29 de abril de 2020

visão dos muros sob minha ótica

Os muros, construções soerguidas ademais pela paranoia da timidez. Estamos sempre levantando novas estruturas que nos reprimem e afastam. Nesse exercício ensaiado a seguir, algumas relações das paredes muradas em quintais e a relação paranoica a elas atribuídas.

Antes de mais nada, recordo das memórias infantis em que, por uma determinada época, como muitas vezes minha mente pregou-me peças, eu desenvolvi uma sensorialidade para com as paredes pichadas e grafitadas, na época ainda não atribuindo a diferenciação entre piche e grafite. Tinha um verdadeiro pavor de ver as paredes assim. Quem diria que anos depois eu teria regulada paixão por fotografar e decifrar códigos nas mesmas? Mas, até então limitado de várias maneiras quanto a essas interpretações possíveis, o medo cobria-me como os traços e riscos cobriam aquelas superfícies urbanas. Algo na escola também transmitia isso, envolto com o fundo das salas repletos de manuscritos, o tampo das classes que terminavam o dia assim para trabalho extra às funcionárias e aos funcionários da limpeza. Isso muito me desagradava, sem dúvida.

Ainda em estágio de superação ao trauma mencionado, passei eu mesmo a desenvolver desenhos abstratos, geralmente monstros, sobre os criticados tampos das classes escolares. Desenhava em aulas tediosas ou ao terminar os testes, as provas, sendo impedido de sair para o pátio, para não perturbar outras salas ou discutir as respostas. Eram tempos para desenhos que muitas vezes apareciam no verso das avaliações. De qualquer forma, seguiria a discordar sobre deixar como vestígios essas representações que logo seriam apagadas. Mais serviriam castelos de areia à espera das marés do que aquele verdadeiro desperdício de meus materiais escolares e de produtos de limpeza da escola. Arte tão brevemente existente e logo censurada pela arrumação.

Pela cidade, as pichações e os grafites se multiplicavam. Certa noite na infância, sonhei que haviam invadido nossa casa e pichado as paredes dos fundos, todas brancas. Um pesadelo. Isto se deve a uma verdadeira situação em que algum jovem mal intencionado desenhou alguma besteira em vermelho na coluna que sustentava nossas grades da frente. Minha mãe obviamente enrijeceu com aquilo e tratou de limpar a panos o mais depressa possível. Ela raramente saía de casa, de modo que quando voltamos de alguma visita, a tinta ainda devia estar fresca e o responsável pelo tormento não muito distante. Mas não chegamos ao ponto de procurar com o carro no encalço de algum suspeito com lata de spray, canetas especializadas ou mochila com a qual pudesse esconder algum desses equipamentos. A limpeza foi feita e permanece intacta, com exceção de novas mãos de tinta propositais, provenientes de nossa manutenção. Em resumo, não houve outro incidente do tipo.

E, mesmo em sonho, eu não recordo de novo acontecimento a respeito, o que me agrada, pois há tantos problemas no mundo mais severos do que esse trauma que considero superado, caso me levantem a questão de perguntarem sobre. Porém, ademais das pichações ou grafites, os primeiros às vezes criminosos, às vezes heróicos das calles, os segundos muito mais caracterizadamente artísticos, ademais dessa situação, o assunto em pauta são a presença dos muros.

Também para o saldo de minha infância, esse cofre em que empilhamos tantas moedas e, ao rebentarmos anos depois, percebemos a inutilidade de tanta coisa que foi acumulada sem nexo. Ao menos assim muitas vezes me parece. Desbravado ao conhecimento o cofre da infância, analisado pormenorizadamente agora, de lupa, de lente de aumento, sob uma nova luz de lâmpada precisamente posicionada, vemos o enfileiramento de muitos muros que nos fizeram parte, como uma corrente de dominós, toda conectada. Os muros de minha casa tinham um papel protetor fundamental. Quantas vezes ouvi minha mãe contar da vez em que, logo aprendendo a correr, após caminhar, eu menino disparei portão para fora em direção ao meio da rua, correndo imenso risco de ser atropelado? Quantas vezes ouvi? Mas tudo me passou bem, dentro daquele possível, me aperceberam naquela situação fragilizada e recolheram-me o mais depressa para casa, sob duras palavras, que jamais lembrarei, e safanões e promessas daquilo não se repetir. De minha recordação, não se repetiu. Não, nada de tamanha ruptura aos portões guardiões de minha intacta segurança residencial.

Certa vez lembro de ter aberto a porta à noite sem verificar o chamado olho mágico, que provavelmente eu nem alcançara com minha altura à la pigmeu. Tomei outra série de duras e safanões nas palavras de minha mãe, que voltava de um de seus passeios, este na companhia de minha vó, tia e outras pessoas de convívio familiar. Abrir a porta, antecipando a chegada de meu pai, foi o ato irresponsável da vez. De fato, era crescente a violência do fim dos anos 1990 e início dos anos 2000.

Sobre a primeira escapada, a pelo portão da garagem lateral aberto, com idade que não me recordo, somente sei da história por repetirem a narrativa do perigo daquele acontecimento impensado. Havia o risco do atropelamento na movimentada avenida que cortava o bairro e também esse risco de rapto e recompensa, logo pensava eu na época, na minha tentativa de estabelecer sentido a essas situações. Anos depois, nessa nova ótica empírica, atenciosa sobre o cofre desmembrado da infância, é que nos damos conta de perigos maiores, aqueles que muitas mulheres ainda sentem ao saírem em psicológico inseguro para rua. Aquele crime mesmo. Esse que estás pensando. O crime que talvez mais gere debate sobre a pena ou não de morte e que, eu em absoluta conduta geral contra, até me inclino a concordar com as pessoas mascaradas de tochas, em busca da condenação maior ao infrator imperdoável. Quando se trata de uma indefesa criança, então...

Dos muros de casa para os da escola. É como relembrar a primeira vez que nossa mãe nos deixa aos cuidados de terceiros, geralmente uma pedagoga, uma terceira, uma chamada "tia", que você aprende com os colegas de pré-escola que é como deve chamá-la. Eu não chorei. Lembro e contabilizo pouquíssimas vezes em que verti lágrimas publicamente no ambiente escolar. Não chorei, mas recordo que pensei que aquilo demoraria um longo, longo tempo. Tive razão e não tive. Foram tardes inacabáveis? Foram. Mas delas agora pouco me lembro ou interferem de como estou finalmente aqui. Cada uma delas, em específico? Muito pouco a acrescentar. Da Marlene que cuidava a porta e faleceu às aulas de religião que eram sempre as mais tardias do turno vespertino, em que as crianças faziam as atividades de qualquer jeito enquanto eu me dedicava talvez em empatia e complacência com a esforçada Rosângela, educadora que pouco atraía nossa descortinada atenção.

Dos muros da escola, poucas vezes ultrapassados a pé pelas ruas centrais, recordo quando aguamos as plantinhas que enfeitavam o canalete ao lado. Um de nossos colegas deixou cair o baldinho para aquela torrente água suja. A professora até hoje deve incluir em suas preces o agradecimento por não ter sido o desatento amigo a ter despencado daquela possivelmente mortal altura. Nos espremíamos pela estreita calçada e até nos comportávamos, pensando hoje, sob a ótica diferenciada no cofre da infância. Em outras vezes rompíamos aqueles muros rumo a excursões maiores, como passeios a museus biológicos ou históricos, ao exército, a passeios rurais e fazendísticos. Mas sem o perigo de cair um outro balde ou criança dentro da vala do canelete.

Para os últimos tempos dessa vida, já recolhidos os cacos do observatório empírico da infância, a lembrança dos muros após o impacto da canção "muros e grades" dos Engenheiros do Hawaii. Impactante saber que a famosa Revista Billboard incluiu a canção entre as mais inteligentes de que se há ouvido falar, o que me orgulhava e felicitava pela banda, dona de vasto pedaço de meu coração musical em apresso. Nem parece que hoje um ex-membro se dedica a defender o pior presidente democraticamente eleito da história do país; quiçá do mundo. Mas enfim. Os muros e as grades nos protegem de quase tudo, mas o quase tudo quase sempre é quase nada. E o que nos protege de uma vida sem sentido?

Paranoico na destopia famosa do 1984, quando Orwell previa o formato dos reality shows mais famosos do planeta, lotados de edições ano após ano nos mais diversos países, campeões de audiência ainda no Brasil, mesmo passados mais de 20 temporadas do começo. Esquisito nos meus hábitos e costumes, seguidamente me pego pensando como seria se eu fosse pego nos meus hábitos e costumes. O jeito como me olho ao espelho, como invento coreografias, como seco as mãos carregadas de suor, raciocino estranho, mirando para o nada, visto a camisa primeiro pela gola, depois pelos braços, tudo isso para ser julgado e, modisticamente falando, cancelado pelos plantonistas que veriam minhas imagens captadas pelas câmeras. Ruim pensar como é a rotina de um animal em zoológico. Suas limitações de habitat, de espaço, sua existência confinada somente para deleite de quem pagou ingresso e espera que mexa-se e faça truques. Pior aos de circo.

Pelo caos pandêmico do ano de 2020, encontro-me saboreando a visão dos muros de meu quintal, estes, de minha nova morada, mais baixos do que da casa que sempre habitei. Fico exercitando a paranoia mais do que meus magros braços. Com a paranoia me coloco a pensar se estou no campo de vista do casal de idosos vizinhos, como se estes não tivessem também coisa melhor para fazer. Acontece que eu, desprovido muitas vezes de coisas melhores por fazer, observo por frestas o topo de suas portas, a de saída da casa principal e a da área destinada ao lazer. Enxergo a copa das árvores, da parreira e sei de cor (com ou sem acento - HA) algumas das roupas deles, dependuradas no varal, em bambus cujo o topo estão captados pelo meu campo de visão. Não consigo evitar vê-los. Vou para o quintal e presto atenção nesses detalhes sob o céu azul ou cinza. Observo o telhado das casas e divago para o máximo que esse horizonte me permite: três ou quatro casas vizinhas, algumas árboles na paisagem e um dos prédios mais altos da cidade, onde moram muitos jogadores do principal clube local, isso bem adiante. Usufruo desse espaço para tomar sol, garantia de vitamina D para os detentos da quarentena.

