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07/12/2021

Only Lonely

Eu não sinto fome
De viver
Eu estou sozinho
Num terreno nocivo

E não há mulher
E não há homem
Que torne essa vida
Menos alone

I'm a Lonely Boy
I'm a Lonely Boy
I'm a Lonely Boy
Que se auto-destrói 

Na vida adulta
Nas rimas do Supla
Na terra do nunca
No terreno fértil
Eu me sinto sozinho
Nessa espelunca
Eu me sinto um réptil
Dentro de uma gruta

Eu não sinto fome
- De viver -
Eu estou sozinho
Num terreno nocivo

Y no hay otra vida
Ya no hay canciones
Songs that turn on the lights
Por eses rincones

I'm a Lonely Boy
I'm a Lonely Boy
I'm a Lonely Boy
Que se auto-destrói 

Nos improvisos
Nos sobreavisos
Nas placas de perigo
Nos conselhos amigos

I'm a Lonely Boy
I'm a Lonely Boy
I'm a Lonely Boy
Que se auto-destrói 

16/11/2021

Esgotos de Varsóvia

Esgotos poloneses

Por onde ocorre a Segunda Guerra

Por entre as fezes

Por muitos meses


Esgotos de Varsóvia

Dias e noites soterrados

Não sei se faz sol

Ou talvez chova

Preso nos esgotos

De Varsóvia


Esgotos e todo lodo

E tão logo nada se resolve

Falta oxigênio

No meio dos túneis

E ninguém foge

Nem fica imune


Alemães na caça

De tudo que é diferente

De sua 'raça'

Essa desgraça

Nos túneis de Varsóvia

E tudo se desova

No esgoto

Um a um

Outro a outro


Perigo nos túneis da Polônia

Sem ajuda e com a fome

Tombam homens

No reduto dos ratos

Lado a lado

Acossados


A guerra se estende para o leste

Como a peste

Como a fome

A Polônia ocupada

Em sobreviver

Contra as granadas

Os céus e os esgotos

Contra o todo

De uma guerra





06/03/2021

Velas que não se apagam

Madrugada em que sonhamos com os mortos. Ou com os vivos conhecendo seus futuros. Foi o curioso caso que aconteceu com minha irmã.

Um céu cinzento, o alto mar, as velas embandeiras, bem tecidas, perigosamente estiradas contra o resfolegar do vento. O barco em deslocamento sobre o sofregar do ir e vir das ondas. O olhar dianteiro tentando antecipar as desventuras que nos apareceriam. Minha irmã toma a frente apoiando sua cintura contra a proa da embarcação. Estende o braço adiante como que para indicar a batida frase de terra à vista.

A ilha é um isolamento de tal modo que o barco não tem muito onde acostar-se. Começa a brecar nos inevitáveis bancos de areia, defesa impenetrável. Os solavancos nos preparam para a descida. Minha irmã é a protagonista, embora as palavras aqui sejam narradas por mim. Contra a vegetação altiva de coqueiros e outras árvores, os pássaros voam ora em círculos sobre nossas cabeças, ora de maneira desordenada e atônitos por tão bela vista, ao mesmo tempo temos que sincronizar nossas energias na real missão e também torcer para que não nos acertem com seus dejetos.

Na ausência de habitações na encosta, ao menos às nossas vistas, rumamos direto para um objetivo fúnebre: o cemitério local, que comporta, já visualizados ao longe, mais lápides do que provavelmente haja habitantes na ilha. A formação insular, também observamos, não tem embarcações companheiras em nosso retiro. Recordo que quando passava pelo cemitério da cidade, próximo a meu clube e local de trabalho, eu notava sempre a lista de velórios e enterros do dia, constatando os dias de mais ou de menos infortúnios na vida de nossos concidadãos. Se a missão até a distante ilha era conhecer o vasto cemitério, tivemos uma distinta exclusividade em relação às demais pessoas. Onde estariam os demais? Por que encarregavam os mortos a tão distante localidade? As perguntas surgiam aos montes enquanto as formas humanas eram limitadas a nossos passos que constituíam as mais novas pegadas naquele solo arenoso recém aparado pelas ondas marítimas.

Minha irmã guiava a breve caravana, constituída mais por mim e por poucos passageiros. Caminhamos em sentido íngreme para subir a encosta rochosa que levaria até ao cemitério. De uma coisa não havia sombra de dúvida: a pousada definitiva dos mortos contava com uma vista privilegiada que animava a nós, ainda vivos, em uma afanada instantânea do fôlego. Minha irmã estabeleceu contato com uma local que agora terminava o trajeto, já tecendo a voz baixa, exclusiva para nossa líder, sobre o lugar em que estávamos conhecendo. Provavelmente minha irmã passaria as informações para os demais tão logo pudesse conferir-lhe a oportunidade de transmitir.

