Ela saiu do banheiro para tomar o corredor e seguir para o quarto, mas foi paralisada pela voz certeira, que estava à espera do exato momento, para proferir: "Achou que eu não descobriria. Mas eu achei isto."
Ele tinha na mão esquerda um papelzinho todo amarrotado, em uma bolinha de formato imperfeito. Isto talvez tenha aumentado a sua indignação, porque nem ao menos sua irmã se deu o trabalho de formular uma esfera concisa com aquele referido papel. "Achou que eu não descobriria", repetiu, inquisidor que estava.
- O que é isso? - Ela tentou ganhar tempo. Se fez de boba.
- Isto?! Isto você sabe muito bem o que é.
Um ruído na fronte da casa indicava que a mãe de ambos havia chegado. Os adolescentes ganhavam nova testemunha da discussão. Mais do que isso, possivelmente chegava a pessoa que bateria o martelo, juíza da sentença derradeira. Ao girar a chave e flexionar a alça da maçaneta, já estava em território hostil para tomar partido pela filha ou pelo filho.
- Mamãe, olha o que...
- Não ouça, mãe, ele está louco e...
- Silêncio! Silêncio! Mas será que a gente pode nem chegar em casa?!
Ambos desculparam-se, mas ainda ofegantes e dispostos a resolver o alarido o quanto antes.
- O que aconteceu aqui? - Ela disse, retirando o casaco, depositado gentil e calmamente sobre o encosto da sua habitual poltrona para assistir à televisão.
- Veja, mãe. - Ele entregou o papel.
- O que é isso? - A mãe perguntou um pouco temerosa, ao pegar com a ponta dos dedos, em formato de pinça, àquela indecifrável prova de crime.
- Isto... ora, isto é uma ideia minha.
- Ideia. Que tipo de ideia?
- Era uma piada. Ela jogou fora. - Apontou para a irmã.
- É verdade o que Rafael me conta?
- É... Mas...
- Viu! Viu só! Ela iria negar se você não aparecesse, mamãe. Ela sempre faz isso. Aposto que não é a primeira vez que joga uma ideia minha fora. Vou começar a vasculhar melhor as latas de lixo.
- Foi a primeira sim!
- Como vamos saber? - Inquiriu o irmão.
A irmã deu de ombros.
A mãe estava desapontada com a briga, mas começou a providenciar um discurso sobre o mundo das ideias. Como diariamente muitas ideias eram desperdiçadas, indo parar nas latas de lixo, recolhidas sem ao menos serem averiguadas, sem serem lidas, sem serem testadas. Iam parar nos aterros sanitários e aí não haveria volta. As ideias inundavam oceanos, iam parar em estômagos de animais desatentos, que passavam mal com aquelas ideias, quando ingeridas em grandes quantidades. De acordo com a mãe, as ideias deveriam ser bem trabalhadas. O ato de talhar as ideias começava na própria mente, antes de elaborar uma, era preciso pensar a respeito do assunto, da gravidade, do objetivo, do que estava disposto a ser feito. Era como tricotar, saber qual o resultado final, quais cores, qual malha, qual intensidade, se primavera-verão, se outono-inverno, para quem, para quais ocasiões. Tudo deveria ser pensado.
O descarte irregular de ideias era de fato um problema que os governos deveriam tomar providências a respeito. O mundo estava saturado de más ideias aproveitadas, mas também de boas ideias rapidamente descartadas. Dependendo o fornecedor, nem olhavam, era lixo diretamente. Mas quem julgava isso? Com que autoridade? Com que outorga? Os pobres estavam destinados a produzirem muitos descartes, viviam atulhados. Eram rejeitados precocemente. Logo, pelo hábito de serem rejeitados, deixam de formular ideias e apenas seguiam as ideias capitalizadas e obritatórias, muitas vezes embasadas pelos projetos de leis, que nada mais eram do que outras ideias votadas por poucos para obediência de todo o resto da população.
