolaño e não obtive sucesso. Esse insucesso tenho conquistado desde outras oportunidades. Os sebos não estão com os lançamentos até considerados recentes desse afamado escritor. Adio a leitura dele. Encontrei um volume grosso e russo, não de velharia, russo de origem, da literatura russa. Separei-o em um espaço sobre uma das prateleiras, que me permitiam criar breve pilha de meus destinados novos velhos livros. Depois dos russos avancei para um título que me trouxe curiosidade, sobre Cebola. O título de Cebola é de um escritor catarinense, mesclando contos e outras situações. Achei a descrição interessante e acolhi em minha improvisada pilha.

Ainda por aquele espaço, na prateleira mais para o fundo da loja, me deparei com os títulos de filosofia e encontrei o velho conhecido Erasmo de Rotterdam e seu Elogio da Loucura, que já comecei a folhar quando ora escrevo essas palavras. Erasmo compara a Loucura a uma poderosa deusa, influente sobre os homens e sobre os diferentes deuses. Ela está por toda parte, mesmo naqueles que mais querem reprimi-la e ignorá-la. Parece que não conseguiram nem a séculos anteriors ao século XVI de Erasmo, nem nos conseguintes nos quais ora estamos. A loucura, elogiada por Erasmo, como ele promete no título, é realmente poderosa.

E poderosa é porque assomou-se à minha pilha de libretos. O senhor Marcos andava de um lado para o outro, me deixando um pouco nervoso, mas provavelmente em sua tarefa destinada da organização de mais volumes. Minha mãe que atrasada chegava aos meus apressados passos, chegou à livraria e também procurou por títulos que a interessassem. Minha mãe é assídua leitora e consegue devorar livros a uma velocidade que eu somente invejo. Mas seus gostos duvidáveis a levaram para seção espírita, onde encontrou um volume com o nome de Como Vivem os Espíritos. Torci silenciosamente o nariz para aquele título, mas deixei que ela assomasse à nossa agora conjunta obra arquitetônica, a pilha de livros sobre a estante. Ela procurou mais alguns nos clássicos nacionais, despendendo crítica ao escritor José de Alencar, segundo ela, um dos mais chatos que ela poderia ter lido desde os tempos de escola. Concordei mesmo sem acompanhar a obra do antigo autor brasileiro. Também comentou sobre a demora nas descrições de Euclides da Cunha na conhecida obra dos Sertões. Me referi aos Sertões como importante processo geográfico e descritivo, situação de novidade pois não haviam livros escolares como as crianças carregam hoje em suas mochilas. Ou seja, ele possuía seu valor histórico, sem dúvida alguma.

Ainda fui para o lado oposto da loja, prateleira à esquerda, procurar por discos que ali se distribuíam. Muitos títulos conhecidos do pop e rock internacional, dos quais garanti finalmente uma edição da banda Counting Crows, os "Contando Corvos", que ainda não escutei em meu notebook, único dispotivo que por ora posso utilizar para ouvir esses compactos discos antigos. O senhor Marcos mais uma vez se demonstrou totalmente prestativo, oferecendo ajuda para ver se escolhi a melhor edição do Counting Crows, ou se haveria um melhor nas fileiras. Comparou que um estava mais inteiro a 15 reais e o outro um mais deteriorado a 10 reais. Aceitei o de 15 reais pelo aspecto inteiro. Comentei que já havia visto aquele CD em outros lugares, mas sempre com caixas arranhadas, não bem conservadas como as dele. Passei por outras bandas até tentadoras, mas economizei nesse aspecto, pois, como disse, estou apenas com o notebook para essa degustação com os ouvidos.