Como os muros aqui são mais baixos, o alcance da voz dos vizinhos, inclusive o timbre insuportável do garoto menor, neto deles, chega aos meus ouvidos. Tímido que sou e ressalto, me esforço para minha caixa de pensamentos, mais ou menos suicidas, mais ou menos homicidas, mais ou menos distópicos, fiquem comigo e com o papel e não em voz alta. Perdi o medo das escrituras nas paredes em pichações, mas permaneço interiorano ciente de que as paredes têm ouvidos. O sábio rapper Black Alien de Niterói avisava que no confinamento as paredes são páginas de cimento. Babylon on, Baby.

Paixão Côrtes e Peter Fonda

milonga da terra e do pampa
sobe a serra, outras tantas
atmosferas, ar tão rarefeito
pros efeitos do galpão

dessa estrada cortada por tordesilhas
colho nada, nenhum ouro
meu tesouro é voz e violão
dessa estrada cortada por tordesilhas
eu sigo pelas coxilhas e canto sobre esse chão

milonga da guerra e da bomba
do chimarrão
queria uma tarde inteira
sob a sombra da figueira
pra escrever outra canção

milonga, paixão côrtes, peter fonda
estrangeirismo que amedontra
os filhos da imigração
no lirismo de algum veríssimo
eu te peço o meu perdão

milonga da terra e do pampa
sobe a serra, outras tantas
atmosferas, ar tão rarefeito
pros efeitos do galpão

samba triste

samba, samba triste
com semblante amarrado
e o dedo médio em riste
mais milho para as pombas
invejando o teu alpiste

na rotina
da esgrima das almas
eu te peço muita calma
pra manter a guarda em cima
mas atento a cada movimento
o golpe baixo é a sina dessa fauna

a bruma que cobre cada dia
faz do dia a poesia
e a pessoa mais aluna
em suma preste atenção
em cada lacuna
que para o aprendizado
não se escolhe ocasião
não, não

samba, samba triste
com semblante amarrado
e o dedo médio em riste
mais milho para as pombas
invejando o teu alpiste

com a caneta fraca
mas a mente ainda exata
meu palpite é terminar
terminar o samba triste
de semblante amarrado
preocupado com a covid

26 de abril de 2020

Jeca Pila

Jeca Pila, logo se vê, não é um apelido qualquer. Não, senhoras e senhores. Jeca Pila era uma mistura de interior brasileiro afixado no estado do Rio Grande do Sul. Não que o estado mais sulista não tenha interiores, pelo contrário, possui mais do que os vizinhos, mas apercebe-se o choque cultural decorrente entre um e outro, compreende?

Pois bem, Jeca Pila era natural do município de Curitibanos, em Santa Catarina. Apesar do sugestionável nome em referência à capital paranaense, este terceiro estado citado fica de fora de nossa história. Curitibanos ficava ao centro das terras catarinenses e a cidade em questão não ultrapassava os 40 mil habitantes. Um deles, Jeca Pila, lobisomen da família ao ser o sétimo de um total de 13 irmãos, foi parar em terras longínquas através da força da labuta. Pegador na enxada desde cedo, logo evoluiu de ferramentas e trabalhava com consertos em geral. Martelou e serrou de tudo, menos os dedos, os quais conservava cinco em cada mão, apesar da coloração escura de suas palmas e dedos, o que lhe conferia vergonha para cumprimentar figuras mais ilustres, inclusive os próprios engenheiros-chefes da companhia.

"Não adianta lavar que isso ficou de herança dos sete anos em que trabalhei com o couro." E era verdade. Apesar da sua inquestionável versão da história, Jeca Pila mantinha a verguenza de deparar-se com os honráveis ocupantes da câmara dos vereadores, atendentes do comércio e do despacho dos correios e, reza a lenda, inclusive constrangido de receber encomendas dos vestidos de azul e amarelo. "Correio!" e lá aparecia nosso herói cabisbaixo querendo o mínimo de reconhecimento possível. O nome exótico aqui preservado também não ajudava. Não, vamos difamar o nome do sujeito, sim, que os correios todos conheciam muito bem: Juberlan Aquiles. Jeca Pila para quem ia tratando de conhecer.

Juber... Jeca Pila, melhor dizendo, conheceu os mais diversos estados brasileiros, fato que muito lhe orgulhava, diferente das mãos enegrecidas pelo couro. Fumava a palha e contava das aventuras pelas terras de Alagoas, Maranhão, Rondônia e Goiás, estado que para mulher bonita jamais viu igual, frisava. Minas Gerais chegava perto, mas ele queria mesmo era ter casado com uma goiana chamada Carla, estudante da capital Goiânia que ele conheceu em festa bem quista na cidade grande.  Às vezes suspirava a lembrar dela. Jeca não tinha Pila nem oportunidade de ficar por lá após as viagens feitas na empresa de fretes e mão de auxílio para construções. Matando esses coelhos em paulada só, Jeca Pila aprendeu diversos sotaques do território nacional brasileiro. Carla, moça simples de família humilde, com traços índios dos antepassados da mãe, que moravam de Tocantins para riba, rumo à preservação cada vez menos preservada. Nisso, além da saudade da Carla o Jeca Pila suspirava pela devastação da Amazônia. "Tristeza que até hoje me abate", falava cuspindo a palha.

Com essa fama de Jeca pelas origens no interior, o apelido circundou por algumas cidades e em outras passava batido. Sim, por haver a concorrência de muitos outros Jecas. Perdia a essência e a excentricidade. Como resolveu estacionar sua vida em casamento em Santa Maria, Jeca Pila ao mesmo tempo cravou no mármore dos apelidos que seria Jeca Pila hasta el final dessa passagem. A moça era amiga de sua pretendente, mas como a primeira não quis, Jeca Pila foi na segunda opção. Ou terceira, se contarmos a inesquecível goiana Carla.

Quis a ironia de porco destino que a santa-mariense devota fosse outra Carla, de modo que confusão de nome não haveria para o nostálgico Jeca Pila, homem de confusões mentais naturalmente. Poderia deixar a imaginação divagar ao passado sem receio de se desentender com a Carla gaúcha por invocar memórias latentes da inesquecível. Ligado no futebol que ouvia com o pai e os irmãos desde os radinhos em Curitibanos, Santa Catarina, a vitória pessoal da Carla goiana fazia com que Jeca Pila relembrasse como o Goiás virou pedra na chuteira do seu Grêmio durante muitos anos, até eliminação no Olímpico acontecendo em Copa Sul-Americana em que o Esmeraldino do Serra Dourada acabou vice-campeão para o Independiente da Argentina. "E os malditos quase tiraram o Grêmio da Copa Libertadores seguinte", resmungava talhando uma madeira, ouvido por Adão e Jaime, seus amigos próximos.

Apesar do futebol e do Grêmio, sentindo-se em casa em Santa Maria, reduto de muitos tricolores, as paixões de Jeca Pila eram carros e, ele, é claro, o dinheiro. Jeca Pila não ganhou esse apelido por acaso, meus amigos. Ainda adolescente quando foi morar durante duas invernadas em Novo Hamburgo, na região metropolitana de Porto Alegre, o frio que passava com pouca roupa e o sopão que não dava conta de aquecê-lo o faziam reverberar em discursos empolgados sobre como seria quando tivesse a grana necessária. A pensão tinha que aguentar Jeca falar dos pilas que não tinha do amanhecer em café da manhã gelado até o esfriar do sopão. Não satisfeito, até o último apagar a luz, ainda estava Jeca - que ganhou a alcunha Pila nessa época - a tagarelar aos quatro ventos sobre sua futura travessia de milionário em outros pagos. Nem a Carla goiana podia competir com o poderio financeiro que emanava naqueles sonhos rechonchudos.

Jeca Pila nas caronas e traseiras de caminhão a incomodar motoristas, passageiros, colegas de trabalho e incluso os fretes em discursos do que compraria caso evoluísse da condição de ser o mero Jeca Pila, pau para toda obra. Não convencia muitos ouvintes, porque logo se via sua paixão desvairada por carros se sobressair à segurança que um imóvel poderia dar para uma Carla ou outra.

Jeca Pila demorou a ter um carro para colocar na garagem apertada e improvisada na casa que comprou com Carla, pedagoga auxiliada pelos familiares, que viam em Jeca mais um lunático do que um bom partido. "Ao menos Aquiles é um sobrenome bonito para Carla", alegava a mãe. "Gosto de falar com ele sobre carros", comentava o sogro do Juberlan. Mas enquanto o sogrão, melhor equipado, tinha um Corolla na garagem, nosso Jeca Pila tinha que se contentar com sua mais nova aquisição: um Monza do ano de 1994. "O ano do tetra, como bem me lembro", recordava com os fieis ouvintes Adão e Jaime, parte do cenário da narrativa, apenas comprovando que Jeca Pila possuía, sim, amigos capazes de suportá-lo por um bom período de décadas.

Mesmo desempregado da estatal em que era operário na virada do milênio, na passagem para os anos 2000, por conta de decisões políticas e cortes provocados por governo de direita, Juberlan jamais conseguiu enxergar diferença entre eles e alegava enquanto descascava alguma vergamota no alto inverno: "é para frente que se anda". E nisso, Jeca Pila, que precisou se arrumar em qualquer bico de serviço braçal, como começara a vida de trabalhador lá na infância dos anos 1980, precisou ser um santo com a Carla e sua família, cuidando até para a urina não errar o alvo a cada manhã. Se aliviava que trocar o nome foi enrosco que nunca ocorreu, mas isso já explicamos o porquê.

