31 de julho de 2020

A Corrupção de Ideias

Parou com as mãos na cintura, na velha posição conhecida como açucareiro, esperando que a criminosa se apresentasse perante o júri. Ele estava indignado, tendendo para o grau furioso, mas procurando conter-se. Jamais tinha visto tamanha afronta, petulância direcionada contra si. E achavam que ele, logo ele, investigador, meticuloso, vidrado, não iria descobrir. Ah, mas ele iria, sim. E descobriu.

Ela saiu do banheiro para tomar o corredor e seguir para o quarto, mas foi paralisada pela voz certeira, que estava à espera do exato momento, para proferir: "Achou que eu não descobriria. Mas eu achei isto."

Ele tinha na mão esquerda um papelzinho todo amarrotado, em uma bolinha de formato imperfeito. Isto talvez tenha aumentado a sua indignação, porque nem ao menos sua irmã se deu o trabalho de formular uma esfera concisa com aquele referido papel. "Achou que eu não descobriria", repetiu, inquisidor que estava.

- O que é isso? - Ela tentou ganhar tempo. Se fez de boba.
- Isto?! Isto você sabe muito bem o que é.

Um ruído na fronte da casa indicava que a mãe de ambos havia chegado. Os adolescentes ganhavam nova testemunha da discussão. Mais do que isso, possivelmente chegava a pessoa que bateria o martelo, juíza da sentença derradeira. Ao girar a chave e flexionar a alça da maçaneta, já estava em território hostil para tomar partido pela filha ou pelo filho.

- Mamãe, olha o que...
- Não ouça, mãe, ele está louco e...
- Silêncio! Silêncio! Mas será que a gente pode nem chegar em casa?!

Ambos desculparam-se, mas ainda ofegantes e dispostos a resolver o alarido o quanto antes.
- O que aconteceu aqui? - Ela disse, retirando o casaco, depositado gentil e calmamente sobre o encosto da sua habitual poltrona para assistir à televisão.
- Veja, mãe. - Ele entregou o papel.
- O que é isso? - A mãe perguntou um pouco temerosa, ao pegar com a ponta dos dedos, em formato de pinça, àquela indecifrável prova de crime.
- Isto... ora, isto é uma ideia minha.
- Ideia. Que tipo de ideia?
- Era uma piada. Ela jogou fora. - Apontou para a irmã.
- É verdade o que Rafael me conta?
- É... Mas...
- Viu! Viu só! Ela iria negar se você não aparecesse, mamãe. Ela sempre faz isso. Aposto que não é a primeira vez que joga uma ideia minha fora. Vou começar a vasculhar melhor as latas de lixo.
- Foi a primeira sim!
- Como vamos saber? - Inquiriu o irmão.
A irmã deu de ombros.

A mãe estava desapontada com a briga, mas começou a providenciar um discurso sobre o mundo das ideias. Como diariamente muitas ideias eram desperdiçadas, indo parar nas latas de lixo, recolhidas sem ao menos serem averiguadas, sem serem lidas, sem serem testadas. Iam parar nos aterros sanitários e aí não haveria volta. As ideias inundavam oceanos, iam parar em estômagos de animais desatentos, que passavam mal com aquelas ideias, quando ingeridas em grandes quantidades. De acordo com a mãe, as ideias deveriam ser bem trabalhadas. O ato de talhar as ideias começava na própria mente, antes de elaborar uma, era preciso pensar a respeito do assunto, da gravidade, do objetivo, do que estava disposto a ser feito. Era como tricotar, saber qual o resultado final, quais cores, qual malha, qual intensidade, se primavera-verão, se outono-inverno, para quem, para quais ocasiões. Tudo deveria ser pensado.

O descarte irregular de ideias era de fato um problema que os governos deveriam tomar providências a respeito. O mundo estava saturado de más ideias aproveitadas, mas também de boas ideias rapidamente descartadas. Dependendo o fornecedor, nem olhavam, era lixo diretamente. Mas quem julgava isso? Com que autoridade? Com que outorga? Os pobres estavam destinados a produzirem muitos descartes, viviam atulhados. Eram rejeitados precocemente. Logo, pelo hábito de serem rejeitados, deixam de formular ideias e apenas seguiam as ideias capitalizadas e obritatórias, muitas vezes embasadas pelos projetos de leis, que nada mais eram do que outras ideias votadas por poucos para obediência de todo o resto da população.

Os pobres viviam soterrados de sobras, alimentos que restavam, materiais descartados e ideias. Muitas ideias rudes, ideias gastas, ideias velhacas, ideias das piores índoles. Eram entorpecidos pelo peso sufocante dessas ideias. O puro enxofre inalado. Essas ideias desencadeavam violência, brigas entre irmãos, confusões entre vizinhos, desgostos no bairro. Na periferia, se roubava de tudo: alimentação básica, para subnutrirem-se famílias inteiras, roupas usadas, sobras de materiais, como madeiras, ferros, peças e ferramentas velhas, mas sobretudo ideias. Alguma ideia que poderia interessar era facilmente surrupiada. Não se podia deixar uma ideia secando no varal à vista da vizinhança que a ideia poderia ser, a qualquer instante, em manobra raposa, raptada com apenas os pregadores deixados para trás.

As ONGs denunciavam que algumas das melhores ideias estavam sendo roubadas incluso desses mais pobres, impossibilitando que as pessoas ascendessem de vida. Havia várias formas de traficar ideias, o mercado ilícito avançava com cada vez mais denúncias, mas cada vez menos ações a respeito. Vistas grossas das forças policiais, muito envolvidas nas próprias transações. Da Justiça nem se fala, faz que não vê o absurdo do cotidiano. Ideias transportadas em malas, em porta-malas, em roupas íntimas, às vezes à luz do dia, nas esquinas suspeitas, nos becos insuspeitos. 

O governador transmitia sua live semanal com o recado: "Nós temos que combater esse problema grave do tráfico de ideias. É uma campanha que deve ser aderida por todos nós. A responsabilidade é igual de cada cidadão. Quem notar qualquer movimentação suspeita de ideias, precisa comunicar ao telefone 190."

Ele era aplaudido. Era uma grande ideia. Mas a oposição estava cansada do lenga-lenga. Protestos eram organizados, grandes cartazes tomavam conta das ruas. "Chega do roubo de ideias", pedia a classe média. "Queremos nossas ideias ouvidas", pediam os mais pobres. "Parem de entorpecer nossos filhos com suas ideias", implorava uma das mães da periferia.

O governador garantia que todas as vozes, todas as ideias seriam ouvidas. Solicitava que a população não se preocupasse, que ele estava atento, se reunindo, procurando soluções, com articulações com os outros partidos para tecerem ideias sobre o tráfico e o descarte irregular de ideias.

Uma das formas solucionáveis posta em votação foi aumentar a pena para quem fosse pego com ideias que não fossem suas, ao passo que também elevariam os anos de detenção ou as multas de quem fosse pego com descarte irregular de ideias. Nada de colocar ideias em terrenos baldios. Nada de inundar a periferia, os bairros pobres com mais ideias que desgraçavam a cabeça dos mais jovens e podiam servir de estopim para o fim da vida dos mais velhos.

A confusão estava formada naquela sociedade. Os livros começaram a ser queimados indistintamente. Ao contrário de se ouvir os mais pobres, o que ocorria era que as ideias dos que buscavam conhecimento estavam cada vez mais silenciadas. A preocupação em combater às más ideias servia de pressuposto para que ninguém mais pensasse e elaborasse por si só. A censura tomou conta das ruas.

Primeiro houve o toque de recolher. Ninguém poderia ser apanhado com ideia suspeita - e abre-se grande parêntese subjetivo para o que poderia ser uma ideia suspeita - depois das 20 horas. Os bares começaram a se esvaziar. As noites perdiam o brilho. Os donos decretavam a falência. Os bares, cada vez mais silenciados, com menos clientes, exibiam cartazes da proibição de ideias suspeitas entre aquelas 4 paredes. A música passava a ser censurada. Eram poucas as canções liberadas pelo governo, com uma ênfase muito grande em onomatopeias. Iê Iê Iê - LeLêOlaLá - TchereTcheTche.

As ideias circulavam então de forma ilegal. Ao invés dos mercados ilícitos serem combatidos, acabaram ampliados, porque muito do que era considerado legalizado foi apontado como indigno, merecedor de reprimendas policiais e da Justiça.

Havia muita hipocrisia, obviamente. Os próprios órgãos legisladores, os censores, estes usufruíam do poder de contar com suas ideias mais à vontade. Eram festas regadas a más ideias, a más índoles. A polícia apreendia ideias e ela própria revendia. Ou descartava nas favelas, ameaçando qualquer jovem ou velho que pudesse denunciar a prática corriqueira. Os juízes eram subornados. Recebiam ideias, roupas de grife, doces, mulheres, descontos em restaurantes e quartos, tudo liberado, sem intervenções. Sem a quem recorrer.