Pois bem, com o horário apertado, minha mãe já havia chamado atenção para nossa necessidade de retorno à Avenida Rio Branco, subindo aquele Centro, me encaminhei para a frente da loja. Havia ali uma mulher para trabalhar no caixa eletrônico, caixa este que na verdade consistia na calculadora do celular de Marcos. A negra mulher seria sua esposa? Me ficou essa dúvida. Parecia apenas um pouco mais jovem que o senhor de protagonismo em nossa narrativa. Ela retirou-se do espaço destinado ao caixa e o próprio Marcos tomou a dianteira para fechar a compra. Minha mãe nesse espaço de tempo procurou e encontrou um disco em capa com azul e preto de Nei Matogrosso, seu cantor favorito, e um dos, se não O, de minha irmã. Com a aproximação do aniversário de minha irmã em agosto, estaria feita importante compra para satisfazer os vinis colecionados brevemente por ela.

Marcos novamente prestativo tomou a dianteira, elogiou o disco como um dos melhores da música brasileira e somou no celular mais o preço dele, estimado em 30 reais. Um bom vinil, bem conservado, capa impecável. A princípio me assustei com o preço, mas logo também entendi que a maioria dos vinis que procurava por Pelotas eram de capas rasgadas e estados duvidáveis, inclusive para quando se encontrassem com a definitiva agulha de suas funções audíveis. Pois bem. Também aqui rememoro que os discos de vinil possuem em suas capas verdadeiras obras de arte a serem apreciadas. Diferente dos discos compactos, os CDs que eu coleciono, os vinis são maiores e suas capas e contracapas representam praticamente quadros a serem expostos nas paredes. Ou seja, uma capa bem conservada tem também um tremendo valor. Logo, 30 reais que agora me parecem mais bem pagos.

Do saldo dessa aventura, o horário me apertava os calcanhares, precisando eu praticamente correr na companhia de meus pais para voltar à avenida Rio Branco. Sim, meu pai, de tão pouco interesse pelos livros também estava na livraria, puxando assuntos com a mulher sobre o tempo e sobre a estrada necessária a nós até chegar a Florianópolis. Pois dessa mesma estrada percorre-se o assunto de que Marcos gostou muito de nossa compra, ofereceu um desconto que eu não esperava, finalizando aquela nossa velha pilha, o CD de Counting Crows e o disco de Nei Matogrosso por um total de 100 reais, os quais paguei no cartão em débito. Ofereceu um papel impresso com seus dados, o número do celular e a proposta de receber doações e trocas, de livros, DVDs, CDs, Gibis e Discos. O número é (48) 98449-0737, atendendo Florianópolis e região. E região eu que digo e assim espero, porque ele foi tão entusiasmado, enfático de que poderíamos voltar e tratar de negócios futuros que me entristeceu o coração lembrar que não era de Florianópolis, que era de Imbituba, havendo aí distância impermissiva de negócios recorrentes e, mais do que isso, que eu voltaria a Pelotas para ajudar, é claro, outros livreiros de minha região.

Mas o olhar apaziguador dele, a simpatia com que nos recebeu realmente me entristece. Aqui chego a um dos clímax dessa narrativa, perceber que, nesse mundo de tantos problemas, de tanta violência, de desocupados e agredidos pelo sistema nas ruas, poder desfrutar de uma boa recepção, de uma simpática conversa, de cordialidade e bom humor, isso me enche o coração de esperanças, mas ao mesmo tempo me vejo desviado dos rumos da vida, onde, tão logo, não tenho dúvida em meu pessimismo, seremos novamente jogados ao mau humor, ao desprezo, ao destrato, ao tanto faz do anonimato das ruas. Serei novamente endereçado àquela próxima esquina na travessa João Pinto a senhores bêbados que se expressam sem a mínima vontade ou emoção, ou pior, poder ser golpeado por camelôs, compradores de ouro, moradores de rua ou trabalhadores desprezados por antigas obras, ou pessoas afortunadas esnobes, que se acham melhores do que todas as outras, pessoas que andam de nariz empinado contra o que representar classe abaixo delas. A violência urbana é uma constante, está presente de rua a rua. E bastava eu, apressado, conduzir passo pelo mesmo caminho naquela travessa central da João Pinto, para encontrar um catador a fuçar uma lixeira e afirmar para sua provável companheira que "isso vem desde a escravidão pelos brancos safados", afirmação da qual minha mãe e eu tiramos concordância. Seja qual fosse o tema que ele, conhecedor básico da História, afirmava relutar desde a escravidão, provavelmente teria razão, pois este é o Brasil, o país dos processos mal-resolvidos. Da escravidão, da ditadura e da reabertura democrática, que encontra tantos limitadores em nossa frágil democracia.