Jeca Pila reservava parte do estreito salário para se dedicar à pequena fé (fézinha ou fezinha, ambas ruins de escrita, né?). E jogou na loteria ano após ano, desde a adolescência de primeiros rendimentos. Melhor do que aplicar numa bolsa, numa poupança - ou imóvel, que os caroneiros lhe diziam e ele não dava bola - Juberlan tentou mensalmente acertar seis, cinco ou mesmo quatro números que lhe rendessem uma grana não antes vista. Mas ela continuava invisível, existente somente nos seus ideais capitalistas de sonhador. "Loteria mesmo foi eu ter achado outra Carla na minha vidinha", se contentava muitas vezes quando comia o almoço preparado pela caprichosa Carla, comia tanto que ficava triste, como direciona o ditado.

Entrou de vez para o mundo tecnológico quando aplicativos de conversa, em que além do Adão e do Jaime, companheiros da estatal que continuaram conectados na vida do herói do sub-mundo interiorano, conheceu muitas outras pessoas e começou a multiplicar contatos. Perdeu dinheiro em jogo de pirâmide e não quis mais. Descobriu brechós de coisas que caíram de caminhão, não ligando se quando ele trabalhava em caminhões muitas vezes tiveram a carga saqueada e o trabalho de dias era igual a voltar para casa sem tostão no bolso. Aproveitou outras vantagens que a internet, mesmo sob o sol e transparente e cristalina oferecia, longe da caduquice que certa vez ele ouviu falar de deepweb. "Jipe pra mim é carro. Ah, se eu ganhasse na loteria..."

Teve um casal de filhos com Carla, primeiro o menino Gustavo e depois a menina Patrícia. "Nomes dignos para eles, diferentes do meu, Juberlan, que isso até ofensa é, às vezes penso, embora ninguém possa me ofender que perco as estrideiras", confessava, em rara ida ao bar, para os santificados Jaime e Adão, para variar a ordem dos águas de poço. Lembrando que ele não podia nem mijar fora do vaso para não perder a bocada com a Carla e a família. Se bem que a situação dos filhos, com apenas dois anos de diferença cada um, com o casamento começando a comemorar bodas disso e daquilo, tudo isso assentava a possibilidade dele dedicar um cadin do salário para outras missões que não lotéricas. "Comandante, mais um milho gelado aos pintos" e bebia menos preocupado.

Preocupação veio quando conseguiu adquirir um aparelho de HD para a televisão da sala, mas Carla garantiu que era por conta dela e da família. Jeca Pila apenas deu de ombros e se afundava no sofá enquanto Carla procurava algo de decoração de interiores ou casas em árvores e beira de lagos nos Estados Unidos, coisas que eles apenas namorariam no cruel ramo da imaginação. Além do mais, ele gostava mesmo era da brecha no controle remoto para procurar por carros conversíveis, aros, calotas, modelos clássicos e "nada de rebaixados, que isso não é coisa que se faça nos coitados", quase chorava de desolação quando os via. "Vontade de furar os pneus desses maloqueiros todos."

Com um aparelho a mais, o de HD na televisão da sala, para se preocupar, com os filhos matriculados na escola para mais um ano, o Monza disputando espaço com os vasos de planta que Carla gostava de conservar no apertado pátio que servia de garagem, apanhando as filhas da fotossíntese mais dióxido de carbono e menos sol do que deveriam, com o celular já parcialmente rachado com ainda duas parcelas para pagar, o Jeca Pila nunca esqueceu do dia 26 de junho, quando finalmente, após todos aqueles anos, resolveu ligar para política pela primeira vez na vida, após anos querendo andar somente para frente, nadando quaisquer que fosse a maré.

"Carla, proteja as crianças, ligue para seus pais, certifique-se, mulher, que eles estejam bem..."
"Mas desgraça, Jejê, o que está havendo? Que bicho que te mordeu?"
"Os comunistas, mulher
... eles querem tomar nossas coisas..."

25 de abril de 2020

William Burroughs te abençoe

Tenho morado sozinho com minha mãe nos últimos anos. Você vai pensar que meu pai nos deixou, mas ele apenas morreu mesmo, que é alguma previsão possível fazer pelo lado da família dele. A expectativa de vida deles quando encontra a chamada terceira idade é de ir preparando os registros funerários. Pesado, mas é o que acontece. Faz alguns desses anos que eu fumo, então aceitamos cigarros em troca de histórias em bancos de praça. Queria ter vivido mais eventos como Forrest Gump, mas acho que o barato dele era correr rápido. Eu até que conseguia isso, correr rápido, mas conforme fui me tornando adulto as glândulas do suor disparavam e ninguém conseguia deter esses esguichos que irrigariam um gramado de futebol, tá me entendendo? Obrigado pelo fogo. Isso.

Meu avô também corria bem, conta ele, agora virando os 90 anos. O pai de minha mãe. Quando eu ainda o visitava, ele seguidamente contava sobre suas aventuras no exército, em provas de 100 ou 200 metros. Tirou medalha de prata em provas do município e arredores, servindo pelo 9º Batalhão, nome que ainda conservam na sede, basta passar na frente. Sim, naquela avenida que é a principal do bairro, tá me entendendo? Apesar de eu não ser fumante há muito tempo, já não lembro a última vez que traguei com vontade, sentir os pulmões fazendo o que estão prontos para fazer. A gente os maltrata, mas eles dão resultado. São como os oceanos ou os animais criados em matadouros.

Cara, assisti a um documentário que me deixou mal de um jeito, não aguentei 20 minutos. Eu nunca havia desistido assistindo a essas merdas, mas esse me derrubou. Sobre o que era? Ah, sim, era o documentário Terráqueos, com narração do Joaquin Phoenix, o mesmo cara que mora com a mãe fazendo o papel do adulto fracassado no filme Coringa. Este filme Terráqueos é sobre a relação dos humanos com os animais, daí você pensar na espécie que quiser. Eu não recomendo verem, não recomendo, eu não aguentei. As espécies, a natureza, elas estão fritas na nossa mão. A maior parte literalmente. Aquela história de comer morcego tem a ver com o vírus? Não lembro o que eles alegaram, mas nunca duvido. Uma conspiração de vez em quando faz bem, exercita o cérebro de um jeito... Aquele álbum do Offspring sobre Conspiração de Um, acho genial a ideia, me sinto conspirando sozinho muitas vezes. Vasculhei em sites na falta do que fazer e quase acabei levando a camiseta.

Estou gastando seu cigarro e contando nada? Vai precisar me fiar outro para sair algo, agora te prometo. Me dá esse mais amassado, viu como sou camarada? Não vai ficar com a última bolacha do pacote. Essa metáfora da última bolacha toda perfeita é Disney total, tá ligado? A última gruda na embalagem, fica toda detonada da pressão depois de carregar e descarregar o pacote sucessivas vezes, quando eu não esquecia da mochila. Sinto que quando eu como açúcar é que fico assim, divagando diversos assuntos, acendendo luzes na minha cabeça como uma imensa mesa de pinball.

Eu moro com a minha mãe desde a morte de papai. Era um bom homem, sobretudo para os outros, havia nada o que se falar dele por aí. Por muitos anos ele cuidou dos gatos de rua aqui do bairro, bem no final da nossa quebrada. Havia uma casa abandonada, uns terrenos baldios e uma grande antena de telefonia celular. Devia ter uns 30 metros de altura, mais ou menos como um monge em estátua que apareceu esses dias na televisão nesses canais culturais. O monge era bem exagerado, parecia querer se impor à força da escultura, no encaixe das pedras. Se um dia resolve deitar montanha abaixo, só para variar a posição caso dê uma cãibra, soterra centenas de fiéis em segundos. Todos os dias deve ter milhares de pessoas querendo conhecer o monge grandalhão no alto de uma escadaria lá por aqueles lados.

Mas os gatos, os pestinhas comiam tudo que sobrava de nossos almoços e jantas. Antigamente tínhamos rurais criações de galinha. Isso para fora e o galinheiro se saciava de todos os nossos restos, deixando nada para as pombas ou ratos; galinha é um animal devorador para valer. Come até pedra. Quando viemos mais para cidade, no beco dessa quebrada, os gatos foram os responsáveis por eliminar aquele restolho de comida da nossa consciência. Horrível sobrar qualquer coisa quando tanta gente passa fome, tá ligado? É por isso que a gente deve ser camarada e compartilhar cigarros, histórias, o que conseguir trazer conosco nesses tempos loucos.

Meu pai saía à noite para alimentar os gatos. Desde a morte do meu irmão, que eu tinha um irmão um pouco mais velho, ele passou a olhar diferente para mim, de modo que quase elimina toda a tirania dele nos anos anteriores comigo. Eu odiava cigarros quando mais novo, porque meu pai muitas vezes me queimou com eles, quando não me batia com o chinelo. Foram tempos de demissões em massa pelo país, mais ou menos como está ocorrendo agora, mas por outras causas, evidentemente. Mas a causa sempre é a mesma, meu, a ganância e o dinheiro. O dinheiro que traz a ganância, a ganância pelo dinheiro, tá me entendendo?

Tá me oferecendo mais um? Acha que mereço? Deve ter concordado com essa última frase, o que me alegra, percebe meu primeiro sorriso desde que nos vimos? Esse é original, é verdadeiro. Antes quis apenas parecer cortês, honesto, atrair sua atenção, mas agora já pode confiar em mim. A gente aprende a disfarçar bem sorrisos forçados tentando descolar alguma coisa nas ruas. Mas os músculos faciais se movimentam diferente dependendo da nossa intenção, da veracidade do fato. E, mais para perto dos olhos, pode ver a diferenciação nas rugas também. Meu irmão mais velho teve formação em biologia, fez um financiamento. Estava terminando de pagar quando o assassinaram por besteira na saída de uma festa. Um mal entendido. Ele nem era de se meter com mulher de outro, soube disso só uma vez. É, ele cursou biologia e não exercia. E aquele maldito financiamento. Mas não, isso do sorriso não aprendi com ele. Embora ele me deu muitos motivos para sorrir nessa vida.