Foi nessa sociedade cada vez mais opressora que a mãe alicerçava seu discurso, já cansativo. Cansativo para ela, para a própria garganta, para suas emoções que subiam pela garganta até o tom embargado de sua voz, a glote e a epiglote trabalhando sucessivamente, o ar ameaçando faltar-lhe à certa altura da distribuição coerente de palavras. Os filhos atentos, paralisados, petrificados por tamanha corrente desenrolada pelos conhecimentos da experiência trazidos através da mãe, que era muito cautelar em distribuir suas ideias.

A mãe era uma pessoa muito culta. Trabalhava fora desde nova, mas trazia consigo a consciência de proteger bem as suas ideias. Não dava bandeira pelas ruas, voltava cedo para casa, especialmente depois do decreto pelo toque de recolher. Antes, até aproveitou companhias hoje vistas como más pelos moralizadores, pelos intocáveis. Aprendeu o que vinha constituindo sua alta gama de conhecimento. Mas guardava tudo consigo. Uma ou outra carta enviadas pelo correio ilegalizado. Trocas de correspondência. As que recebia eram devidamente guardadas em peça secreta nas entranhas de seu misterioso quarto. As crianças, obviamente, não tinham acesso. Mas vez ou outra suspeitavam da própria mãe, entendendo seu lado, favoráveis à matriarca.

Com aquele discurso acerca da sociedade em que viviam, a mãe conquistou a máxima atenção de seus descendentes, envoltos ali por uma bruma espessa com camadas extras de vergonhoso sentimento. Brigar por uma piada. A ambos, a reflexão após o discurso é de que se encontravam no modo errôneo.

A filha, que se chamava Cláudia, pediu desculpas ao irmão por descartar uma ideia que a ele parecia boa. Deveria apoiar seu companheiro de residência, porque a piada nada possuía de preconceitos, nem se direcionava a qualquer mal contra os costumeiramente oprimidos.

O filho, Rafael, pediu desculpas à irmã por ter se enervado tanto. Era apenas uma piada, nada grave, mas ele havia se sentido ofendido. Admitiu que estava especulando uma vingança contra Cláudia, mas que, se eles se cumprimentassem e ela prometesse tratar suas ideias melhor, ambos estariam em acordo. Tomaram-se pelos braços em um abraço plenamente fraterno e verdadeiro. A situação estava consertada, ao menos no laço daquela residência comum em bairro classe econômica média baixa.

A mãe sentiu o alívio do reparo feito dentro de suas peças, mas sabia que muito havia a fazer pelo lado de fora. Disposta a politizar-se pelos partidos cada vez mais suprimidos, naquela noite ela sentou-se para escrever uma carta. Precisava ser breve, necessitava atirar com precisão, para caber tudo no menor volume possível e, principalmente, mantê-la em sigilo, entregá-la nas mãos certas. Talvez a piada de seu filho Rafael, descartada para o lixo pela irmã, tenha criado impulso para uma revolução. Por enquanto, ao menos, uma revolução dentro dela. A mãe, Isabela, estava cansada de lamentar o presente e reverenciar ao passado, quando havia a maior e melhor circulação das ideias. Mas nem era bom contarmos seu nome nessas linhas.

27 de julho de 2020

Nossa Música

sempre toca a nossa música
na minha cabeça é túnica
única em meu coração

mentes e mãos em formas lúdicas
indicação nem sempre pública
contigo é sem restrição

sempre toca a nossa música
dentro da minha cabeça
de fora não me interessa
no meu mundo estás aqui

sempre toca a nossa música
versos e refrões
versões que se alternam
mudanças internas
sofrendo alterações

Dias Iguais

Meus dias são tão iguais
Como eu desigualaria os dias?
Meus embalos estão tão iguais
Tu me desembalarias

Completar a paisagem
Me tirar da embalagem
Na alta voltagem
Na maior vontade

Meus dias são tão iguais
Como me agradariam os dias
O que diriam os mapa astrais
Será que me confidenciariam?

Desenhar a viagem
Me tirar da embalagem
Pisar na embreagem
Ver o que vai acontecer

Meus dias são tão normais
Para o padrão dos meus dias
Mesmos filmes em cartaz
Confusões e fantasias

É domingo


É meio-dia e vinte
É domingo
Tem luz lá fora
É domingo
Vê se não demora para o almoço
É domingo
Migalhas de bolacha para limpar
É domingo
Amanhã em vigor outra liminar
É domingo
Esqueceu do remédio para as unhas
É domingo
Suas costas destapadas
É domingo
Ou poesia

O vizinho arrasta os móveis
É? É domingo
Algum padre em reprise pelo rádio
Um áudio seu eu esqueci de abrir
É domingo

Franceses e Outros

Flor, me ajude a compor
Com suas pétalas, suas sépalas
E tudo mais
Que eu não posso separá-las
E a natureza, não podemos pará-la

Flor, me ajude a transpor
Um novo sentido, como o pequeno príncipe
Um novo princípio, um indício
Seja ele qual for

Flor, me ajude on the floor
Os contos de Alan Poe
A canhota de Paul McCartney
Ou a direita de Cezanne ou de Gaughin
Os caras que eu sou fã
Me ajude no amanhã

Flor, me ajude a ser melhor
Ao que eu era antes -  de te conhecer
Os versos de Belchior, os quadros de Monet
Joan Miró, Joana D'Arc, Edith Piaf
Linkin Park ou Faith No More

Os contos do Alan Poe
Músicas David Bowie
Os livros de Tolstoi
A loucura de Gogol
E o que ainda não foi
Flor, me ajude a transpor

marquise da melhor dimensão

eu ouço e reouço
onde eu posso melhorar
eu me esforço
e torço que eu possa chegar lá

quanto mais consigo de vocabulário
menos eu digo; menos entendem o que eu falo
assim eu calo; assim eu falho

quanto mais aprendo
menos eu me lembro
a sobrecarga, o vício da bateria
super-aquece, você me larga

você me esquece e eu bem que gostaria
também de me esquecer
quem sabe um dia... ainda não programado
válvulas e botões mantidos desligados

ligar-me só ao que importa
largar-me do que me sufoca
juntar-me ao que me ajuda quando toca
livrar-me do que só faz peso às costas

melhorar-me: a disciplina de um judoca
sorri-me: teu sorriso é uma nota
musical, fundamental, imaterial
que se materializa, realiza na minha mente
e me aquece, no tempo um presente
me aquece, natural do ambiente

e eu não esqueço
nem tem como esquecer
e eu não esqueço
também nem quero esquecer

e me aquece
a uma temperatura ideal
e me aquece
um fogo natural
que não desmata
e me faz viver
minha alma grata
por te conhecer

minha alma grita
a excitação
e me instiga
a melhor inspiração
repita aquele sorriso
é o paraíso em expansão
a marquise da melhor dimensão

românticos da rua augusta

eu queria ter a voz de Wander Wild-ner
acho que com ela eu saberia o que fazer
eu queria escrever como Gustavo Kaly
fazer canções sobre coisas que você me fale
eu queria compor como Jimi Joe
canções da limpeza do convés e quem teve enjoo
eu queria compor como Jimi Jo-e
amores rupestres e campestres flores

eu queria ter o carisma de Wander Wild-ner
assim tenho certeza o sofisma é pra valer
eu queria ser visitante como Gustavo Kaly
conhecer lugares daqueles que você me fale
eu queria escutar mais de Jimi Joe
e as rádios insistem no baixo conteúdow
eu queria escutar mais de Jimi Joe
e as rádios necas de tocar outros rock 'n' roll

os românticos da rua augusta podem ter acabado
mas estão por outras ruas, logo se escuta
os românticos da rua augusta podem ter acabado
mas estão por outras ruas, logo se escuta

23 de julho de 2020

Jogo de Alternativas

Às vezes pelas situações conflituosas a que nos deparamos no cotidiano, parece que temos apenas três opções. São elas:
- mentir ou ocultar a verdade em saídas dissimuladas; falsas.
- falar a verdade e lidar com as duras, severas consequências disso.
- falar nada, manter a posição de silêncio, de afastamento, panos em cobertura, se fazer de sonso ou de louco até a poeira baixar.

Como podem perceber, nenhuma das escolhas é devidamente satisfatória. Então, qual escolher? A primeira parece a mais corriqueira. As pessoas fazem muito isso. Isso as mantém em convívio social, dá salvaguardo para poderem encobrir seus erros, seus pecados, seus atos falhos, seus equívocos, suas más intenções e suas más ações. Basta que carregue no coldre a artilharia da dissimulação e mantenha-se firme na mesa de apostas dos interesseiros. Negociações são feitas assim. Imóveis, vendas, cartéis, relacionamentos. E as pessoas sobrevivem dessa maneira. É a boia no alto mar dos carteadores.