Os pobres viviam soterrados de sobras, alimentos que restavam, materiais descartados e ideias. Muitas ideias rudes, ideias gastas, ideias velhacas, ideias das piores índoles. Eram entorpecidos pelo peso sufocante dessas ideias. O puro enxofre inalado. Essas ideias desencadeavam violência, brigas entre irmãos, confusões entre vizinhos, desgostos no bairro. Na periferia, se roubava de tudo: alimentação básica, para subnutrirem-se famílias inteiras, roupas usadas, sobras de materiais, como madeiras, ferros, peças e ferramentas velhas, mas sobretudo ideias. Alguma ideia que poderia interessar era facilmente surrupiada. Não se podia deixar uma ideia secando no varal à vista da vizinhança que a ideia poderia ser, a qualquer instante, em manobra raposa, raptada com apenas os pregadores deixados para trás.
As ONGs denunciavam que algumas das melhores ideias estavam sendo roubadas incluso desses mais pobres, impossibilitando que as pessoas ascendessem de vida. Havia várias formas de traficar ideias, o mercado ilícito avançava com cada vez mais denúncias, mas cada vez menos ações a respeito. Vistas grossas das forças policiais, muito envolvidas nas próprias transações. Da Justiça nem se fala, faz que não vê o absurdo do cotidiano. Ideias transportadas em malas, em porta-malas, em roupas íntimas, às vezes à luz do dia, nas esquinas suspeitas, nos becos insuspeitos.
O governador transmitia sua live semanal com o recado: "Nós temos que combater esse problema grave do tráfico de ideias. É uma campanha que deve ser aderida por todos nós. A responsabilidade é igual de cada cidadão. Quem notar qualquer movimentação suspeita de ideias, precisa comunicar ao telefone 190."
Ele era aplaudido. Era uma grande ideia. Mas a oposição estava cansada do lenga-lenga. Protestos eram organizados, grandes cartazes tomavam conta das ruas. "Chega do roubo de ideias", pedia a classe média. "Queremos nossas ideias ouvidas", pediam os mais pobres. "Parem de entorpecer nossos filhos com suas ideias", implorava uma das mães da periferia.
O governador garantia que todas as vozes, todas as ideias seriam ouvidas. Solicitava que a população não se preocupasse, que ele estava atento, se reunindo, procurando soluções, com articulações com os outros partidos para tecerem ideias sobre o tráfico e o descarte irregular de ideias.
Uma das formas solucionáveis posta em votação foi aumentar a pena para quem fosse pego com ideias que não fossem suas, ao passo que também elevariam os anos de detenção ou as multas de quem fosse pego com descarte irregular de ideias. Nada de colocar ideias em terrenos baldios. Nada de inundar a periferia, os bairros pobres com mais ideias que desgraçavam a cabeça dos mais jovens e podiam servir de estopim para o fim da vida dos mais velhos.
A confusão estava formada naquela sociedade. Os livros começaram a ser queimados indistintamente. Ao contrário de se ouvir os mais pobres, o que ocorria era que as ideias dos que buscavam conhecimento estavam cada vez mais silenciadas. A preocupação em combater às más ideias servia de pressuposto para que ninguém mais pensasse e elaborasse por si só. A censura tomou conta das ruas.
Primeiro houve o toque de recolher. Ninguém poderia ser apanhado com ideia suspeita - e abre-se grande parêntese subjetivo para o que poderia ser uma ideia suspeita - depois das 20 horas. Os bares começaram a se esvaziar. As noites perdiam o brilho. Os donos decretavam a falência. Os bares, cada vez mais silenciados, com menos clientes, exibiam cartazes da proibição de ideias suspeitas entre aquelas 4 paredes. A música passava a ser censurada. Eram poucas as canções liberadas pelo governo, com uma ênfase muito grande em onomatopeias. Iê Iê Iê - LeLêOlaLá - TchereTcheTche.