Agora está tão duro viver aqui fora. Esfria e qualquer fogo ajuda, não? Não, não estou pedindo mais, apenas um comentário. Outono-inverno, tá ligado? Em seguida me recolho pra casa, tem o suficiente para jantar e minha mãe me espera. Me espera todas as noites. Está difícil ganhar a vida. Expressão idiota essa de ganhar a vida se só tenho perdido. Meu irmão naquela besteira naquela noite, foi em um sábado, nunca vou esquecer. Acho que peguei pavor de telefone depois daquela madrugada de incertezas, se era ele ou não, se estava vivo ou morto, até confirmarem tudo. Meu pai tinha ido até lá e ele mesmo nos confirmou, minha mãe chorando ao telefone da sala, porque desde a incerteza se era ele ou não, se vivo ou morto, minha mãe não conseguia dormir. Mas os documentos, o RG, a carteira de motorista, estava tudo lá, obviamente era ele, a gente só custa a entender mesmo.

Bom, meu ônibus deve pintar daqui cinco minutos, vou me encaminhando pra parada certa. Você me ouviu bem, às vezes a gente só quer alguém pra ser ouvido e você me ouviu muito bem. Quem deveria estar oferecendo cigarros era eu, mas você vai me oferecer o último e eu vou aceitar, parecendo aquelas crianças que acabam com as balinhas de brinde e a secretária sorri constrangida os pais não ensinarem limites. Meus pais deveriam ter me ensinado mais sobre limites: de como a vida é dura e o que eles construíram ficou para geração passada, a geração deles próprios e agora é minha vez de me acotovelar na concorrência hostil por algo, ônibus lotados, dias que começam cedo e terminam muito tarde. Há quem prefira o metrô nas cidades grandes, mas aqui não tem essa opção, nunca vai ter, e tudo nas capitais parece muito longe. Não saio para as capitais porque aqui ainda temos o imóvel que meu pai construiu e a minha mãe sempre me espera.

E os gatos me esperam, porque, apesar de um ter sido pego por um daqueles cachorros, um rottweiler, há meia dúzia ainda me esperando. Os laranjinhas hoje são meus favoritos, mas os tigrados me lembram a infância, depende como estou nostálgico. Hoje você me ouvir assim me deixou nostálgico, de modo que aceito, sim, o seu último cigarro. Dois minutos para meu ônibus, preciso ir. E ajeitar a marmita dos gatos lá em casa. Antes de irmos, já ouviu aquela música Dani? Dani foi escrita pelo Jimi Joe, mas eu gosto mesmo é do Wander Wildner. É uma das minhas favoritas. Que William Burroughs te abençoe, meu velho.

23 de abril de 2020

Túnel da Conceição

"O vocalista do Green Day, Billie Joe Armstrong, utilizou uma imagem de Porto Alegre, do Túnel da Conceição, durante a sua participação no festival Together At Home, na noite deste sábado. A foto da entrada túnel esvaziado apareceu ao lado de outras imagens de cidades na mesma situação. Billie Joe cantava “Wake Me Up When September Ends”, um dos sucessos do Green Day. 
Com diversos nomes famosos da música, o festival online é uma homenagem aos trabalhadores de saúde que atuam no combate à pandemia causada pelo novo coronavírus no mundo. Além da música, o evento também conta com a participação de profissionais de saúde, que intercalam falas entre as apresentações."
Fechadas as aspas para a notícia publicada no jornal gaúcho Correio do Povo, em 18 de abril de 2020. O túnel da Conceição invoca diversas lembranças e memórias em mim. É um ponto fácil de situar no confuso mapa de Porto Alegre. Para mim, interiorano, sempre difícil de identificar, mesmo depois do aprendizado das regiões e alguns bairros, muitas das melhores saídas e entradas, sobretudo no assunto trânsito. Pois tranquilamente localizo o agora mais famoso túnel em uma representação qualquer das aberturas de ruas e avenidas da capital rio-grandense.
O sentimento de familiaridade com o Túnel da Conceição aumentava a sua responsabilidade para comigo. Agora éramos conhecidos. Passar da Avenida da Legalidade, que insistem em branquear castelo, contornar a rodoviária municipal de Porto Alegre e logo engolir-se à escuridão das entranhas do Conceição. Aquela zona hostil margeada dos altos prédios, desacostume a quem vem do aberto pampa, do terreno plano monótono na cor que se estende até onde alcança o par responsável pela vista.
Todavia, o Conceição era um ponto de cores e até o californiano Billie Joe notou. Contrastante ou confirmante daquela atmosfera plenamente urbanizada? As cores que se desenham são as pichações e grafites por sobre a sua pintura original. Regiões hostilizadas por vermelho sangue, por branco sêmem, por redundante cinzenta cinza de cigarro, por escuros vultos que vagueiam no cair das noites. O amarelo cego dos faróis velozes, instantaneamente substituídos no vir e vir. Falta verde e sobram cores nas paredes. Conceição de mensagens legíveis ou não, entendíveis ou não, selvagens sim ou sim. Conceição da urgência, da emergência da ambulância que cada ambulante traz em si, em rituais silenciosos pela sonoridade ensurdecedora entre humanóides urbanos. Mas afinal, o que é punk rock? Um olhar do Billie Joe, um túnel da Conceição? O túnel é punk, o túnel é punk e espanca a visão; quando vazio, como nos preenche?
Carrego comigo, e na maior parte da família, apenas sobrenomes alemães. Um empréstimo polonês para a origem duvidosa dos Venzke, os estrebuchados poloneses apelidados de Venceslau a cruzar fronteiras no norte alemão. Fugindo à rasteira regra, o sobrenome de minha avó paterna era Conceição, mas meu pai e meus tios não possuem esse registro, levando com eles somente o sobrenome paterno, o alemão de meu avô. Obviamente que se fosse alterada a ordem para o sobrenome materno ter maior importância, a não ser que nós decidíssemos o ponto histórico dessa ruptura, toda a história poderia ser alterada em nomes e alcunhas e, por que não? apelidos. Não cabe a nós esse arrojado objetivo, mas pontuamos que os portugueses Conceição de alguma maneira estavam presentes nessa grande biosfera que é minha árvore genealógica.
Em tempos pandêmicos, como os ocorridos em 2020, a falta de notícias ou relevâncias, para além dos aspectos da saúde - ou falta dela -, tornaram grande acontecimento a aparição do Túnel da Conceição assim mundialmente, em evento dos mais mencionados do período. Uma vírgula de orgulho bairrista-gaúcho em meio ao período que pontuou o fim de tantas vidas. Pois bem, é que o Túnel da Conceição (esforçado orador em tossidelas para trocar de assunto - ou manter assunto), o Túnel da Conceição faz parte do cotidiano de milhares de portoalegrenses e metropolitanos que entram e saem da cidade diariamente. Mesmo aqueles mais desacostumados ao movimento pendular cotidiano, a recordação de fins de semana, idas e chegadas, sal e queimaduras no corpo ou a busca por pegar onda, enquanto Armandinho e outros somente imaginam como seria pegá-las no Guaíba.
Quem vem do interior, como é o meu caso, também rapidamente acostuma-se a essa paisagem, cartão postal de recepção, que parece, à sua forma e conservação, explicar que Porto Alegre, seguindo exemplos de outras capitais ameaçadoras, não é para amadores. Os olhos impressionáveis ficam a tentar captar familiaridades da última passagem nele, ao mesmo tempo que buscam novidades em termos paisagísticos, novas inscrições nessa arte criminal metropolitana. A disputa de espaço nas paredes. A disputa de espaço entre os veículos, o trânsito ligeiro que impede ao motorista a nossa mesma gama de impressões, ele focado ao trabalho, eu deixando o imaginário percorrer-me, perambulando pela horizontalidade de garganta do túnel e seus exteriores verticalizados em edifícios. Uma composição inesquecível e modificável, entre janelas abertas e fechadas, gradis que protegem os internos e se tornam ainda mais ameaçadores a nosotros visitantes; hominídeos rotativos entre gorros, cigarros, corcundas, bolsas, pressas direcionadas ou passos calmos sem direção, carrinhos de supermercado, produtos, cadernos, relatórios, rolex, celulares, pastilhas, drogas, isqueiros, moedas, anéis, unhas roídas, sujas ou manicurizadas.
Foi em uma das vezes em que eu saía de Porto Alegre, após passar um longo período de três dias. Era meu costume não turistar pela capital gaúcha por períodos maiores do que esse, me enchendo de nostalgia, me apertando a ânsia de retomar dias como aqueles, de aprendizado e experiências inéditas. Quando voltava da zona norte da cidade, quase na Alvorada, e vinha em transporte público pela Manoel Elias que desembocava na famosa avenida Protásio Alves, eu erroneamente imaginando que decorava seus pontos de ônibus, prédios e pequenas aberturas comerciais, quando meu olhar fugidio pela janela cansava de tudo que estava fora e queria focar em quem estava a meu lado. Ouví-la falar sobre o urbanismo porto-alegrense era música em formato milonga, eu felicitado pelo sotaque antes fronteiriço alegretense e agora cada vez mais capitaneado pela cidade marginal ao Guaíba. Aquele sotaque que me intrigava, mas me familiarizava por tanto escutá-lo por três dias; aquele sotaque que ainda posso evocar na mente, se me concentrar, de vez em quando. O urbanismo que ela me relatava complementava o curso de arquitetura que ela recém havia se graduado.
E eu, fiel perfil estrangeiro, cumprindo com minhas obrigações de hóspede em comportamento diante dos familiares, com minha mala preta pousada entre meus pés, com as pernas em síndrome inquietas, precisava agir para convencê-la de meus objetivos. Ainda pela Protásio Alves o primeiro investimento, o reclínio das cabeças, o movimento ritmado do pescoço e de músculos faciais. A dúvida até hoje de, pós-ressaca naquela matinê, como havia se comportado o meu incerto hálito? 
Mas, para o final da linha, com os prédios a aumentarem andares e o nosso tempo acabando, com a aproximação do meu reconhecido Túnel da Conceição, solicitei a ela que repetíssemos o ato, somente pela recordação. Talvez eu pensasse mais no futuro, que aqui está presente agora, do que naquele proveitoso momento, hoje engendrado em cofre das memórias passadas.
Postados em pé na rodoviária, lado a lado, pela terceira vez ela me permitiu a união bucal, esta em tom de despedida. Sorriu para mim e retomou o caminho de casa, ela da zona sul à zona norte, na quase Alvorada, mas antes mesmo do populoso Rubem Berta. Enquanto isso, eu voltaria ao pampa monótono com o olhar novamente perdido pelas janelas de outro ônibus, esse de viagem, com meus fones de ouvido a embalar novas miragens.
Tudo isso na mesma salada somente pela fugaz passagem pelo Túnel da Conceição? Vocês podem estar perguntando ao final dessas romantizadas linhas. Acontece que ambos éramos muito fãs de Green Day. One more time, thank you, Billie Joe Armstrong.