Caso opte pela opção do meio, falar a verdade e lidar com as pesadas consequências, o jogador precisa antever as jogadas seguintes. Ou vai optar por seguir uma linha dura de respostas cruas e verdadeiras, sinceras a seu gosto, ou, vez ou outra, vai acabar cedendo para a dissimulação para não "piorar as coisas". Mas uma vez utilizada a verdade nua e crua, a sinceridade desmedida, o processo todo está para ruir. É ou não é assim que acontece? Após o tiro fatal de início, um tiro pela culatra, tudo que o jogador vai querer é: ir até o fim ou consertar a sinceridade, do sincero como não se pode ser. Ah, e esse erro assim tão vulgar persegue a noite inteira e quando acaba a bebedeira o erro esse, ele consegue nos achar. Num bar, num vinho barato, um cigarro no cinzeiro ou uma cara embriagada no espelho do banheiro. Perfeita descrição em Refrão de Boleiro, Engenheiros do Hawaii.

Quanto mais o jogador avança na opção B, de falar a verdade nua e crua, ele fecha-se em um labirinto. Talvez muito lamente não ter mentido, dissimulado desde o início. Ou ele aferroa-se com as verdades enquanto durar o cartucho dos disparos, ou tenta retroceder, voltar para a simulação, para o lado dissimulado, mas sempre correndo o risco de ser tarde demais. A pessoa atingida pelo disparo da verdade pode estar na ambulância, a caminho da UTI. É grave. Talvez não se recupere. Salvo o caso de uma lobotomia, a pessoa atingida vai carregar com rancor essa verdade disparada, essa verdade que ofendeu a si, suas roupas, seu produto à venda, seu hálito, seus movimentos sexuais, sua família fofoqueira, seus amigos debilóides, qualquer coisa do gênero.

Tenha muito cuidado com o disparo das verdades. Parece estar fazendo a coisa certa, mas o receptor vai encarar de uma maneira bastante distinta ao seu bom caráter objetivo. A intenção e o efeito tomam rumos diferentes nos viadutos da vida. Além do mais, dependendo o teor, o rigor da verdade disparada, você vai ser interpretado como louco por tê-la dito, por tê-la feito. Sim, é mais fácil para as pessoas encaminharem, calcularem diariamente o saldo bancário das invenções, das dissimulações. Elas preferem lidar com isso no extrato do banco do que com o peso endividatório das verdades.

As pessoas acabam excluindo aquela disparadora de verdades. Não é conveniente ter no grupo uma disparadora de verdades, não faz bem essa sinceridade objetiva. No que ela ajuda? Ela é ofensiva, ela traz ressentimentos. Ela arma sobre si a sombra eternizada do rancor. As pessoas olharão com desconfiança para aquele ente verdadeiro, o personagem Super Sincero, armado em série humorística da Rede Globo. Não pode lidar com o fato de ser o Super Sincero. A menos que todas as suas relações sejam episódicas de cinco minutos. Por exemplo, confrontar um vendedor em loja de calças jeans.

Enfim, as pessoas preferem o dissimulador, o das mentiras convenientes, parece que faz parte da fantasia de tentar adivinhar onde estão as verdades e onde estão as dissimulações. É intrigante. É com intriguinhas que os assuntos percorrem, como fios condutores. "O que será que ele quis dizer?" "O que será que está escondendo?" "E qual será a dele com Fulana?" "E qual será a dela com Belgrano?"

Para além disso, como parece ter ficado claro e cristalino, as mentiras convenientes mantém o clima agradável, o ambiente suportável em meio à essa sociedade insuportável. Pequenas bolhas, pequenos nichos, não sejam tão verdadeiros, ora pois. As pessoas fingem que suportam, mas não suportam. É como um halterofilista tentando erguer uma quantia de massa naqueles halteres mais pesados do que ele consegue. É uma corredora despreparado para enfrentar a maratona. É o suicida com medo do momento derradeiro, do corredor da morte, da sentença do enforcamento. Ninguém está pronto.

As mentiras por conveniência permitem que os jantares ruins -muito agradecido, estava maravilhoso, por suposto, precisamos repetir - deem lugar para os jantares verdadeiramente bons, apreciáveis, conciliatórios, os que fazem a vida valer cada pena. Assim são os erros dos amigos e como os reparamos. Deixamos que errem um pouco, mas isso pode fugir do controle. O rapper Black Alien gosta de postular a metáfora de abrir os portões da casa e a cachorrada não quer mais voltar. É realmente difícil controlar que voltem, que regressem em tranquilidade. Não mais, não mais.

Mas é importante conter equívocos, atitudes desbaratadas dos amigos, uma hora precisa ser feito. Alguém tem de fazê-lo, percebem? Do contrário esse amigo, essa amiga, ele ou ela vai acabar na pior. E aí também será muito difícil consertar. É preciso se atravessar com verdades, interferir para o bem dessa pessoa, quer ela ali entenda ou não. Do contrário, esse amigo ou essa amiga irá longe, longe demais e o regresso da tranquilidade... ah, como é esse caminho mesmo?

Enfim, o que foi tentado provar é que as verdades ditas a todo momento desgastam muito, você não vai conseguir levar o relacionamento social por muito tempo. Será julgado como chato e inconveniente dizendo sempre que achar as coisas chatas ou inconvenientes. Mas se esquivar de dizer as verdades nas horas certas, quando a coleira precisa ser afivelada e não há outra saída, se esquivar das verdades aí é uma omissão tremenda. O preço pode ser muito alto.

Por fim, a opção C é justamente sobre omissões. Recorro muito a elas. É não conseguir dissimular nem dizer a verdade, é fugir de A e de B. É esperar a poeira baixar. É esperar a maré estar mais favorável. É esperar bonança após uma grandiosa tempestade. Mas será que não tomar escolhas nos salva no período enquanto não tomarmos? Realmente, nem sempre temos essa possibilidade de aguardo. O olho do furacão não perdoa. É preciso fazer algo. A bola de segurança, como bem treinada e que as pessoas conseguem naturalmente é a Letra A. Alternativa B é naquele ritmo insaciável de consequências, avalanche sucedendo.

Sim, queria muito poder participar mais efusivamente das eventualidades sociais a partir da alternativa A. É muito difícil não conseguir, é ser como um alien. O alien da omissão se sai melhor do que o alien descarado da opção B, que é uma opção sem dúvida alguma de muita coragem.

Se soubesse como escolarizar as dissimulações de A, eu mesmo abriria a escola para ajudar quem mais precisasse delas. Acredito que, mesmo que não seja a normalidade, somos muitos. A humanidade, as pessoas dependem umas das outras. O difícil é suportá-las nesse jogo de constantes necessidades a serem cumpridas, a serem saciadas. E para suportar uma vida, um ano, um mês, um dia que seja, quantas opções A temos que marcar a contragosto?

22 de julho de 2020

Tudo é fagulha

Tudo é fagulha
Se mistura na minha cabeça

E vou daqui pra Lagoa da Pampulha
E vou daqui pra longe da censura
E vou daqui pra tua cintura
E vou daqui a encontrar minha cura

Tudo é fagulha
Se mistura na minha cabeça

E vou daqui pra onde o sol nasça
E vou daqui pro calor das massas
E vou daqui a Paris e a Barça
E vou daqui aonde ela me abraça
Ou pelo menos por onde ela passa

Tudo é fagulha
E faz mesuras na minha cabeça

E vou daqui até onde aconteça
E vou daqui às águas de Veneza
E vou daqui às cataratas - correntezas
Patagônia, Lapônia, Natureza
Patagônia, Lapônia, Natureza

Qualquer lugar onde eu esqueça
As patrulhas da minha cabeça

maio de 2020

Forró da Censura

Teias de aranha chovem sobre mim
Claro que é assim
Claro que é assim

Queeee bonita
Que doçura, que lisura
Forró da censura
Forró da censura

Tira a mão
Só acima da cintura
Forró da censura
Forró da censura

Aqui se arrasta
E se joga pros cachorro
Ninguém pede socorro
Ninguém pede socorro

Os corpo lá de cima
São assim que desce o morro
Assim que desce o morro
Assim que desce o morro

O couro ainda vem quente
Mas tá estancado o jorro
Tá estancado o jorro
O jarro de aguardente
Pra estancar o choro
Pra estancar o choro

Anel de doutor nunca subiu o morro
O anel se fecha que não passa nenhum dedo
Os de baixo aqui subir, só sobe com o medo
Sobe com o medo
Sobe com o medo

Os homem sobe com o trabuco na cintura
Forró da censura, forró da censura
Peeeela frente, pelas costas
Quem atira? Roda roda vira
Roda roda vira
As favela, as quebrada, a perifa
Roda roda vira
Roda roda vira
O bingo da janela que nem bilhete de rifa
Roda roda vira
Roda roda vira
Forró da censura, forró da mentira

21 de julho de 2020

primazia

me apaixonei foram por suas citações
refletidas em vós
espelho do que eu queria ler e ouvir
era o que eu procurava e o que você trazia
era remédio, colírio de minha melancolia

19 de julho de 2020

Fragmentos de Tempos Pandêmicos - Dia 19/07

Pensei muitos elementos para aqui trazer. O primeiro deles me lembra do cursor piscando esperando a primeira ou a próxima palavra de um texto. Antes de chegar nesse avançado estágio, me deparo com a tela escura do notebook refletindo meu rosto com o sol deste domingo. Meu cabelo nunca foi tão comprido. Não, não é a recomendação da OMS. Mas acredito que todas as demais eu tenha cumprido, com exceção d uma ou outra cerveja aos finais de semana.