Democracia. Espero ser esta senhora, no Brasil com idades questionáveis até anterior a núpcias, respeitada pelo meu bom vendedor. Penso no antagônico que é trabalhar com a venda de livros e de repente ser um cidadão não só de direita, mas de extrema direita. É claro que há muitos volumes e até bons deles, como os do peruano Mario Vargas Llosa, escritos por pessoas afinadas com o discurso à direita. Mas não deixo de pensar que é curioso, triste até, que pessoas ligadas aos livros possam replicar ideias até da extrema direita, como é a situação vivida no Brasil nos últimos anos. O bolsonarismo tão forte no estado de Santa Catarina pode encontrar replique nas palavras de meus escolhidos escritores locais ou mesmo nos gaúchos - ou de outros estados brasileiros. Pesquisa recente aponta que somente o Nordeste enquanto região já confirmou votação maioritária a Lula na próxima eleição. As demais regiões brasileiras, nas quais se encontra o Sul, estão indefinidas. Mas Sudeste, Centro Oeste e Norte não escapam desse paradigma. Pois bem, fico matutando sobre a possibilidade de meu nobre senhor conversador da rua João Pinto ser um bolsonarista. Espero que não. O Portal do Saber, nome que ele estampa em seus folhetos, e provalvemente em algo que chame atenção em frente à sua loja, não combina com o portal das censuras, dos dissabores democráticos, das desgraças oferecidas pelo desgoverno atual, que completará seu ciclo ao final de 2022.

Além do mais, fixou-me também a dúvida sobre a mulher que lhe acompanhara ser sua companheira ou apenas funcionária. Inclinaria meu palpite para primeira opção, assim ganhando força minha tese de que ali, naquele cordial senhor de encantadores e aprazíveis modos, não está representada a figura do bolsonarismo. Já não posso mensurar o tamanho de minha infelicidade em descobrir, caso um dia descubra, que ali conversava e fazia negócio com um bolsonarista, pois muitos daquela porta para fora assim são. Mas aí novamente estou relegado, labirintado com minhas expectativas, embolando-me em campos distintos da ciência e da comprovação. Sem saber a verdade - e no que me interessa? - crio expectativas que podem não ser correspondidas com a realidade. Espero realmente não ser tomado de assalto com o dissabor de uma descoberta de mais um bolsonarista em nosso cotidiano. Procurei afastar-me de todos quanto possível, mas é óbvio que convivemos com eles diariamente. Acontece, volto a ressaltar, que aquele senhor de aspecto tão amigável, acessível e desembaraçado em ajudar, me decepcionaria em muito caso confirme um bolsonarismo convicto. Assim torcerei eternamente, enquanto me perdurar essa dúvida, que ali não se tratava de um eleitor do pior de todos.

E eles estão por toda parte, como é fácil ver através das manifestações de bandeiras brasileiras pelas sacadas enriquecidas dos prédios que contornam o fluxo constante da Avenida Beira-Mar. Bandeiras do Brasil hasteadas, nesses tempos, e em outros tempos do 'ame-o ou deixe-o' representando apoio aos mandatários de instituições militares ou ligadas ao militarismo. Olho para elas, mas vejo o sol hasteado no lado oposto da avenida, sobre as águas, desbotando-as e me tecendo a certeza de que tão logo eles serão derrotados eleitoralmente. Mas, como constato em mais um dia em Florianópolis, não será fácil derrotar esses safados - alguns de resultados expressivos desde a escravidão.


Apêndices

Percebi o que me encabula de um bom atendimento. Estou acostumado a somente resolver as questões comerciais ou empregatícias a que me disponho e logo me livrar das pessoas, porque sou tímido e naturalmente encabulado. Um bom atendimento, uma boa explicação, muitas vezes sem que eu a peça, isso acaba me pegando desprevinido. Fico levemente constrangido e ao mesmo tempo agradecido pelo interesse o qual a pessoa me presta. Me sinto bem atendido, bem acolhido, bem tratado, o que, volto a dizer, não é a dinâmica do mundo, não em seu cotidiano, não nas grandes cidades.