22 de abril de 2020

bolinhas de piercing

Pele clara como a lua e no restante era soturna como a noite. Entretanto, era uma figura bem quista nos meios por onde andava, apesar de ser considerada estranha ou, no mínimo, peculiar. Ela era uma amiga fiel para os momentos mais difíceis, aqui repito depoimentos que me foram passados. Aconselhava em conversas demoradas de meia ou mais de hora. Assim era bastante requisitada quando a coisa apertava e se mostrava solícita em prontidão. Essa característica principal, tão repentinamente ressaltada, mostrava sua voraz vontade de ajudar o próximo. Não se limitava aos amigos, portanto até as noites de bares e os raros acompanhamentos que fazia em festas rave resultavam nisso. Ela percebia um mundo em que muita gente necessitava de cuidados ou o mínimo de quem as ouvisse.

Laís entrava na fase dos 20 e poucos, um tanto chocada pela passagem do tempo, mas "faz parte", como ela própria poderia frisar ao final de suas reflexões. Quando não encontrava saída ao labirinto de fauno, o "tanto faz" poderia ser invocado para o término de seus raciocínios, como quem se cansa da leitura e pousa delicadamente o livro com a fita vermelha a demarcar a página onde cessou-se a atividade de correr os olhos pelas linhas.

Ela tinha o hábito das tatuagens, mas sua grande paixão eram os piercings, personagens centrais de nosso enredo. Ela preferia a noite e preferia o frio, de modo que sempre imaginei sua cidade-natal como alguma regravação brasileira de Crepúsculo. A pouca luminosidade, as araucárias e outras árvores a povoar a região em seus exércitos abastados, todos de continência a seus postos. Os jovens com suas camionetes a cortar o asfalto nas noites, driblando fiscalizações em missões não como os contrabandos dos Estados Unidos no início do século passado, mas portando e consumindo bebida alcoólica no revezamento dos motoristas, designando a infração contra a lei. Sabiam que uma rápida observação com a lanterna para dentro do espaçoso carro resultaria em apreensões e problemas federais com os de uniforme azul e amarelo.

Mas "faz parte". Ela própria, em geral, respeitava as mais obtusas leis de nosso Estado. Difícil bancar a mãe dos outros, de idades semelhantes ou às vezes inclusive maiores, o tempo todo. O alerta por ela era dado, o registro era feito, mas a decisão, a escolha eram dos demais ocupantes. Os amigos e os amigos dos amigos. Out of control.

Era bem dedicada aos estudos, mas não sabia exatamente o que estudar. Tinha aptidão para diversas áreas, da saúde, com seus instintos protetores, ao direito-penal. Não era difícil imaginá-la em discurso bem ponderado, coerente e obstinado perante Vossa Excelência. Em fechamentos discursivos que não raramente dariam início a uma salva de palmas e uma unânime condenação, caso escolhesse esse lado, ou uma unânime absolvição, como no dia a dia lhe era mais frequente.

Possuía uma empatia muito grande pelos demais seres humanos e animais. Conhecida nossa personagem de olhos e cabelos negros e de preferências totalitárias noturnas em relação ao brilho do dias, chegamos aos pequenos personagens. As minúsculas esferas brilhantes, porém tímidas. Fieis aliados como um exército devidamente equipado da arma à qual ela precisava nas mais distintas situações. Os obedientes (ou desobedientes) piercings eram estruturas centrais para entendermos Laís.

Você deve estar pensando "ok, ela gostava de piercings, mas e daí?" mas a questão ia muito além disso. Ao ter os piercings com ela, espalhados por regiões visíveis cotidianamente ou não, ela adaptou a melhor desculpa possível para fugir de situações constrangedoras, ou cansativas, ou maçantes em geral. Sempre que algo se encaminhava para resultar nesse enredo pouco confortável, Laís de prontidão preparava sua melhor atuação - atriz desse porte semi-profissional que era - e após uma ou outra engolida em seco, disparava a frase: "perdi minha bolinha do piercing".

Tudo bem, o pessoal que entendia mais ou menos das complexas estruturas piercierianas, iniciava o mutirão pela recuperação do mais legítimo elo perdido. Após uma vasculhada pelo solo, em que todos se propunham na dura missão de visualizar o desafio à miopia e, ao mesmo tempo, tentando não pisar por cima do sumido dito cujo. Laís defensivamente sensata esperava alguns movimentos, uns cabisbaixos como se estivessem preparando-se para a mais fidedigna imitação de um avestruz, ou de pombo a catar os grãos jogados nas praças, e então a menina protagonista (ou eram os piercings?) abdicava da ideia e dizia ao público-geral, informando a suspensão das buscas: "acho que perdi antes, já volto".

Ela saía do recinto e recusava qualquer auxílio-extra. "Não, não, podem continuar aí, não quero atrasar vocês". E, coração bom que ali pulsava, não queria mesmo, somente a paz que tanto zelava e estava ameaçada segundos antes. Mais eis o singelo sabor da liberdade em poder tirar um tempo de tanta socialização, de tanto barulho e conversa alta. Tirava um tempo para contemplar a natureza, um de seus escapes favoritos, principalmente nas noites estreladas em que se deliciava a procurar - e a encontrar! - constelações. Ou ela ia a um banheiro e se fechava na cabine para refletir sobre a imensidão da expansiva vida, aquele universo que fugia ao seu perfeito alcance, mas não ao interesse.

Teórica, filosófica, exploradora da natureza. De fato que, como possuía os piercings em áreas de total desconhecimento do que a cercavam, ninguém duvidava de seu curioso método de retirada. As tropas saíam em debandada, ela e seu exército de orientandos piercings. Moça peculiar - no adjetivo dos mais elegantes - até esquisita - nas mais diretas palavras em tons veladamente ofensivos. Ela sabia que era impossível fugir desses comentários maldosos, mas as saídas dos ambientes tóxicos - palavra da moda para época - eram cruciais para a manutenção da sua saúde mental. Ela sabia disso e assim vivia.

Mesmo em excursões, viagens a locais novos: "perdi minha bolinha do piercing". E Laís sumia no horizonte para receptores estupefatos daquela repetitiva cena. "Ah, não, Laís, de novo" e ela mal ouvia, apressada, rumando para seus tramados esconderijos. Dizem que a primeira coisa que a pessoa tímida nota em um novo recinto é a porta pela qual ela pode escapar. Laís ia além e preparava verdadeiras táticas de guerra, estratégias ademais do conhecimento dos maiores generais. Justo ela, menina interiorana gaúcha, tão distante de ocupar um apropriado e nada exagerado cargo de Ministra da Defesa. Sim, capitã.

Ela fazia nenhuma evacuação como descer em um cano escorregadio com uma maquiagem militarmente camuflada, nada disso. Nem saltos de dublê pelas janelas dos prédios para se acocorar nas árvores. Os piercings faziam o trabalho duro por ela e depois era só meditação e autoconhecimento, orgulho para o ET Bilu e demais praticantes das teses elaboradas desde a Grécia de Sócrates, Xenofontes e Platão.

Não importava a ocasião, Laís imaginariamente riscava sobre a pele clara e sardenta das bochechas as pinturas guerrilheiras abaixo dos atentos olhos. Estreitava aquele par de amêndoas e botava em prática a frase mais vital para ela do que estourar uma granada em cerceamento inimigo: "gente, perdi a bolinha do piercing". Ela se acostumou a ouvir dos amigos e amigas mais próximos que precisava dar um jeito nisso. Comprar de outra marca, ser mais atenta, tirar logo essas porcarias, bradavam os já impacientes ou propositalmente implicantes contra a moça, que mergulhava vez a vez para um campo de suspeita. Afinal de contas, espiã de guerra de tantas e recorrentes missões acaba se tornando alvo das linhas adversárias. Não é sempre que o contexto de infiltração nas linhas inimigas saía com a mais perfeita distinção e discrição. Mas ela era boa, confiem na Laís.

Não raras vezes salvou bêbados em bares underground, mas prudentemente não esperava pelo avanço das tropas aliviadas em hálito vômito-fresco. Boa hora para perder a bolinha do piercing, com certeza. Outra vez eram os amigos dos amigos, eles achavam que "ah, mas agora vai, ela tão solitária, tão na dela, esse é um bom rapaz e nem bebeu demais", mas que nada. Laís ao banheiro, Laís para o corredor mais rápido, Laís para longe, procurar a bolinha de alguns dos revezados piercings na missão de proteger sua hospedeira.

Das amigas, que ela tanto ajudava nos anos anteriores, passou a ganhar títulos e apelidos curiosos pelo seu comportamento excêntrico, mas no fundo as mais próximas, sim, elas bondosamente reconheciam o papel fundamental de Laís na formação do grupo, perfil conciliador, entendedora das dores alheias melhor do que qualquer enfermeira ou mapeadora googleana de perfis esquizóides. Laís reconciliava amigas prontas para se darem tesouradas, juntava casais separados, lia a sorte nas borras do café e o futuro cartomante nos naipes do baralho. Mentira, não trazia o amor de volta em três dias. Não sempre, o que significa que uma propaganda no outdoor aqui poderia caracterizar publicidade enganosa e não queremos isso. Nem Laís nos pagou mensalidade de anúncio em 199,99 reais.