Definitivamente trarei más notícias. Enquanto isso, meu disco preferido do Blur toca ao fundo. É o que mais ouvi nesse período de isolamento social / quarentena. Obrigado, Damon Albarn. Fico pensando na precisão que os escritores precisavam demonstrar à frente das antigas máquinas de escrever. Clareza e coesão nas ideias a serem desenvolvidas e acertos das mãos às teclas. Cirurgiões. Antes deles, o tremendo esforço de molhar a pena nos tinteiros de séculos passados.

Enquanto a música Coffee and TV fala em casar e recomeçar, penso nos afazeres que preciso desenvolver nessa folga dominical do jornal que escrevo. Estamos sem edições de segunda-feira por conta da pandemia, então reiniciamos as notícias do extremo sul para as manhãs pelotenses de terça-feira. Apesar disso, hoje é o último dia de prazo para gravar um vídeo para meu amigo que aniversaria. É uma pressão grande estar diante de uma câmera de baixa resolução falando sobre os anos em que nos acompanhamos, tentando passar uma mensagem o mais bonita e sensível possível e, se não for pedir demais, também engraçada. Uma responsabilidade tremenda que adiei durante a semana até o dia de hoje. Espero que posicionar esse fato nessas linhas me ajude a corresponder com o compromisso.

Agora começa a tocar a música Parklife sobre a monotonia da vida e o sedentarismo. Este último que deve, ou deveria, ser maior na Inglaterra do que aqui. Li uma manchete de que o Reino Unido se prepara para a segunda onda de contágios do novo coronavírus. É o país europeu que registrou mais mortes até o momento, com mais de 45 mil. Proporcionalmente também superior à média brasileira até aqui. O número de idosos lá deve contar bastante para essa alta estatística.

Estou enrolando com outros acontecimentos a tristeza de que estou com um primo internado em UTI em Santa Catarina. Ele tinha problemas crônicos, me parece que bronquite, o que lhe caracteriza como grupo de risco para a maldita pandemia. Penso em sua agonia, sem acompanhamento de parentes no hospital, em alas isoladas pela segurança e tentativa de redução de contágios. Ele fez o teste pela doença e aguarda o resultado. O irmão dele já foi em deslocamento para o hospital, mas mesmo assim não pode ficar ao pé da cama. As situações hospitalares já eram agoniantes, mas tudo pode piorar.

Pensei isso sobre suicídio esses dias. Minha irmã, com seus contatos de mediunidade, me afirma que suicidar traz malefícios incontáveis para a alma, consequências pesadas. Não sei direito sobre isso, penso que o mundo aqui em cima é muito ruim por tudo que relato nesses anos todos, mas claro que podemos, a partir disso, imaginar pelo menos 100 situações de como poderia ser pior. Você não consegue? Obviamente que consegue. Sempre pode ser pior.

A presidência. A ausência de governo, a ausência de ministros, o crescimento de casos, o crescimento de mortes. A corrupção. O desfragmento das esquerdas que novamente serão derrotadas irremediavelmente enquanto mantiverem essas posturas. Os gafanhotos que fugiram de nosso frio e de nossas chuvas. O frio e as chuvas que castigaram ainda mais a pobreza deste país. Os números distorcidos de desempregados, enquanto a informalidade é a realidade do país, com sub-empregos, com pouca garantia, com salários menores do que o salário mínimo para sustento de famílias inteiras. Com auxílios negados ou fraudados ou insuficientes ou volte novamente amanhã, porque por hoje encerramos e não nos interessa o seu pão. A dificuldade das compras, o risco aos funcionários, nas ruas, nos caixas, no transporte público, nas feiras, na manga, na beterraba, no mamão. As máscaras que cobrem meio rosto. As máscaras que cobrem rostos inteiros.

Assisti ontem ao filme Persona, de Ingmar Bergman. Péssima tradução brasileira para "Quando duas Mulheres Pecam", como um comentou no site Filmow, é uma tradução preconceituosa e até lesbofóbica. É uma das grandes obras do sueco Bergman, creio que valha a pena assistir mais de uma vez, para ver onde as personagens de fato se fundem, procurar, teorizar, tentar descobrir onde está a fantasia e onde está a realidade. E onde está a nossa realidade nisso tudo, nesse mundo de máscaras. "Personas", termo das tragédias gregas.

Após a onda de frio, estamos com o calor úmido, que deve ser trágico para rinites e sinusites. Piadas de que são coriza, espirros e inchaços e olhos vermelhos dessas doenças crônicas, não por causa da covid-19. Está tudo junto e somado. Atravessamos no final de julho e para o início de agosto o pior período para combater o novo coronavírus. Leitos em lotação pelo estado e o aumento diário no número de mortes.

Estou lendo As Vantagens de Ser Invisível. Presente de uma amiga e que venceu Macunaíma, de Mário Andrade, na enquete de qual eu leria antes. É um best-seller adolescente dos Estados Unidos. Considerei bobo de início, mas há passagens que me fazem reflexivo e que contribuem para eu estar aqui neste momento. A retomada de situações, o encaixe das idades, as descobertas, o aprendizado contínuo, o como lidar. Como eu agiria em tal ocasião? Esta é uma pergunta que me permite contemplar melhor as obras, participar melhor com elas, entender melhor as personagens, concordando ou discordando, mas entendendo. Se não me enxergo diretamente na situação, penso em como seria estar ali por todo o contexto. Nem me aprofundo muito nessa questão em relação ao livro As Vantagens de Ser Invisível, mas é um exercício que costumo praticar.

O livro me fez lembrar que a primeira vez que vi os pré-adolescentes girarem a garrafa, preferi continuar treinando meus arremessos no basquete. Eram poucas gurias naquela turma, acho que houve um ou outro beijo quando brincaram disso. Mas o que eu penso sobre? Meu arremesso da linha do lance livre era o melhor entre os da minha idade. Isso me importava. Dessa vez sem arrependimentos, só recordações.

Quando será que isso tudo vai passar? O calor úmido, a pandemia que se aproxima e se mistura à história de nossas famílias, essa identificação inexata e surpresa com as obras literárias e do cinema. A escrita que pratico aqui nas folgas de jornal. Continuamos.

16 de julho de 2020

uma trilha sonora

uma trilha sonora
sem hora para me deixar
minha velha signora
deixe tudo o que não precisar

uma velha história
sem hora para assim voltar
na minha memória
onde ainda mora e vem me visitar

cavalos, esporas
o oeste que já era velho
habitá-lo e vê-lo
pelas memórias diante do espelho

a terra nas botas
a prova, o álibi e o bucolismo
o solo revolvido
e os problemas nada resolvidos

uma trilha sonora
sem hora para me deixar
minha velha signora
deixe tudo o que não precisar

te estendo a mão, desce do cavalo
sobe no meu
conceito
te estendo o peito, espinha dorsal
pra espantar o mal
todo seu
deleito

uma trilha sonora
no rádio de pilha
que lembra a senhora
que desperta a filha

uma trilha sonora
no rádio de pilha
que lembra a senhora
que desperta a filha

Foto: Gika Xavier e Nelson Alves

15 de julho de 2020

não rotundo

os corredores de hotéis são tão largos
e os quartos são tão vazios
onde se mora o diabo
también hace frio

seus seios de esponja 
esponja pra lavar minha boca

aceito ser coadjuvante 
da sua história 
tu minha principal
eu sua principal memória

trato o fungo das unhas
trago outros resmungos sem testemunhas
o mundo é cheio de fungos
dizia Brizola
"eu não rotundo"