As ideias circulavam então de forma ilegal. Ao invés dos mercados ilícitos serem combatidos, acabaram ampliados, porque muito do que era considerado legalizado foi apontado como indigno, merecedor de reprimendas policiais e da Justiça.
Havia muita hipocrisia, obviamente. Os próprios órgãos legisladores, os censores, estes usufruíam do poder de contar com suas ideias mais à vontade. Eram festas regadas a más ideias, a más índoles. A polícia apreendia ideias e ela própria revendia. Ou descartava nas favelas, ameaçando qualquer jovem ou velho que pudesse denunciar a prática corriqueira. Os juízes eram subornados. Recebiam ideias, roupas de grife, doces, mulheres, descontos em restaurantes e quartos, tudo liberado, sem intervenções. Sem a quem recorrer.
Foi nessa sociedade cada vez mais opressora que a mãe alicerçava seu discurso, já cansativo. Cansativo para ela, para a própria garganta, para suas emoções que subiam pela garganta até o tom embargado de sua voz, a glote e a epiglote trabalhando sucessivamente, o ar ameaçando faltar-lhe à certa altura da distribuição coerente de palavras. Os filhos atentos, paralisados, petrificados por tamanha corrente desenrolada pelos conhecimentos da experiência trazidos através da mãe, que era muito cautelar em distribuir suas ideias.
A mãe era uma pessoa muito culta. Trabalhava fora desde nova, mas trazia consigo a consciência de proteger bem as suas ideias. Não dava bandeira pelas ruas, voltava cedo para casa, especialmente depois do decreto pelo toque de recolher. Antes, até aproveitou companhias hoje vistas como más pelos moralizadores, pelos intocáveis. Aprendeu o que vinha constituindo sua alta gama de conhecimento. Mas guardava tudo consigo. Uma ou outra carta enviadas pelo correio ilegalizado. Trocas de correspondência. As que recebia eram devidamente guardadas em peça secreta nas entranhas de seu misterioso quarto. As crianças, obviamente, não tinham acesso. Mas vez ou outra suspeitavam da própria mãe, entendendo seu lado, favoráveis à matriarca.
Com aquele discurso acerca da sociedade em que viviam, a mãe conquistou a máxima atenção de seus descendentes, envoltos ali por uma bruma espessa com camadas extras de vergonhoso sentimento. Brigar por uma piada. A ambos, a reflexão após o discurso é de que se encontravam no modo errôneo.
A filha, que se chamava Cláudia, pediu desculpas ao irmão por descartar uma ideia que a ele parecia boa. Deveria apoiar seu companheiro de residência, porque a piada nada possuía de preconceitos, nem se direcionava a qualquer mal contra os costumeiramente oprimidos.
O filho, Rafael, pediu desculpas à irmã por ter se enervado tanto. Era apenas uma piada, nada grave, mas ele havia se sentido ofendido. Admitiu que estava especulando uma vingança contra Cláudia, mas que, se eles se cumprimentassem e ela prometesse tratar suas ideias melhor, ambos estariam em acordo. Tomaram-se pelos braços em um abraço plenamente fraterno e verdadeiro. A situação estava consertada, ao menos no laço daquela residência comum em bairro classe econômica média baixa.
A mãe sentiu o alívio do reparo feito dentro de suas peças, mas sabia que muito havia a fazer pelo lado de fora. Disposta a politizar-se pelos partidos cada vez mais suprimidos, naquela noite ela sentou-se para escrever uma carta. Precisava ser breve, necessitava atirar com precisão, para caber tudo no menor volume possível e, principalmente, mantê-la em sigilo, entregá-la nas mãos certas. Talvez a piada de seu filho Rafael, descartada para o lixo pela irmã, tenha criado impulso para uma revolução. Por enquanto, ao menos, uma revolução dentro dela. A mãe, Isabela, estava cansada de lamentar o presente e reverenciar ao passado, quando havia a maior e melhor circulação das ideias. Mas nem era bom contarmos seu nome nessas linhas.