Assim fiquei pensando naquele senhor de atitudes tão amáveis e como será que constitui lucro naquela venda de produtos antigos, em que a maioiria dos jovens se desinteressa por livros, CDs e DVDs. Espero que obtenha sucesso, mas situação que ponho em crescente dúvida, pois aquela travessa de tão poucos transeuntes, aquele espaço acinzentando de pouca recepção solar (ou será porque aquele dia estava nublado?), tudo isso vai em direção a pensar que a recepção de haver público não é muito animadora. Espero também que o preço do aluguel não seja muito, assim facilitando a obtenção de crédito com a loja.


18/04/2022

Nesses dias cinzas

Um pássaro esgravota no telhado vizinho. Não sei o que ele procura, mas ele encontra. Ele é mais bem preparado do que eu.

Me tornei um adulto frágil. Tão frágil quanto meu guarda-chuva pelas esquinas de ventos imponentes da rua 15 de Novembro. Ele enverga, se dobra todo. Eu ando corcunda, tentando passar despercebido pelo mundo.

O pássaro consegue o que procura e voa para outro telhado ou para seu ninho, para onde deve ir. Eu não sei o que procuro, não sei se consigo e continuo a vagar envergado, dobrado pela umidade e chuviscos da rua 15 de Novembro, desviando das pessoas protegidas pelas marquises, recolhendo meu guarda-chuva no espaço estreito entre as paredes e os postes. Cuidando os novos sinais de trânsito que indicam quantos segundos nós temos. Sem saber quanto tempo temos nesses dias cinzas.

03/03/2022

Misturas

As cores da natureza

O cinza das cidades

Se misturam 

É a realidade 


As cores que já existem

As cores que o homem cria

Animais confusos 

Cruzam muros

Todos os dias


Pássaros improvisam ninhos 

E caminhos por onde voar

Voam para fugir da chuva

Nos avisam melhor que o celular


Bichos que cruzam a estrada

Testam a sorte sempre ao cruzar

Cruzam e se reproduzem

E induzem outros ao lado de lá 


Bichos humanos procuram motivos

E abrigos para descansar

Vivem a violência das ruas

Ratos, baratas e seus semelhantes

Adivinhe qual vai te atacar 


Bichos humanos procuram sentido

E motivos para levantar

A fome de comida já não basta 

Mas não passa em outro a esperar




31/01/2022

A enterrada

Relação de estar lúcido, raciocinando sobre o sonho, mas ainda não estar totalmente acordado. Como o que se diz de um sonho dentro de outro sonho. Consegui enterrar no basquete. Consegui encontrar pessoas do Jornalismo. Percorri a pé minha cidade em busca de minha antiga casa e haviam feito crateras na rua, para escoar o esgoto, em um serviço porco, mal feito, com os dejetos a céu aberto, difícil de acreditar. Falta de respeito com o contribuinte, com o dinheiro dos impostos, a Gonçalves Chaves com seu calçamento detonado, cortado por uma linha bizarra que abria caminho para o subterrâneo esgoto. A linha que prosseguia incômoda como uma rachadura numa parede e talvez eu mais a percorresse por curiosidade de onde acabaria tamanho absurdo. Mas obviamente terminaria na casa onde morei a suprema maior parte de minha vida. E o panorama lá nada melhorava, com a confusão cloacal. Cruzamos por um vizinho, antigo vizinho, morador da região, apenas sabíamos que ali morava porque saiu logo reclamando, indignação que logo compartilhamos. Declarou sobre o absurdo daquele córrego defeituoso, imundo, gerador de asco. Replicou nossa prévia ideia de desrespeito com o contribuinte através dos impostos.