13 de julho de 2020

pastoso

o passado
o passado te veste
às vezes lhe cai bem
às vezes meio trash

o passado
o passado que tivesse
às vezes bom de lembrar
às vezes se esquece

o passado
o som e o cenário
às vezes o cobain
às vezes é the clash

o passado
o passado te entrete
como um show
teatro de marionetes

o passado
o passado te molesta
uma festa
não somos mais convidados

o passado
o passado se abesta
não se inquieta
ao baú que é destinado

o passado
o passado em camionete
nos ultrapassa
e nos cega com seu flerte

o passado
o passado só se mete
é fácil encontrá-lo
onde não é chamado

12 de julho de 2020

gimme mais

gimme gimme
gimme mais
assisti a muitos filmes
e eles são fatais

o inglês que se mistura
na nossa cultura
celebratin' mistakes
músicas do Supla

gimme gimme
gimme more
mais amor
s'il vous plait

ela disse "merci"
eu disse "merece"
ela disse "perdi"
e eu disse "esquece"

gimme gimme
gimme mais
assisti a muitos filmes
e eles são fatais

dame dame
dame más
assisti a muitos games
já não tenho paz

To Be Relativo

Agora
Agora eu tô mais crítico
Do que no início
Do que no início

Mas logo
Logo estarei cansado
Como no passado
Como no passado

E aí
Eu vou refletir
Se vale a pena
Todos os problemas
Ter tantos problemas

O passado
O passado te alimenta
Mas não te sustenta
Mas não te sustenta

Agora
Agora há mais coisas
Que eu sei
Mas há mais coisas que não sei

10 de julho de 2020

Curtas

Mestre Mala
Porta-Banqueira

(infinitas possibilidades de variações)

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Meia Palavra Besta

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determinações nervosas
terminações
onde terminam? em quais ações?

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pra quem se informou que estou mal
queria tranquilizar a todos
que não é fake news
realmente estou mal


9 de julho de 2020

Alfonso Cuarón em 'Roma' (e a Pandemia)

Acabo de assistir ao filme Roma, de um dos diretores que mais considero em toda a história e espero que continue a fazer histórias. O mexicano Alfonso Cuarón. Escrito e dirigido por ele, Roma é uma sucessão de cenas impactantes de uma vida cotidiana, em uma realidade pesada, como é retratado o México de Cuarón na década de 1970. Nos filmes de Cuarón, como tenho observado, não são permitidas respirações muito longas. Como se estivéssemos sozinhos em um mar tormento e a luta contras as ondas torna-se incessante. Escapa-se de uma uma e vem outra diretamente. Como trata de temas do dia a dia, é interessante como sabemos de onde podem vir os problemas, mas ao mesmo tempo eles nos surpreendem. Não sabemos a ordem, não sabemos exatamente quando e onde nos encontrarão. Podemos ser atacados de frente ou pelas costas. Mar violento.

Cuarón mexe muito com a questão dos nascimentos. Em Filhos da Esperança já havia experimentado a temática com força, em um futuro apocalíptico em que os seres humanos não conseguiam mais ser férteis. A esperança depositada em uma imigrante na Inglaterra. A necessidade das crianças para o futuro geracional da espécie humana.

Tenho percebido em tempos pandêmicos como estamos em 2020 que as crianças não são somente a esperança por elas próprias, vida renovada, uma vida inteira pela frente daquelas que nascem e vão escrevendo suas páginas por ora em branco. As crianças servem para modificar a nós mesmos, jovens adultos, velhos adultos, idosos. Nos revivem tempos remotos há muito esquecidos. Nos fertilizam o elixir da esperança de novos tempos. Nos dão motivos para novas lutas, por elas, mais do que por nós, a depender dos casos. Sim, é assim que funciona.

Em 2020, ao passo que as mortes no Brasil são milhares e a pandemia do novo coronavírus leva brasileiros e brasileiras diariamente, em tempos de pouco espaço ao luto e à despedida, as crianças têm vindo repovoar ao menos a minha história. Explico. Minha amiga de jornalismo, a amiga que morava com ela, ambas mães no mesmo ano. Meu primo em Santa Catarina, um de meus preferidos em contatos, este tornando-se pai. Sinto-me renovado ao ver as fotos de Lorena, minha nova prima catarinense. Meu professor e apoiador na carreira do rádio também será pai mais uma vez. Ele me conta isso muito contente. Fico contente por ele e falo sobre esse necessário processo de renovação. Ele assimila e concorda. Estamos felicitados a respeito.

O mundo é muito ruim, é péssimo, é danoso, é hostil. Alfonso Cuarón demonstra isso a cada filme, nos dramas pessoais de seus personagens, seja no espaço sideral com Sandra Bullock tendo que retornar à Terra, ou numa Terra apocalíptica e desmembrada em guerra em Filhos da Esperança. Ou nos dramas familiares dessa última versão que me causa erupção, no filme mexicano Roma, justamente vencedor de prêmios Oscar.

Ao passo que o mundo é ruim e prega peças e persegue a imigrantes, e persegue aos pobres, e persegue às mulheres, Cuarón elucida tudo isso em suas filmagens, deixa transparente para quem quer e necessita ver. Mas deposita esperanças jubilares nas crianças, mostra novas possibilidades a partir delas. Não nos permite a completa ilusão, porque coloca nelas marcas presentes nos adultos. Talvez os garotos com armas de brinquedo no último filme mexicano. Imitação de maus hábitos adultos. Os adultos atirando no interior, na colônia rural. As crianças com pistolas de brinquedo nas cidades.

O contraste das cenas entre o que é permitido aos homens e restrito às mulheres, o que é de permissão aos ricos e proibição aos pobres. Cuarón oscila essas imagens entre cenas mais sutis ou mais grotescas. A ida para comprar um berço e os protestos estudantis duramente reprimidos pela polícia, inclusive com mortes, com muitos feridos. O quase anonimato da paciente pobre que tenta um parto, sem plano de saúde. A forma como as empregadas são tratadas, isso observado em outros sucessos de bilheteria, como o brasileiro Que Horas Ela Volta? e o sul-coreano Parasita, duas outras grandíssimas produções vencedoras em festivais.

Cuarón aposta no orgânico das cenas. Paisagens bem definidas, cidades retratadas com o máximo de verossimilhança. Trânsito intenso de pessoas, demonstrando sempre que o mundo não pára à nossa volta, não cessa diante o nosso drama, o nosso luto. É assim para conceber uma nova criança, uma nova esperança em hospitais cheios, com atendimentos limitados, feridos, acidentados, acompanhantes e pacientes em suas lutas particulares na saúde pública. O marido que sai de casa e não volta, enquanto uma banda marcial corta a rua com seus instrumentos barulhentos. O mundo ao nosso entorno não enxerga os pequenos enxertos de dramas em cada casa, menores ou maiores.

Com posicionamentos escatológicos, o diretor mexicano pontua as cenas do cachorro da família, literalmente cagando e andando para o que acontece em volta. Não contente, Cuarón ainda posiciona diversos cachorros de rua durante os outros cenários. Contraste entre o cachorro com casa e os sem? Pode ser também.

O contraste entre homens e mulheres é um dos mais fáceis de enxergar, pela liberdade com que desfecham suas histórias, abandonando filhos, com o uso das ameaças ou da violência ou sem. As tarefas caseiras, o cuidado das crianças sobra para o colo feminino. Duras realidades em tantas famílias, estruturadas ou não, pelo México, pelo Brasil, pelo restante da América Latina, na outra América ou em outros continentes. Histórias que se repetem.

É super recomendado que se assista ao filme para observar esses e mais detalhes, mas desde já salienta-se que Cuarón cumpre o que se espera de suas grandes obras, quando aresta e fecha os pontos, trabalha o dinamismo social nesses contrastes todos: homens x mulheres; ricos x pobres; cultura opressora x cultura oprimida, levando em consideração a origem indígena das empregadas, em contraste com a família dos patrões.

Também está no filme o contraste da cena no povoado para fora. Os ricos consomem o Ano Novo com músicas estrangeiras, tradições vindas de fora, a presença do idioma inglês. Os pobres, os empregados estão no subterrâneo, no limitado espaço com as músicas nativas mexicanas. O ambiente apertado e tumultuado que que faz com que Cleo derrube a sua bebida na hora de um brinde, ao tomar um encontrão. Quantos cutucões o filme impulsiona! quando seria mais sutil ser acometido por um coice.

Por fim, no que pensei durante a exibição do filme, não posso deixar de salientar a questão da mulher com a gestação. O processo inteiro de gestação, não restritamente ao parto ou ao pós-parto, o cuidado com as crianças. Agora escrevendo percebo como esse "início, meio e fim" se prolonga na vida de uma mãe. O homem insere a semente para o filho e larga fora, abandona sua família. A mulher passa os nove meses com o crescimento do feto até a hora do parto do bebê. Depois disso, como salientado no filme, também está sozinha para cuidar daquele novo indivíduo, sem a recomendada divisão das responsabilidades. Aquele pequeno ser necessita constante cuidado, precisa se alimentar do leite, precisa ser acalmado para dormir, precisa trocar as fraldas, precisa estar o tempo inteiro vigiado para não se afogar no mar da vida.