Leitora assídua de autores conturbados, poetas marginais e das periferias dos países mais ou menos periféricos, fazia uma boa ponte desse conhecimento tão desconhecido da sua geração brasileira aprendiz das versões traduzidas por Herbert Richers. Transpunha olhar para o céu e ver as estrelas que memorizava e tão natural para ela era recordar dos nomes, mas olhava para si mesma, em espelhinhos de bolsa ou espelhos pichados a batom ou canetas góticas nos banheiros e não saber o que via. Laís se viu só escudo naquela batalha, tão solitária era ela e suas bolinhas de piercing. Defendia-se mesmo de quem estava próximo e querendo ajudar.

De piercing em piercing perdido, logo logo eles podiam ficar quietos no contato com sua pele, porque era ela mesma quem não aparecia nos locais. Não tinha tempo ao cinema, não iria à festa da Fulana porque ela já não se sentia à vontade e não tinha mais idade para festa, dizia diretamente ou para si mesma - cansada de cuidar bêbados conhecidos ou desconhecidos - deixem meus piercings quietos!

Sua mãe estranhava ela mais para dentro da prisão domiciliar de seu quarto, ela que há meses nem para piercing mais saía de casa. Não pensem que ela andava com o rosto refletindo cada raio de sol. Não, os piercings eram discretos, uma orelha, um mamilo, uns mais para baixo. Mas nenhuma ida ao agulheiro para novas ideias ou renovações no exército dos piercings e suas artilharias de bolinhas perdíveis. Laís andava realmente cansada.

Para as aulas, na terceira graduação que iniciava, ela ainda ia. Os novos colegas estavam tão pouco familiarizados à moça que nem sabiam que ela perdia as bolinhas dos piercings. Ou, perdão, não perdia. Vocês entenderam. Mas a Laís não se entendia. O que havia crucialmente mudado? As pessoas eram as mesmas, ou pelo menos semelhantes, não estava no ser humano a resposta. Ou estava? Nas noites com ou sem lua, nas constelações da Cruzeiro do Sul, das Ursas ou da Fênix. Pássaro vindouro era o que ela precisava ser. Renascer praticamente, porque assim já não dava, não havia condições de suportar esse atordoante sofrimento. "Laís, pelo menos a janta, minha filha." "Já vou, mãe", respondia, mas não ia, não saía daquele quarto.

Foi então que estava prestes a tomar medidas drásticas: arrancaria todos os piercings. Uma revolução que não seria televisionada, nem pelo rádio. No silêncio daquela operação. Entretanto, ela nunca ocorreu, porque, na véspera do dia derradeiro, da tomada de coragem, na respiração em garganta profunda para essa decisão, veio um acontecimento marcante para servir de reviravolta.

Ela era magra, roupas escuras como as de Laís, cabelo escuro e com uma franjinha que tapava levemente o olho direito, em uma união com sobrancelha que nossa heroína jamais esqueceu. Ela apareceu pelo campus e era a primeira vez sem dúvida que Laís a viu naquela graduação chamada vida. Ela comprou um sanduíche e um suco e Laís, metódica que sempre foi, olhou cada sumiço de queijo e alface e o desaparecimento do líquido na garrafa até o final do conteúdo naquele fatídico intervalo. A informação que estava sendo destrinchada foi concebida em seguida pelos piercings: pessoal, nós vamos ficar.

Laís não mexeu nos piercings no dia seguinte, nem no outro, nem na semana posterior. Mas mexeu suas atitudes e foi de encontro àquela figura que lhe havia tomado o ápice da atenção. Conversaram sobre Beatles, esporte, aquecimento global e o que Gessinger acrescentaria em hora certa, crime e religião. Se traduziram da melhor maneira possível, da forma como estava inimaginável para Laís sair de seu cronograma frustrado rumo à derrocada definitiva de seus amáveis piercings. A melhor parte era essa: Júlia gostou dos enfeitados piercings.

E foi nesse trajeto de crescente amizade, Laís no curso de administração, Júlia na antropologia, que elas seguiram se encontrando entre intervalos e sextas que viravam sábados e, por que não? domingos. Laís voltando ao cinema e retornando a sair para comer alguma coisa, não só a janta que sua mãe insista nas repetidas batidas na porta pelas noites. Laís reencontrou velhos e novos amigos, tão novos que ainda nem tinham sido feitos, mas começavam seus laços. Júlia foi uma grande resposta. Laís olhava para o céu e não entendia com as estrelas a sorte que teve de encontrá-la, naquele intervalo de aula, naquele intervalo de tempo, no que ela realmente precisava, mais do que nunca, que digam os agradecidos piercings. Você os salvou, Júlia.

E Júlia merecidamente os conheceu. Foi os conhecendo e reconhecendo e totalmente acostumada um após o outro. Conheceu em salas fechadas, tateou em aulas experimentais em meio à natureza. Conheceu nas cabines de banheiro muito bem ocupadas. Deixaram iniciais naquele espelho e Laís já se entendia melhor com as novas manias com a beatlemaníaca. Entendia sua amiga em harmonia com os astros, com Freud, Carl Gustav Jung, Edgar Morin, Melanie Klein, Ana Mercês Bahia Bock e toda a sorte de autores e autoras. Entendia sobretudo a certeira tomada da boa paz quando, com ela ao lado, ombro a ombro, peito a peito, corações ritmando ora fortes, ora calmos, bem suaves, um cilindro com vida própria entre o indicador e o dedo médio e Paul McCartney e John Winston Lennon a repetir o que se propaga há anos: all you need is love.

Créditos rolando na tela. Intactos na formação inicial dessa Laís, que concluiu a sua terceira tentativa de graduação no ensino superior, diplomada em administração, as bolinhas dos piercings jamais, em momento algum, sumiram na presença de Júlia que, sim, arrepiava os quase imperceptíveis pelos em volta delas. As minúsculas esferas ainda desaparecem estranhamente em cotidianos sublimes, mas Laís, confidencialmente, garante que o percentual de vezes é cada vez mais verdadeiro. "Faz parte."

21 de abril de 2020

especulação do mercado do amanhã

é mais comum para mim o anoitecer
teia que captura minha sanidade
todos com pressa para chegar em casa
eu com ânsia de sair do ser
táxis nervosos: sabem que vão correr
ônibus monótonos: itinerário a cumprir
corredores, placas e pausas:
uns subir e outros descer
motoboys e seus faróis
rasgam o trânsito entravado
deitam nas curvas, capas de chuva
asfalto quente no ar gelado
vendedores ambulantes se recolhem
itens que eles próprios não escolhem
há sempre o que vender amanhã
um bilhete, um sonho, um divã, um chaveiro
um devaneio: é inteiro, moço, ou é meio?

poeminha

fui espremer uma espinha
e
nunca mais parou de sair pus
faz jus àquela vez
que fui espremer um poeminha
e nunca mais fui quem eu fui

fui espremer uma espinha
e
nunca mais parou de sair pus
faz jus àquela vez
que fui espremer um poeminha
e nunca mais parou de sair pus

fui espremer uma espinha
e
nunca mais parou de sair pus
faz jus àquela vez
que fui espremer um poeminha
e nunca mais parei de escrever

fui espremer uma espinha
e
nunca mais parou de sair pus
faz jus àquela vez
que fui espremer um poeminha
e nunca consegui terminar o poeminha

fui espremer uma espinha
e

dorso urbano II

doce urbano
teu corpo na íntegra
corpo humano
integra minhas vontades
vacilamos
integra nossas necessidades
lá se vamos

dorso urbano
poema segundo
escondido ao quarto
que recriamos
um novo mundo
admirável e novo
como um Huxley transiberiano
Aldous de errado
não está certo
quando estás por perto
me afasto de todo o resto
do conteúdo urbano
ficamos

o canto dos cartórios

é tão raro para mim o amanhecer
que é mais comum eu emendar
do que acordar e ver
porém desse nascimento
que os pássaros anunciam
no cartório da Terra rotatória
ouço o som que provém
da assinatura de mais um dia

dorso urbano

o último sol da tarde
é poesia
a quem você dedica
essa harmonia?

o último som da tarde
é a poesia
que estica esse momento
na noite após o dia

o último tom da tarde
tu adora o sol dourar-se
reclinado esconder-se
em dorso urbano desses


18 de abril de 2020

o ruim de conhecer a existência, o princípio e, posteriormente, os mecanismos da indústria cultural e do mercado, é que a partir disso restam poucas ou quase nenhuma opção para além da sombra de suas temíveis garras, trucidadoras do âmago de quem as ousa combater. o mercado às vezes sussurra e às vezes grita ao teu ouvido: sirva-te ilimitadamente das limitações. a indústria cultural é uma criatura elegante e graciosa. choca seus ovos e cuida delicadamente dos filhotes. só rouba e mata pomposamente em outros ninhos.
as dúvidas fornicam e se multiplicam como coelhos

12 de abril de 2020

viagem besta

a rede range
range
range
range
nenhum carinho
a cabeça vazia cai no poço
oco


Viagem Besta. Poeta Charles em '26 Poetas Hoje' - 1974 (organização de Heloísa Buarque de Hollanda)

Rocketman

Elton John é um artista que sempre admirei. As músicas são tocantes, balançam como a chama das velas ao vento, as velas dos barcos ao vento e conversam com a alma, que é quem realmente precisa se sentar para beber um chá de vez em quando. Ou algo mais forte, como o próprio pianista diria.

Após assistir ao desfecho de Rocketman, filme sobre a vida do britânico Elton John, a apropriada metáfora de um queijo suíço me desfalece o corpo. Sinto os poros e os vazios, o ar atravessar-me. A solidão que ele sentiu mesmo rodeado em dinheiro e fama, e sexo e drogas, é preocupante. Converso com muitas almas, revezo cafés, chás, cervejas, mas todas me parecem passageiras. Seja espiritualmente, no que não podemos conciliar de mais denso para tratar, filosoficamente incompatível, seja pelos planos que - quais são eles? Me distanciam e mexem comigo. Afastar-me de portos seguros em direção apontada para onde?