Este era o desfecho asqueroso de um sonho um pouco menos assim. Começou até promissor. Jogávamos basquete no ginásio da escola. Seria um jogo que combinei marcarmos em algum dia inexistente, marcar de marcar, com João Antônio, pela internet. O assunto com ele surgiu porque mencionou em um jogo da NBA que o time do jornalismo, nos jogos da Universidade, mesmo atuando com apenas quatro, era mais digno. Dali puxamos assunto. Me ofereci como participante em futuros joguinhos que desde a conversa já consideramos impossíveis de ocorrer. Quase ninguém liga. Pois ainda imaginei muito mais.

Estávamos com turmas antigas formando time. Havia apenas seis em quadra à espera do início. Era horário marcado no ginásio. Propusemos um infeliz 3x3 em meia quadra. Como correr a quadra inteira com apenas três jogadores em cada time? Aí já estávamos batendo bola. Meus arremessos curtos e sem força, e sobretudo sem noção da distância até o aro. Aí chegaram mais dois e começava a se ajeitar o jogo. A bola de basquete ora virava de futebol, ora voltava a ser de basquete. Ora a chutavam, ora a buscamos novamente só com as mãos, como a boa regra do jogo. Eu já havia saltado no aquecimento, um salto preciso, voltei a me pendurar no aro de basquete, Shaquille O'Neal de meu vasto imaginário. A trave, a sustentação da estrutura, tudo balançou sob meu triunfo. Fiquei muito contente por ainda conseguir saltar bonito, como sempre consegui e chamei atenção. Eu talvez fosse o melhor saltador em altura na escola. Mas não gostava de fazer o ritual do início dos jogos de basquete. Não gostava de jogar de pivô. Não gostava de pegar rebotes. Não gostava de arriscar saltos por cima dos perigosos degraus em piscinas. Mas saltava muito, demais em altura. Por isso, apesar da minha faixa de estatura, conseguia alcançar o aro.

Mas recordei, lúcido, que não conseguia alcançar o aro enquanto manobro a bola. Ou seja, eu não conseguia enterrar. Mas dessa vez consegui. Colega meu lançou a bola em um chute de três dedos. Peguei a bola no alto, na altura da cabeça, mais ou menos, e fiz o movimento, os chamados tempos, passos rítmicos em direção à cesta. Consegui subir à altura quase do aro e apenas largar a bola na posição correta para dentro, mas, com a bola já emaranhando-se na estreita redezinha, antes de cair de volta ao solo, eu ainda subia, senti como se o ar me permitisse mais um salto dentro do salto e alcancei o aro, talvez até com sobra. Será assim uma enterrada? Provavelmente não. Mas a sensação foi. 

Após a enterrada em que dali recebia os respeitáveis aplausos pelo salto, o movimento, a cesta, todos bem concluídos, eu estava fora da quadra. Chega! Basta de às vezes chutar a bola, às vezes jogar basquete seguindo as regras direitinho. Encontrei pessoas ligadas ao Jornalismo em um quiosque, o que me poderia fazer pensar que se tratava do mercado público de nossa cidade, ideal para acomodar encontros boêmios como o da ocasião. Ou ao menos é o local que recorro à memória para aderir a um quiosque fora de praias. No meu convívio seria no mercado, enfim.

Encontro pessoas ligadas ao Jornalismo. Tento descrever a façanha recém (?) executada de enterrar a bola de basquete na cesta. Ninguém parece ligar. Percebo que me encontro tentando narrar a cena pela segunda vez para eles. Mas ninguém dá bola. Pessoas vêm, pessoas vão daquela mesinha, pessoas cumprimentam outras pessoas mais do que a mim. Azar é o meu. Fico perdido entre os vácuos e meus pensamentos, levando comigo somente a façanha de ter enterrado uma bola de basquete e, talvez, o gosto amargo da bebida, bebericada a cadinhos no copo que eu pareço jamais ignorar.