Penso em tudo que minha mãe passou para me conceber. Essa história veio à tona há pouco tempo e não me preocupo em dividi-la. Meus pais tiveram minha irmã já tarde, passados os 30 anos de cada um. A médica, ou os médicos, não sei, disse para minha mãe que ela não teria mais filhos. Foram pelo menos cinco anos de sexo entre eles sem resultado fértil. Fernanda seria filha única, mas então vim ao mundo. Foi uma surpresa para todos, mas minha irmã ganhou um irmão. Penso na gestação que já seria de risco pela idade avançada de minha mãe, o chamado parto de risco, mas incrivelmente deu tudo certo, dentro do possível. Por conta dessa "espera", dessa "demora", hoje aos meus 20 e poucos anos, tenho meus pais como grupo de risco do novo coronavírus, pois já ultrapassaram os 60.

Vale lembrar que minha mãe havia perdido o primeiro filho durante sua primeira gestação. Isso quando era mais jovem. Eram péssimos indícios, mas as outras duas gravidezes acabaram gerando bebês em partos saudáveis, para mãe e crianças. E aqui estou.

Relembrar de onde viemos de certa forma me encoraja a tentar um pouco mais nessa sofrida vida que tantas vezes penso abandonar. Ser um pouco mais saudável, por ela que saudável me carregou contra todos os riscos, por todos esses meses, por todos esses anos, antes de eu ser concebido e depois. São os nove meses e outros tantos anos. É relembrar para eu ser mais saudável e afastar meus pensamentos das drogas e de outras mortes. Sou grato e me restrinjo e me protejo mais por ela do que por qualquer outro ser, inclusive eu próprio.

A cena final do filme Roma talvez seja a mais famosa da película. A família unida na praia, após um entre tantos salvamentos. A gratidão pelo que se tem, a luta com as ferramentas ao alcance. As diferentes concepções possíveis de família. A importância da empregada Cleo para cada uma daquelas crianças. A importância de cada uma daquelas crianças para a sofrida empregada Cleo. Coisas que mudam ou não mudam naquela família de patroa e empregada. Feminismo não é feminismo sem luta de classes, não é mesmo? Ouço muito por aí e concordo. Luta de classes.

Dessa forma, encerro com reverências novamente ao mexicano Alfonso Cuarón, ícone de produções sentimentais, de entendimento social, de transposição da realidade para seus filmes. Provocador de reflexões e retratador de angústias. E que mais seria a vida, e que mais seria o cinema sem esses elementos?

Gracias a mi mamá

Cena final do filme 'Roma', de Alfonso Cuarón (Divulgação)

7 de julho de 2020

A Senhora da Van e a Pandemia

Acabo de assistir ao filme A Senhora da Van. É um inglês, de 2015, se passa em Londres. Um escritor solitário adquire uma casa, naquele melhor estilo inglês, prédios similares, um ligado ao outro em ruas arborizadas com asfalto para os carros ingleses. Acontece que havia uma senhora moradora de uma van, como uma andarilha. Ela estacionava o veículo pelas proximidades no bairro e se instalava defronte às casas; de tempos em tempos mudava de "endereço", mas sempre morando dentro da van. Uma personagem de mão cheia para o escritor atiçar a sua criatividade, mas, mais do que isso, revelou-lhe adaptações para o seu lado mais humano. Ele que também estava com a mãe em condição idosa e cada vez mais deficitária quanto à saúde. É um filme recomendável, história para reflexões e consentimentos. E é o que aqui tentamos traçar a partir de agora.

Como mencionado, a adaptação cinematográfica da história é de 2015. No presente 2020, a própria Inglaterra foi um dos países mundialmente mais afetados pelo novo coronavírus. São muitos idosos na velha bretanha. Condição essa que talvez tenha alavancado a identificação dos britânicos com a história da senhora Mary, ou Margaret.

Para o Brasil, é interessante analisar o que temos passado com a pandemia global de covid-19. Os maus exemplos parecem proliferados, como os focos virais. Os brasileiros jamais deram exemplo de bons cuidados com seus cidadãos de terceira idade. São dificuldades históricas. Além do mais, cresce nos últimos anos o número de idosos, nos números totais e também percentuais, como é possível observar nos gráficos de pirâmides etárias. É chamada de pirâmide porque as tendências sociais sempre foram apresentar bases largas na medição de faixas etárias. O que isso significa? Significa que há sempre mais jovens do que adultos e consequentemente idosos. Mas isso tem mudado pela Europa, pelo Canadá, pelos Estados Unidos e em outros países.

A tendência mundial é o aumento percentual no número de idosos. Ou seja, a pirâmide perde sua característica piramidal e passa para assemelhar-se a outros polígonos. Talvez um retângulo em previsões mais atuais. Futuramente ela pode até inverter-se. No Brasil, a maioria da população ainda é jovem, mas isso também tem se mostrado um problema na pandemia do coronavírus.

Os jovens brasileiros estão desrespeitando muitas regras. São festas clandestinas, aglomerações, saídas desnecessárias para verem amigos, visitar familiares, compromissos de namoro e até de pessoas recém conhecidas. O péssimo exemplo reflete na alta rotatividade do vírus no Brasil. Ao escrever este texto, já somam-se mais de 66 mil mortes no país em decorrência da covid-19. Se somarmos os casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave, então...

Essa alta taxa de desrespeito pela quarentena, pelo isolamento social, pelo necessário mas pouco infundido lockdownnn, mostra que os brasileiros estão poucos se importando com os idosos, principais afetados pelo novo coronavírus. São os que mais apresentam sintomas, são os que necessitam de leitos, de entubação, de respiradores, de atendimentos médicos urgentes e, nisso tudo, também se tornam as principais vítimas de fatal doença.

Os jovens, por outro lado, em raros casos estão perdendo a vida para a covid-19, mas são os principais vetores. Eles adquirem o vírus e repassam. Repassam até chegar em pessoas gravemente sintomáticas, que lotam os leitos e estão, não raramente nesse período difuso, terminando nos cemitérios em cerimônias pequenas, porque nem a esses momentos de luto o vírus parece querer poupar ou se afeiçoar a suas trágicas vítimas.

É um assunto gravíssimo. Os populares, habituais maus tratos e desrespeitos a idosos adquirem novas conotações com a pandemia global. Como os anciãos e anciãs são as principais vítimas, países que tomam menos cuidados, com maior consequentemente disseminação e mortes, demonstram também o quão relaxados, desprovidos de caráter se mostram seus cidadãos. Profundamente lamentável.

Perde-se na aquiescência dos números o compromisso com as histórias, com o lado humano de quem está nos deixando. É apenas mais uma idosa. São apenas mais dois idosos. Uma mulher de 78 anos, um homem de 83 e outro de 87. Pouco nos importa. Pouco nos choca. Mas são pais e mães, avôs e avós. Eram profissionais, atendentes de padaria, freiras, musicistas, biólogas, escritores, políticos, assistentes sociais, esportistas... uma infinidade de histórias que chocam-se com o luto a rodapé. Números e estatísticas.

Uma emocionante capa do Jornal O Globo, publicada faz dias, foi pelo dia 10 ou 11 de maio. O Brasil ainda estava distante do pico da doença, dos maiores gráficos de contágios e mortes. Mesmo assim, através dessa maneira, prestava-se uma homenagem aos que se foram. Mas a doença maior segue traiçoeira, imparável, insaciável. Já engoliu mais tantas e tantas vidas pelo país. E não há novos editoriais que deem conta. O governo mostra-se genocida pelas medidas que adota, pelas medidas que ignora, pelas mortes que em consequência provoca. Sem ministros da saúde neste crucial momento. Uma calamidade jamais vista na história republicana brasileira.

Funerais já são habitualmente tristes, cerceiam a alma dos que ficam entorno do ente querido que partiu. Nublam os dias, alimentam o farfalhar nostálgico dos ventos contra as folhas das árvores e as páginas da vida. Livros que se fecham para serem abertos apenas por quem prestou atenção nas passageiras histórias, para serem recontadas, reabsorvidas por futuras gerações. E que legado estamos deixando? Cuidamos dos nossos? Ouvimos os nossos? Sentimos os nossos? Fizemos por eles? Essas perguntas podem atormentá-lo ao impassível sereno noturno. Deita-se contigo e ocupa maior parte do travesseiro do que sua cabeça. Pense nisso.