Tudo que despejo em conversas sobre os mais variados assuntos, tudo que desaguo mesmo no encanamento à correnteza dessas linhas, tudo ainda perpassa como ponta do iceberg, como pedaço de fóssil não catalogado. Nem cabeça do fóssil pode-se afirmar, pois cabeça seria a parte mais importante ao desvendo de mistérios. Um braço, uma perna, um membro, uma pata. Só isso encaminhado.

Penso qual resposta seria-me dada ao ser mais sincero. Aprendi a desconfiar das pessoas pelas maldades - com ou sem motivo, planejada ou oportuna, surpresa ou improvisada - que ocorrem. Não posso abrir-me de todo, mantenho-me. A linha da estrada, os faróis à noite, é preciso deles. Ainda é. Não posso me permitir sair, para onde me levariam? Receio internações, medicamentos pesados. Ao menos que modifiquem na raiz do que compreendo e tento sobre a vida, de que adiantariam? Remédios preencheriam nada.

Pelo que se luta se, aos mais diversos exemplos, grandes realizações são distantes e só surgiriam a grandes custos e com quais benefícios? Com quem caminhar para elas? Quem te entende? As pequenas coisas, o dia a dia, o sol da manhã, o pão do café, o copo dele, ou de suco ou voltemos ao chá? Onde estão as almas? Estão sentadas à mesa? Estão em qual recinto, se é que estão na casa? Estão na cidade? Onde elas estão?

Agradar ao outro. Responder o 'sim' querendo dizer o 'não. Não esperar que o outro, que o próximo entenda o 'não'. Sabe o preço, sabe o desgosto, conhece o desaforo de cada 'não'. Mas conhece também por não ter dito. E isso engasga. Não! Não necessariamente a estrada é por ali. Não é por onde tantos passam. Não é o que tantos ouvem. Não é o que tantos escolhem. Não é onde o asfalto até gasto está de tantos os que passaram. Será a beleza de uma estrada em terra? Poeira na roupa e o que importa? Com quais roupas e onde, o que significa? Mas com quem? Que almas juntam a bagagem quando juntas, encara os desafios quando resolve-te a eles? Quem tem o luxo dessa companhia? Solidão. Poço fundo, escuro, soturno, lago onde não se enxerga o que há antes do fundo - muito menos o fundo.

Quem você permite? Quem te permite? Em quem você confia? Quem confia em você? Quem faz bem caminhar, unir pegadas, decidir pela mesma hora do almoço ou onde acampar? Dividir o quarto ao lado, não se importar com a televisão até altas horas da madrugada, seu mau humor diário, suas confidências estranhas. Chão frio. Banheira. Banho quente. Mente. Shampoo esfregado em movimentos circulares. Dedos ao teclado. Piano. Planos.

Toalhas de secar suor e outros fluídos. Tênis na lavanderia. Manchas, lençóis de verão, cobertores de inverno. Varandas. Cigarros, cinzeiros, quadros, papel de parede ou tinta, parquê, tábua corrida ou piso. Buraco na parede ali ou mais adiante, o que vai? Eletrônico, really? Inseticida, mais spray tsssssssssss tSSSSS até matar, não, melhor o mata-moscas. Cigarros, cinzeiro. Cinzas. Fênix. Voos. Não vou? Quem? Quem vai? Estar lá.

10 de abril de 2020

brinde aos autores

na dúvida esse meu costume
de defender o autor
é ele quem põe a cara à tapa
e tu tens o tapa
com a cara em máscara

notas

você entende nada de poesia
nem que ela te assaltasse
talvez assim você reclamaria
dela com alguma razão

5 de abril de 2020

rocks gaúchos

sou capaz de muitas coisas
de outras coisas sou incapaz

sou da paz pra muitas coisas
pra outras coisas não sou da paz

a gente faz muitas coisas
outras coisas não sei como faz



4 de abril de 2020

é sobre isso tudo

Man on the Moon é uma canção da banda norte-americana R.E.M., presente na disponibilidade dos mais diversos meios, de fitas a cds e ultimamente na internet e por que não pen drives, desde 1992. Sou posterior a ela. A música inaugura o disco-coletânea com as melhores da banda de três letras, sigla para Rapid Eye Movement (Rápido Movimento dos Olhos). Poético, não?

Essa música me lembrou a menina da fronteira da qual todos gostávamos no ensino médio. Todos, isto é, o resumido grupo de meus amigos próximos, dos quais hoje um está praticamente casado na cidade, um apareceu disfarçado dia desses por esses textos e outro é acrobata no circo mais reconhecido do mundo. Adianto que nenhum teve sucesso com a fêmea em questão.

E por que Man on the Moon lembra a moça, levava vocês ao mundo da lua? Não exatamente. Simplesmente um post meu na internet em que ela curtiu a dita cuja música. Ainda trocamos alguns likes políticos mas sem a pendência de uma conversa. Acredito que ela hoje esteja quase casada e em São Paulo. Isto mesmo, dor de corno maior ainda é adquirir tal condição para paulista. Mas quem sabe voltou à cidade? Algo me indicou isso por esses dias. Confusos dias pandêmicos, entendam. Vida confusa como a América Central, etc.

Entreguei várias pistas no texto que eu colocaria adiante numa organização mais organizada. Mas é que continuo ouvindo o disco das melhores do Movimento Rápido dos Olhos. Losing my Religion, sucesso que o DJ Rui Jordão tocava nas noites de Programa Replay na Rádio Cultura de Pelotas invade meus instintos. E conta o negro velho que essa música era presença constante nas festas pelas quais assumia a trilha sonora. "O pessoal gostava de colocar outras coisas, mas eu mandava rock também, não tinha ruim", garantia meu amigo de companhia esportiva nos debates semanais, muitas vezes transformado em mim de monólogo.

Voltando à fêmea-figura-chave desse texto (obrigado Jordão pela participação, diferente de Miguel na música histórica, atravessamos o (rio) Jordão, vejam só), voltando a ela, creio que a principal história de nosso envolvimento foi quando ela tentava vender ingressos para sua festa de formatura. Na verdade vendia ingressos para uma festa, erroneamente denominada churrasco, que arrecadaria cash, money, grana para a futura formatura de final de ano. Se não me engano ela era ano mais nova e se formaria só no ano seguinte. Organização de escola elevada, top 20 do estado e 100 nacional, se não me engano. Não confiem, muito posso me enganar, mas entendam que era um colégio de primeiro mundo.

E nós, voluntariado chinelão de saída do Centro rumo às Três Vendas para comprar os ingressos da moça. Fomos retardadamente a pé em um calor insuportável, recordo que uma das primeiras vezes em que precisei tirar a camiseta na rua tamanho o sol escaldante. Utilizei-a para proteger a superfície da fronte e aliviar a queimadura inerente aos cabelos. Nosso ginasta também adotou essa medida, com um físico esbelto muito mais atlético, evidentemente. Os demais nos acompanhavam em um grupo com quatro pessoas. Falávamos das mais diversas bobajadas nerds e conhecimentos por qual caminho deveríamos seguir para chegar em tempo recorde nessa jornada imprudente. Nos encontraríamos em ponto médio entre ambas as partes (mentira, quilômetros mais perto delas do que de nós).

Sim, educação fazer as damas caminharem menos nesse período em que ninguém ali sequer tinha idade para a carteira habilitadora ao trânsito. Exceção era o alto alemão de São Lourenço que dirigia sem carteira, mas aqui não iremos dedurá-lo. Educação, educação, please, monsieur. d'accord, mon ami. s'il te plait, para quem ficou curioso de como é 'por favor' en Français.

Caminhamos naquela lua braba do meio-dia em direção ao ponto de encontro e, quando telefonados, que algum dos debilóides possuía o contato, descobrimos que elas já haviam encerrado o almoço e regressado à escola que ficava ainda milha adiante. Diabos, seguimos porque queríamos chegar lá, embora já não disfarçássemos a irritação com a enrolação das ditas criaturas. Ao que estávamos informados (embora muito mal informados!), a soma de garotas disponíveis nessa compra de ingressos se dava em duas: ela e + uma amiga. Ok. Éramos quatro. Apesar das conversas variantes, no fundo todos devíamos imaginar quem ali tinha chance com as preciosidades. O ginasta, ano mais velho, era nossa aposta sigilosa, embora o mais alto também levasse algum currículo consigo. O hoje quase casado e eu gostávamos apenas de esticar as pernas em tardes escaldantes. Ééé, vai vendo.

Quando chegamos ao destino da escola chique, estava se encerrando o intervalo deles entre as aulas matinais e vespertinas, também conhecido como horário para almoço. Elas almoçadas, nós completamente suados e desconfigurados da boa aparência. Ao chegarmos, reparamos que a tal amiga não era de nosso total agrado, que teu Deus nos perdoe. Meio sem jeito e, embora cada um quisesse falar e expressar suas mais singelas emoções peito pra fora, estávamos quase mudos, talvez do cansaço somado à mórbida timidez de cada um. Efetuamos a compra em tempo recorde (ademais que o recorde não viria na tortuosa caminhada, ao menos algo para o guiness book faceirar-se).

(será que as capas do Guinness Book já utilizaram todas as cores existentes ou a humanidade segue a inventar colorações para compor esse modo chamativo de ilustrar as coisas curiosas?)

Cada um com seu bilhete premiado, só faltava um dos abobados deixar o vento levar a entrada até a boca de algum boeiro e aumentar o drama dos gaúchos que saíram sem noção a pé pelas ruas da cidade. Mas todos os bolsos estavam impecavelmente costurados e ninguém mosqueou a esse nível. Mal terminamos a compra e elas precisavam entrar para as aulas da tarde. Rigorosa que era a escola, tomariam uma senhora mijada em caso de atrasos, ainda mais se vissem nosso baixo nível ali, como se não bastasse, uniformizados com as cores da outra escola. Barbaridade.