12/01/2022

O Esmo Nunca é o Mesmo

Estava pelas ruas escuras de nossa noite. Identifiquei uma das praças centrais, embora ela estivesse mais reta do que qualquer lembrança. As árvores passavam total aspecto de escuridão e sombreamento. Para tentar me situar no meio daquele tabuleiro, contornei a praça em busca de uma direção. Completei o perímetro ainda perdido. Saí para o lado que considerei conveniente, com o coração ofegante de quem criou alguma expectativa, nem que fosse a preparação para enfrentar o medo de circular errante por ali, sem uma garantia de segurança. Conforme eu avançava meus passos, a obscuridade do findar do dia me perseguia e a penumbra era como uma capa que agora vestia toda cidade. Consegui em linha reta prosseguir e desafogar-me de um pesadelo em outro. Dessa vez eu sabia onde estava, no meio de nossa avenida principal. A copa das árvores era mais alta do que a praça da primeira parte de minha perdição. Porém, saber onde estava em nada significava segurança. O lampejo da familiaridade proposta pelo conhecimento deu lugar no segundo seguinte à consciência de estar em uma zona perigosa. Naquela avenida, precisamente naquelas quadras qualquer gangue poderia encontrar-me. Qualquer dupla mal intencionada poderia derrubar-me e levar-me os pertences, ou mesmo surrar-me pela mais pura adrenalina e diversão. Aqueles jovens de ambições confusas e violentas. Eu procurava seguir passeando como se estivesse confiante, de destino certeiro. Ou será que era melhor transparecer o espírito vagabundo que cobria àqueles jovens? Me misturar no recinto a céu aberto? A luminosidade dos postes não prestava cócegas à tamanha escuridão. Afundei minhas mãos nos bolsos da jaqueta. A bem da verdade era uma noite também de calor. Um cassino, ou melhor, um fliperama concentrava a atração maior. Além de ajuntar mais gente, também correspondia ao maior acúmulo de luz elétrica e, não por acaso, iluminação. As luzes praticamente cegavam aos desavisados. Menos àqueles jovens que estavam prontos para qualquer desafio. Ou ao menos assim aparentava, enquanto meu pobre coração voltava a subir marchas em disparada. Nem caminhar rápido demais para atestar medo, nem devagar demais para possibilitar uma maior ação deles todos suspeitos. Assim flutuam as ideias paranoicas que em nossas desventuras encontram porto. Por mais que colocar pessoas inocentes sob suspeita represente um preconceito que deveríamos combater, o modo de defesa naquele caminho falava mais alto. Consegui sair da avenida na esquina do posto de gasolina mais movimentado. Os motoqueiros arrancaram em ronco ensurdecedor. Os frentistas terminavam cada abastecimento com a cabeça baixa de quem não gostaria de visualizar alguém nos olhos. A resignação do trabalhador naquela zona de possível estopim de conflito. Era possível que a qualquer instante algo pesado e tremendo ocorresse. A atmosfera do ar dificultava a respiração fluente. Ou seriam somente os efeitos de meu medo iminente?