Ao passo de derradeira luta contra a covid-19 e contra outras doenças e contra a própria crueldade e debilidade humana, quantas senhoras da van estamos perdendo. Ou julgando. Ou, todavia, de qualquer forma, estamos perdendo. A cada dia, mesmo vivos, estamos perdendo. Derrotas em looping. Vamos virar um pouco o jogo?
(Filme: A Senhora da Van / Divulgação)

6 de julho de 2020

A era do já era

A era dos apartamentos
Antes de voltar pras casas
A era dos deslocamentos a pé
Antes de voltar pras asas
A era dos contatos virtuais
Antes de voltar pros presenciais
A era dos produtos industriais
Antes de acabar com os naturais

A eraaaaaa antes do já era
A eraaaaaa antes do já era

A era do sedentarismo
Antes de voltar pros exercícios
A era de comer bobagem
Antes de abarcar outros vícios
A era guerrilheira
Antes das prisões, das cadeias
A era das bandeiras
Enquanto ainda há cores
Ideais e amores

A eraaaaaa antes do já era
A eraaaaaa antes do já era

A era das navegações
Antes dos descobrimentos
A era dos descobrimentos
Antes das dizimações
A era dos milagres prometidos
Antes de cobrar os dízimos

A eraaaaaa antes do já era
A eraaaaaa antes do já era

segunda-feira

amanhã recomeço o rebuliço
da segunda-feira
amanhã tenho certeza
vai ser igual a segunda passada

mas se eu mudar
pode ser que algo mude
mas se eu mudar
o sistema segue a mil
o sistema segue amiúde

se eu não mudar
certeza que não vai mudar nada
vai ser igual
igual a semana passada

hoje recomeçou o rebuliço
da segunda-feira
tive ideias mas a trincheira do dia a dia
feriu - (claro que feriria)
minha fantasia - (bem que você advertiu)

pode ser que eu ainda consiga
vou deixar como saída de emergência
da ambulância, da urgência, da ânsia
de recomeçar
da ambulância, da urgência, da ânsia
de recomeçar

4 de julho de 2020

Filas de Banheiro

Sempre gostei de ser descritivo. Gosto de descrever. Gosto de observar. Um bar e um copo. Companhia é dispensável. Comigo mesmo, com ninguém na frente, posso observar. Posso percorrer os olhos pelo espaço, câmera em movimento travelling. Posso de repente pensar onde agir, se é que é necessário agir. Às vezes é só observar mesmo. Para descrever depois.

Gosto de descrever o que faço também. Fragmentos autobiográficos baseados em minha vivência, rotina, atividades, pensamentos, discursos, filosofias. Sinto que se soubesse realizar mais tarefas, elas estariam mais presentes em meus textos, sim, porque adoro descrever o que seja. Descrever processos culinários, dificuldade de estacionar, viagens em janelas de ônibus, passeios ciclísticos, processos de trocar fraldas, de escolher a roupa para uma cerimônia, de visitar meus pais, de visitar meus amigos, de comprar remédios, de chegar a eventos, como estádios ou teatros ou concertos ao ar livre. Levar o celular para o conserto, deixar a filha na escola, buscar a filha na escola, procurar uma estação de rádio. Ser criticado o quão brega é procurar estações de rádio, intermináveis chiadeiras antes de uma sintonização certeira. Milagre da propagação das ondas.

Filas de banheiro. Talvez uma das experiências mais comuns e imprevisíveis sejam as filas de banheiro em eventos, sobretudo festas. Imagine o open bar. A cerveja entrando, copos e copos, diurética e abrindo passagem entre os órgãos, filtrada e pronta para abandonar o organismo. Ela quer sair e tem pessoas, às vezes dezenas delas, à sua frente. Haja força de vontade, aguente, guerreiro. O banheiro masculino, a impaciência, a torcida pelo companheiro que passos dianteiros rumo à liberdade, a aproximação com a privacidade de sua descarga.

O sonho com o mictório, a água corrente, a privacidade parcialmente violada, olhares espichados, olhares recolhidos, instrumentos espichados, instrumentos recolhidos, funcionamento fluente, funcionamento contido. Psicológico. Pressão. Presenças demais. Barulho demais. Desconcentração. Foco em se livrar da missão o quanto antes, antes de ouvir um "como é que é, camarada?!".

É um ambiente de possíveis amizades. De possíveis brigas. Amistosamente pode-se iniciar qualquer conversa com "bah, mas que demora, né" e receber a confirmação dos companheiros em volta. Soldados da mesma trincheira. Cada um lutando contra seu próprio organismo. Algum mais desesperado se dobrando, não vai aguentar o sufoco da contenção urinária. Força, amigão. Já é amigão, já estamos juntos nessa, vamos superar. Voltarmos para elas. Tu voltares para ela. Eu voltar para a minha. Quando há. Se não há, depois eu busco uma bebida, pra quando quiseres repor. Tu vai sair dessa, cara, já passou por piores. Te lembras? Não te lembras? É porque tudo é o agora e agora tu precisa expelir essa urina. Pelo amor de Deus, homem necessitado, homem ferido, ele precisa passar. PAM PAM PAM abre essa porta, cara, ele não vai conseguir.

Assim se arrumam improváveis heróis, assim surgem vilões. "Foi mal aí, tava apertado, achei que não iria acabar." Ah, saia logo. Quando não deixam presentes piores. Quando as manifestações gástricas não permanecem mesmo após a evacuação da pessoa. Quando não é necessário subir a gola da camiseta para conseguir ampliar a sobrevivência. Nem sempre a chegada ao vaso ou ao mictório é o fim da missão, como percebem.

Importante também ressaltar a área de respingo. Tempos, tempos de distanciamento social controlado. Os mictórios já previam isso. Pela educação, pela higiene, pela segurança. Respeitem a área do respingo. É mais essencial do que a distância regulamentada dos caixas eletrônicos. É um código de ética da comunidade masculina. Não há faixa amarela que restrinja o avanço, mas convenhamos, por favor, faça o favor. Além do mais, Arnaldo Cezar Coelho sabe o quão clarividente é a regra de que, se há mictórios vagos, use com a distância de pelo menos um do sujeito que está utilizando simultaneamente. Não vá querer fazer vizinhos desnecessariamente. Respeitem a distância propícia entre suas calças jeans, seus cintos de couro. Seus sapatos posicionados em horários diferentes.

As filas de banheiro. A política, o esporte, a hora certa, o cálculo do "vai dar", "não vai dar", "pera, vai ter que dar" e tudo isso, o turbilhão dos pensamentos sobrepostos. As pichações nas paredes, nos ladrilhos, nas madeiras desde a fila. Nomes, tags, jogos da velha, xingamentos, telefones, whatsapp, quem tem tempo para isso? Quero apenas usar o banheiro. Quero ver a menor quantidade de nucas possível na minha frente, quero a fila indiana dos clipes de Pink Floyd. Quero que maquinalmente todos consigam para que eu possa conseguir. Falso altruísmo, quero agora apenas a minha liberdade.

Quero liberar o disparo, quero acertar o alvo, acertar a cesta pela inibição da pressão que se esvai. Quero o regozijo de concluída etapa, quero procurar novos nomes nas paredes quando já estiver liberto do que me incomodava. Quero desejar aos demais a mais sincera boa sorte, quero voltar para onde a música é mais alta, para onde as companhias possam me ouvir, ou não me ouvir, tamanha a intensidade em decibéis musicais. Quero repovoar meu copo.

Quero torcer para que a pia esteja funcionando e nenhum neandertal tenha causado prejuízo à casa. Quero testar o sabonete líquido, quero o sucesso no puxão do papel-toalha após o enxague, quero o bom senso de quem providenciou vasto e necessário cesto de lixo para as mais diversas emergências.

Quero saudar os companheiros vitoriosos do campo de batalha, na retomada do corredor de acesso. Triunfante, ainda mais após a ajeitada no rosto, no cabelo, no que o espelho pediu ao final do encontro. Em banheiros que já visualizaram tantos acontecimentos sexuais ou manicômicos, ilegais e criminosos, ou simplesmente aliviadores.

Que se aperte, que cruze as pernas, que se dobre de desespero urinário quem não tenha história para contar sobre as filas às portas dos banheiros. Mais do que um rogo de praga é um desejo para contribuíres com esse acúmulo de histórias possíveis. Talvez eu recolha amostras de cada um contribuinte, anônimo ou não. Pseudônimo ou não. Emergências, diarreias, reencontro com conhecidos, descoberta do amor de sua vida. Alguma coisa deve ter acontecido em filas de inescrupulosos banheiros lotados. Compartilhe sua experiência.

Banheiros Públicos – Brasília Shopping – Arquiteto Daltônico
Shopping de Brasília. Bonito, né? 

3 de julho de 2020

Jamais nos Jornais

A maioria dos nomes
Jamais nos jornais

Ossos do ofício
No meu vício por remorsos

Pode transar?

Pode entrar de boné?
Pode transar de meia?
Pode transar inteira?
Pode transar de fone?
Pode transar com fome?
Pode transar com homem?
Pode transar sem nome?