Ainda deu tempo de tirarmos uma foto com um cão de rua que nos acompanhou nessa jornada. E digo, moças e rapazes, foi um dos mais fieis companheiros vistos por essas bandas. Não se importou de andar lado a lado com os guerreiros por dobras e dobras, quebradas, calçadas e meios de rua não movimentadas, patas sobre o concreto quente e nós com tão pouco a poder oferecer. Vira-latas, não por acaso, venceram a copa de enquetes do colega jornalista León Sanguiné. Melhor raça com sobras e ganas de vantagem. Nenhuma dúvida.

Pois bem, crianças e crianços, encerramos a lida naquela batalha árdua por quase merda nenhuma, não fosse o espírito puritano da aventura adolescente entre amigos. Sinto saudades desses tempos. Sinto falta desses tempos, melhor dizendo, na possibilidade de um dia quererem traduzir essa bagaça. Embora bagaça e outras gírias não sejam o mais indicado para futuras traduções. Sobre os amigos, é aquilo que recordo. O quase casado, o ginasta hoje em terras estrangeiras - preciso me atualizar como ele está em meio a esse caos mundial, me cobro a fazer isso - e o amigo que, se eu enviar mensageiro veloz o link certo, será o primeiro a relembrar essa epopeia de hormônios em alta na época e saudosismo latente nos cansados olhos da atualidade.

Como disse um dos músicos, o do violino do filme Titanic (1997) - que pela primeira vez assisti não digo esses dias porque foi exatamente ontem - "cavalheiros, foi um prazer tocar com os senhores". A menina-flor-campestre do Alegrete merece felicidades, o máximo que possa colher na lida dessa vida. Recordei dela pela última vez para remendar com o começo dessas linhas ao som de The Sidewinder Sleeps Tonite (A Cascavel Dorme Hoje à Noite), do mesmo disco referido do R.E.M. Agora a faixa cambiou para Stand, a de número 13. E é em um Rápido Movimento dos Olhos que encerramos aqui, para agradecermos sobretudo aos amigos que entrincheirados conosco encararam essa e outras. Ah, sim, há outras... Vontade de uma rapadura de amendoim com suco de limão...


2 de abril de 2020

cobranças de falta

Eles haviam marcado o encontro para o final daquela semana. Conversaram bem e estavam passos adiante do que sugere algo surgido pela internet. Ambos aos 20 e poucos anos. Alguns interesses em comum, principalmente o clube da cidade, que vinha bem nos últimos anos, o que fez render o assunto. Restaurante no sábado. Jantar. Promissor. O papo e o vinho resolveriam onde acabar.

Gostou do sorriso de gengivas aparentes, dos olhos e dos cabelos escuros, das fotos disponíveis na internet. Ela se agradou do senso de humor e que ele era bastante alto, acima dos 1,90. Ele cursava direito e ela era formada havia dois anos, finalmente arrumando emprego na cidade vizinha, mesmo assim não exatamente na área imaginada por ela, nas repartições dos uniformes brancos da saúde. Demoraram um tintim para definirem a logística da saída deles, porque os horários de ambos era apertado. Ela com leituras e turnos longos, o cansaço, o abatimento, a persistência no fim das contas para mais uma labuta. Ele nas leituras e leituras e mais leituras, as aulas pela manhã, o estágio de tarde e os lanches disfarçados de janta para encerrarem o dia, solitários. Gostou de ter companhia para aquele sábado.

E o restaurante não era um qualquer. Ele pensou que não daria vencimento sempre frequentar tais lugares, mas que para uma primeira vez valeria a pena. A decoração era agradável, a meia luz oscilava um jogo de sombras propício para novas angulações do rosto de cada, sorrisos ao vivo que ainda não se compram e vendem no instagram ou em outra rede. Ele tinha facilidade em fazê-la rir e ela também se saía bem quando arriscava-se no humor, não restrita as risadas e bebericadas no champanhe que acompanhava a entrada.

Quando retornaram ao futebol, perceberam que era a praia deles, o caminho das minas exposto ao mapa por ali. O time andava bem, somando mais vitórias do que derrotas, o que nem sempre ocorria. Grandes sinais, subidas de patamar, duelos marcantes contra os gigantes, corridas a goleadas contra os menores. Estava tudo onde imaginavam. O time, o jantar, o encaminhamento nos estudos, os empregos na prática em ascensão. Ele era daqueles que decoravam a escalação e, de tanto ouvir no rádio os debates esportivos, fabricava suas próprias teses e destrinchava com êxito a escalação como um locutor, em poucos segundos. Goleiro, lateral, zagueiro, zagueiro, lateral, volante, volante, meia, meia, atacante e centroavante. Vírgulas facultativas, vivacidade a mil, garganta secando, mas sem cessar. Se aplicar metade desse entusiasmo na noite estariam ambos de jogo ganho.

Ela já remexia a taça em movimentos circulares, agitando o conteúdo da champanhe em segunda rodada. Todo o entusiamo natural do assunto, todo o engajamento que a motivava topar a ideia mesmo na cansativa rotina, estava descarrilhando e dando lugar ao tédio de ouvi-lo falar empolgadamente sobre as teorias passadas. Se ao menos depositasse algo no cartão sobre o futuro do time. Seria tudo pretérito o debatido naquela noite? As aventuras vivenciadas no amor também não sairiam do engessado passado?

Quando ela própria filosofava dessa forma, o pensamento que se afastava foi estourado como um balão-surpresa ou entrecortado por um taco como uma pinhata quando ouviu um nome que ela muito bem conhecia. "Era o que ditava o jogo o volante Gabriel." Sim, o Gabriel que ela recordava e sabia detalhes até demais. "Tu namorou com ele, não foi?"

Sim, sim, foi, ficou imaginando onde havia esquecido foto entre os dois ou qual amiga ou qual amigo, quem rompeu a barreira do bom senso e divulgou tal acontecimento que ela de súbito, desde que se separaram, cisão antes entre eles, anterior à saída dele do clube para outro distante, no Centro-Oeste, de prontidão ela já queria tomar total desconhecimento, apagar da memória, manter-se distante a qualquer referência sobre. Mas, além de não atingir esse objetivo pelos longos meses e agora passados anos que sucediam, agora se deparava com o fantasma frente a frente. O fantasma da memória com coberturas extras de ectoplasma.

Se o par da noite já havia demonstrado entusiasmo e euforia anteriores, agora estava radiante, rasgava a meia luz do restaurante com o seu semblante em chamas, os olhos arregalando-se, o hálito da janta atravessando a mesa até ela, quando não saltitavam teimosas gotas salivares, frutos do júbilo crescente que o envolvia. Ele não só recordava os debates esportivos dos locutores no rádio como se transformava na sua própria versão. A voz a cintilar, a empolgadura no talo, o personagem do momento chamando mais a atenção do que os garçons pelas mesas ainda não atendidas. A expectativa dos arredores pairava nele, era o centro dos acontecimentos, o ponto final para a trajetória dos olhares cada vez mais atônitos.

O cerimonialista a reverberar e bendizer na rememoração dos lances mais incríveis puxados pelo cordão da memória: "E teve aquela cobrança de falta na gaveta, foi aos 36 minutos, eu estava na arquibancada de trás da meta e..."

"Outro feito extraordinário foi numa infração dessa vez pela meia esquerda, o centroavante Juninho queria a bola no cruzamento para tentar o gol de cabeça, os dois zagueiros se escalaram para área adversária, como era de praxe, mas o Gabriel confiou no seu potencial e mandou direto, um tirambaço, o chamado pombo sem asas, nem tanto ângulo para cobrança havia, uma façanha, um gol antológico, nenhuma chance para o aparvalhado arqueiro que ficou atapetado ao solo!"

O vocabulário surgia, as luzes pareciam dirigirem-se a ele, não bastavam os olhares antes migrados, tudo era a exibição de nosso showman, o locutor daquele sábado pacífico em que antes se ouviam poucas vozes, mas sobretudo as que vinham dos chamados da cozinha. No ambiente, da mesa de quase centro, antes eram discretos o tricotar dos talheres, as bolhas dos habitantes do graúdo aquário ao fundo, a música clássica quase inaudível, mas de tudo isso agora nada importava. O que realmente estava suspenso no ar era que

"ele pegou a bola pela ponta direita, trocou de posição com o Carlinhos, investiu pela banda, saiu do primeiro marcador, recolheu a bola enganando o segundo e aí sim partiu por dentro da zona inimiga, em velocidade, passadas largas que tinha, quando ficou de frente para a meta, bicou a bola como um bem gizado taco de sinuca e completou o serviço tirando do goleiro, este também, a-ta-pe-ta-do no chão onde a grama não cresce".

Saíram os primeiros aplausos dos convivas que torciam pela camisa ressaltada. "Ele beijava o escudo, sorria para as arquibancadas...", ela lembrou de beijos e sorrisos. "Na entrevista, lembro que ele falou que...", ela recordou as piores coisas que ele tinha dito. "Mas no último jogo, no último dos jogos, o Gabriel...", o Gabriel era um exorcismo que ela precisava fazer e não teve dúvida.

Ciente da condição do futuro advogado, ou procurador, ou juiz que agora ela nem lembrava e pouco se importava qual das funções ele queria, prestou ainda essa última dúvida para saber se estava tudo bem com ele quanto a pagar a conta, o pagamento que deviam ao restaurante naquela noite lastimável para ela como tomar um elástico 5x0 do rival. Sabia que não havia como se desculpar ao ambiente como um todo pelo ocorrido, mas, sabedora que ele teria como pagar inclusive as malfadas gorjetas, juntou pela alça a bolsa das costas da cadeira, ajeitou o vestido sem esbarrar na decoração da toalha da mesa e se movimentou rumo à placa de indicação da saída.

Pensativa, pronta para respirar o ar gelado daquela noite úmida, ainda tascou uma olhadela para trás para verificá-lo em seu estado máximo de êxtase. Parado, em pé em meio a duas mesas, organizava uma formação de barreira com os aturdidos garçons, que eram puxados pelos colarinhos e ombros como se fossem orientados por um capitão ou goleiro. Ela não ficou para observar como a bola, em chute milimétrico, encobriria a barreira para aconchar-se às malhas. Já havia ouvido essa história muitas vezes.