Pois consegui sair da avenida aquela pela rua do posto que fundia, na calçada oposta, com a maior igreja por aquelas bandas. Uma envidraçada em formato de enorme caixa, com vidros espelhados que faziam-nos deparar com nossos próprios vultos naquele limiar noturno. Deixei também a igreja para trás e as próximas referências eram somente os pontos de ônibus. Para minha surpresa a luminosidade voltava a orquestrar meus passos. Pisava com maior precisão, com maior certeza. Olhei pelos arredores para uma cidade de pouca movimentação. A loucura daquele barril de pólvora parecia ter passado. O céu tomava uma coloração acinzentada, como uma lata de tinta misturada entre azul, cinza e branco. A precipitação de chuva parecia evidente. Me atingiria a qualquer instante. Pude passar por uma feirinha em formato de camelódromo, onde algumas bancas estavam abertas, mais pessoas caminhavam, barulhentas, a conversar alto. Algumas delas estavam fantasiadas. Era como um grande festival, mas eu não possuía objetivo concreto. Procurei por alguns vídeo games que há anos não jogava. Estranhei o formato das bancas de jogos que estavam bastantes vazias, esquivas de opções relevantes. Só fariam com que eu comprasse algo por muito ato de engambelar. Preferi agradecer da ajuda que uns tentaram prestar e seguir adiante, tomando meu rumo. Subi pelas entranhas novamente do centro, com a impressão de que agora prosseguia novamente para a região do início sombrio de minha jornada. Caminhava eu em círculos? Passei pela rua de muitos ônibus, aquela que retirava as pessoas do centro rumo ao chamado bairro-cidade. Em uma linda fachada de prédio, que agora bem me recordo, sempre me chamou a atenção, havia o anúncio e a promessa de uma grande festa com apresentações musicais de qualidade duvidosa. Mas consultei o relógio e percebi que ela só começaria mais tarde. Ou seja, o jeito era gastar sapatos mais tempo por aquele espaço de pouca margem para erros. Consultei o relógio mais duas vezes para certificar que nada poderia ser feito. Maldita encenação e matação de tempo. Por que não caminho de volta àquela praça sombria, onde tudo de tão mal começou? Ora essa, foi exatamente o que fiz. Mãos novamente enterradas no bolso e pernas adiante. Quando saí daquela zona mais conturbada do centro, peguei um trajeto de rara elevação em nosso município. Uma chamada lomba, como diriam os porto-alegrenses. Relativa colina, subida pouco íngreme, mas não ignorável. O contorno era ao lado do maior hospital regional. Ao menos acredito eu que seja. Escrevo este relato alucinado e ébrio de meu próprio sono. Qual não foi a minha surpresa quando entrei na rua com nome de almirante e percebi a presença de um pedinte. Ele me perseguiu apressando os passos até alcançar-me. Foi logo falando em linguagem acelerada.

- Uma moedinha, meu amigo, por favor, sabe eu, não pense mal, você me conhece. Passei por você várias vezes. Sei qual é a sua. Saiba também qual é a minha. Não sou ladrão, veja bem. Meu aspecto pode confundir mas

Ele seguiria nesse ritmo e nessa ladainha por quadras, após vencermos a presença de todas as repetitivas pet shops daquela rua. Eis que ainda monossilábico e louco para livrar-me de tal intrusivo personagem, fui perdendo o raio da paciência quando o mesmo, após estar totalmente virado em minha direção, acabou não percebendo a chegada de um carro, que o colidiu com tudo. De imediato, surpreso e quase em estado de choque, pensei que a batida poderia até vitimar de forma definitiva o rapaz.

Perplexo, tentei prosseguir minha caminhada em busca de tempo ou do que fosse, mas logo mais e mais gente foi parando para tratar do assunto, se informar do assunto, na mais legítima legião da fofoca. Meu amigo de infância Igor parou com seu skate. Parecia um dos mais exaltados na rua. Talvez tenha me chamado. Uma comitiva agora me acompanhava como se eu fosse o culpado pelo fatídico acidente. Não o bastante, um policial veio direto em minha direção e me solicitando o par de pulsos para a convidativa colocação de algemas. Um querido. Novamente não bastasse a minha prisão baseada em não fazia ideia do quê, Igor Oliveira também acabou sendo levado. Parece que a polícia por ali recebia por quantidade de apreensões. E nós jovens suspeitos em lugar errado e em hora errada. Lamento informar-lhes minha desinformação quanto ao estado de saúde do pedinte tagarela. Se escapou dessa, uma das lições seria de olhar mais por onde anda. Talvez eu devesse torná-la para mim. Após tanta caminhada sem rumo, a esmo, como se diz. Quanto ao motorista culpado da performance, também não sei afirmar o que houve. Talvez tenha pago propina e sido liberado. Só não passaria totalmente impune pois as marcas da colisão com certeza se fazem presentes na lataria de seu veículo. Mas isto é apenas eu supondo.

Chegamos à prisão encaminhados por bem humorado policial. Ele estava neste estado de espírito contemplado pela promoção ou gratificação que iria receber por encaminhar tão perigosos jovens desordeiros. Se tomassem nossas acusações baseados em ficha criminal ao longo da vida, talvez jamais houvéssemos passado do consumo de maconha.