Penso no quarto dela
E no quarto de despejo de Carolina Maria de Jesus
Penso no lucro deles
E nos nossos prejus

Por onde anda Patti Smith?

Meu pai começou a mexer com as madeiras em uma minúscula área de poucos metros quadrados, menor e mais baixa do que qualquer quarto aceitável, tanto é que não caberia uma cama ali. Mas maior do que uma casa de cachorro. A não ser que sejam vários os cachorros inquilinos. Todavia, era menor do que uma baia para um cavalo também, para entenderem o tamanho do empreendimento. Acontece que ele arrumava ou supunha arrumar o que fazer por ali. E tirava pedaços distorcidos de madeira, diferentes tamanhos, os cortava, serrava, lixava, pregava e sempre havia algo para emparelhar e ajeitar na construçãozinha. Assim ele passava uma tarde de arrancada de julho de 2020. Sua maneira hiperativa me despertou a escrever algo. Ouço-o trabalhando ao fundo. Juro que queria uma destreza maior com ferramentas, mas ainda almejo mais os dotes culinários.

O cenário de leve perturbação da paz é acompanhado pelo limpador de piscinas da casa vizinha. Os bem abastados moradores ao lado contam com esse serviço de uma maneira que ainda não calculei. Talvez quinzenalmente. Acontece que o trabalhador aparece e tomo conhecimento de todos os assuntos que ele adentra-se a discursar. Fala da formação em escola técnica, trunfos do PT ignorados por quem ignora o PT, fala de exército, fala de carros, fala sobre peças eletrônicas e motorizadas, fala sobre oportunidades de emprego em Santa Catarina. Deve estar fomentado a falar sobre mulheres com o vizinho, mas a esposa do proprietário está na casa e eles poupam essa oratória memorativa e imaginativa que tanto preenche vazios em bares. Lembranças e tristezas que fariam algum se jogar na piscina a método de afogamento, certamente.

Ademais, estou lendo e com alguma inquietação a respeito de Patti Smith, até o momento a maior descoberta do cenário punk das Nova York e Los Angeles estadunidenses. Patti é complexa, idolatra pessoas de diferentes segmentos e, ao que parece, tentou de tudo um pouco em sua vida. Seria professora, mãe, empregada fabril, passou para as artes encantada pela poesia do francês Rimbaud, encontrou as pinturas, a escrita em verso e em prosa e finalmente o complemento de ser uma das mais famosas rockstar da história. Produções independentes, versatilidade, encantamentos. Ela tinha quês a mais do que aquelas esdrúxulas figuras todas, regadas a drogas e sexo, pessoas desprovidas de ideais e consequências. Longe de querer intrometer-me em moralidades, reconhecendo inclusive a importância exageradora em contradição às morais lineares dos bons cortejados costumes. Mas carrego uma decepção a partir do entendimento de que a maioria das ações e integrações do movimento punk era desprovida de qualquer ato conscientemente político. Conscientemente coletivo. Conscientemente social. Eram uns babacas que abasteciam seus próprios umbigos e mandavam as mais diversas drogas para dentro. Mas nesse cenário de preenchimento freak, Patti Smith me interessou.

Preparo algum refrão sobre a rasidade daqueles norte-americanos:

Eu queria ser admirado por Patti Smith
Acho que não há nada mais chique
Fodam-se os outros beatniks
Eu queria ser admirado por Patti Smith

Caberia em um rock gaúcho. Em uma tarde de inverno, a temperatura preguiçosa a não ultrapassar a barreira dos 12 graus, passam-se muitas coisas. O sol colide em meu corpo e ilumina metade de minha face enquanto escrevo essas linhas. Deixo uma fresta da janela do quarto aberta, porque, apesar do frio, estou arejando contra a formação dos fungos: o mofo nas paredes. Observo a lista de filmes de Alfred Hitchcok ao meu lado. Cumpri menos da metade, mas pretendo avançar nos próximos dias. Me incomoda seu machismo, me encanta sua percepção de composição das cenas e cumprimento elaborado dos roteiros.

Meu celular está com completa distorção do funcionamento da bateria. Se apaga fácil. Viciada. Como um junkie que injeta heroína. O futebol não sabe se volta em meio à pandemia. Ganancioso. Minha gata dorme em sua caixinha de papelão forrada na lavanderia. Desconhece a presença enaltecedora do sol neste horário, que lhe faria bem ao pelo e para meus olhos ao vê-la, ressaltando os tons de laranja. Preguiçosa. Em seguida, escrevo mais uma página esportiva para o segundo jornal da cidade e da região. Repetição.

Será que o barulho da furadeira me lembra o dentista ou o dentista me lembra o barulho da furadeira? Entre nuvens de gafanhotos e ciclone pela região Sul do Brasil, transitamos de junho para julho. Os gafanhotos vieram do Paraguai, contornaram a Argentina, mas nem eles quiseram entrar em nosso país. Corretos que estão. Ultrapassamos as 60 mil mortes por covid-19 nesse ano de abstenção da felicidade para o povo brasileiro. Quem ignora é tão maldito quanto o vírus. Descubro que Patti Smith ainda está viva, aos 73 anos.
Arquivos PATTI SMITH - LC

1 de julho de 2020

A falha

A luz falha oscilante
Imagina como era quando não existia o fogo
Ou quando só existia o fogo
E imagina pra quanta gente só existe o fogo
Ou a lâmpada - sem cabos de fibra ótima
TV a cabo e whats poles ou internet
Imagina ter tudo isso sem privacidade
Sem o esconderijo objetivo de descansar
A humanidade falha ao não hesitar
E falha ao hesitar porque o pensamento toma
Forma de cárcere, touros nas arenas de Pamplona
Tiques e tacas, Messi, Xaviniesta, Barcelona
Ruínas e sinas, King sob a redoma
Paracetamol - Paraguai - Indústrias do Coma
Do coma induzido - da Eutanásia - Da Eurásia
Do sobre-aviso

A luz falha em um ponto equidistante
Do luar ao lugar nenhum

Seria possível?

Sonhei passar uma vida contigo
Foi um bom sonho
Um sonho amigo
Aí eu percebi que não seria possível
Não sou a teu nível

Sonhei passar uns 10 anos contigo
Tu minha esposa
Eu teu marido
Dividindo as tarefas
E alguns compromissos
Envelhecendo
Alguns anos noviços
Aí eu percebi que não seria possível
Não sou a teu nível

Sonhei passar um ano inteiro contigo
Um ano de contrato
De atos roliços
Dividindo o teto
O tato e os sentidos
Procurando motivo
Pra seguir em contato
Aí eu percebi que não seria possível
Não sou a teu nível

Sonhei passar um mês contigo
Dos 12 do ano seria
O mês mais colorido
O teto ficaria firme
Não seria de vidro
O boxe do chuveiro mais umidecido
Roupas escovas de dente
Vai ser divertido
Aí eu percebi que não seria possível
Não sou a teu nível

Sonhei passar um fim de semana contigo
Celular desligado, a gente entretido
Só sua cama me chama
Me chama de abrigo
Você afana meu coração
Me devolve domingo
(Por obrigação)

Por uma semana no Rio de Janeiro

Você trabalha o ano inteiro
Por uma semana no Rio de Janeiro
Você trabalha o ano inteiro
Por uma semana no Rio de Janeiro

Hotel bem perto do mar
E cadeira de praia para alugar
Coisas na areia para alguém cuidar
E encontro às águas para se banhar

Um dia cinza pode ser o fim
Mas não para mim, mas não para mim
Eu trabalhei o ano inteiro
Por uma semana no Rio de Janeiro

Brisa bem boa para velejar
As folhas das palmeiras a sacolejar
Da minha sacola a chave sumiu
Perguntei na portaria e ninguém viu

Você trabalha o ano inteiro
Por uma semana no Rio de Janeiro
Você trabalha o ano inteiro
Por uma semana no Rio de Janeiro

(versão Forró)

Macaco de Circo

Me sinto um macaco de circo
No âmbito da sociedade
Sempre pronto a um mico
Não importa a idade

Me sinto um macaco de circo
Invicto se enjaulado
Sempre pronto a um mico
Do outro lado

Me sinto um macaco de circo
No mico da sobriedade
E na ebriedade um mico
Em modo arcade

Me sinto um macaco artístico
Cíclico em sentimentos ignorados
Enquanto meu corpo sofrendo
Em números mágicos

Me sinto um macaco de circo
Em curto-circuito

Prisoner

I'm the prisoner
You are the law
I'm alone
You are the only one

I'm the maker
of many dreams
I'm the prisoner
in my own mind

I look at the sky
I see your face
I remember your name
In a lot of musics

I try in english
To satisfy my heart
I keep dreaming
You are my sky

Eu fico sozinho
Teu beijo me arranha
Um estranho no ninho
Ninguém estranha

I'm the prisoner
of my heart
I'm the prisoner
free in my art