Seguia a procissão de passos certeiros, agora sobre o chão rochoso, não mais de areia como no desembarque e primeiras centenas de metros. O silêncio combinava com a garoa que ora nos pingava a roupa já transpirada, ora vacilava em cair. O abafamento lembrava a alternância do clima da cidade em que crescemos. Nem o vento litoral dava conta de livrar-nos do peso que já era parte de nossas mentes. A protuberância do cemitério era impressionante. Tentei observar o semblante dos acompanhantes e todos eram inexpressivos, como se aceites de tal destino definitivo. Me perguntei se eu também estaria em estada definida ou teria o poder ou qualquer chance de apelar para a persuasão diante daquele juízo final.

Em uma casa de guarita ao portão de entrada, a guia espiritual curvou-se para dentro da casinha não sem antes gesticular a todos que esperassem pelo seu regresso para prosseguirmos. Um a um, ela se aproximava e cedia uma vela praticamente intacta. Poderíamos considerá-las recém acesas. Ela tinha determinante destreza e habilidade para se encarregar da tarefa. Com agilidade, ia e voltava com os candelabros a servir-nos. Pensei prontamente: repetição e competência. Mais repetição fabril do que qualquer habilidade sobrehumana.

Estremeci quando percebi chegar minha vez de receber o presente. Tentei agradecer, mas minha voz estava entrecortada. Eu seguia a observar a frente da procissão a uma certa distância, pois logo percebi que apenas duas pessoas, provavelmente um casal, estava atrás de mim na breve fila. A mulher com um aspecto cortez de freira novamente posicionou-se diante de todos para, com um gesticular tímido, como quase tudo que fazia, indicar o prosseguimento da jornada, já adentrando aos portões do cemitério.

Percorreu-me a impressão que essa quietude seria apenas para o caminho de ida e não haveria volta. Se houvesse, precisaria ser em uma tremenda batalha. Todos permaneciam muito calados, sem emitir sons, sequer grunhidos e com os rostos perfeitamente intactos quanto aos efeitos de tão lúgubre e macabra aventura. A quietude era cortante, o espaço para elaboração dos pensamentos quase formavam eco de tão alto que meu cérebro raciocinava aquele impressionismo todo.

Tentei ler as lápides, mas meus olhos desviavam de uns túmulos para os outros, os globos oculares pareciam que ardiam, parecia que as letras me escapuliam, me fugia a interpretação de nosso simples idioma. Em outras, a sopa de letrinhas se embaçava, minha visão piorava e eu não sabia como contornar esse problema incipiente e a curiosidade mórbida de meus pensamentos. Fui desistindo dessa ineficaz tentativa e voltei a atenção para meus trôpegos passos, para evitar maiores acidentes com a vela em mãos. Cheguei a segurar-me o riso porque, dentro de um cemitério vazio de almas vivas, as consequências de um incêndio seriam mínimas. Mas tão logo me apresentou essa ideia, formei o raciocínio de que os pingos da garoa deveriam dar conta de apagar nossas velas rapidamente. Não era o que acontecia. As chamas permaneciam sua dança, seu acovardado rebolar de maneira íntegra. Era impossível. Os pingos até apertavam, eram um bombardeio que não deixariam chances para o fogo sobreviver sobre essas condições. Insano.

E as pedras não pareciam ser afetadas pela umidade crescente. O que estava acontecendo? O que parecia somente um cemitério de encosta, ao sopé de uma montanha, um morro ainda maior, mas acima dos efeitos da ressaca marítima, agora era um caminho sem fim. De repente, nossa procissão parou e a mulher voltou a falar baixo, de maneira que o fim da fila, onde eu estava, não conseguia ouvir. Novamente circundei minha visão para os demais e, para minha surpresa, todos pareciam concordar, com um leve acenar afirmativo de cabeça. O único olhar atônito e a única testa franzida deveriam me pertencer naquele momento. Minha irmã cedeu passagem e não foi a primeira a receber uma espécie de benção, uma oração ao pé do ouvido. A mulher passava instruções precisas e as pessoas, sem pestanejar, apenas assentindo, prosseguiam suas diretrizes cemitério adiante - ainda havia uma eternidade de lápides até onde a vista alcançava. O sopé da montanha já ganhava proporções de ser a própria montanha. Provavelmente subimos de uma maneira tão menos inclinada após a primeira formação rochosa que agora nem percebíamos a intermitente subida que se desenhava. O mar se arremessava contra as areias muito abaixo, visível, mas não mais audível, pelo incrível que fosse.

Minha irmã foi a terceira, após ceder as primeiras vagas, embora não demonstrasse nervosismo, nada de mãos suadas, como eu podia observar, uma de suas marcas registradas, o brilho do suor não lhe brotava das extremidades. O rosto tão impassível quanto as faces dos demais. Era tudo inacreditável. Após receber o palavrear da discursante guia, ela pediu uma licença com um movimento de cabeça semelhante aos cumprimentos do povo oriental asiático e abriu passos em minha direção. Contou-me.

- Chegou minha vez. Fico por aqui. Queria me despedir.

- Mas o que está dizendo?!

- Você não percebeu?

- Eu... - Me sumiu a voz outra vez, como quando fui agradecer à espécie de freira.

- Não estaremos mais juntos. Eu vinha te avisando nos últimos dias, não vinha?

Permaneci emudecido.

- Agora preciso ir, estão me esperando.

Ela girou para retornar sua posição à frente da fileira, mas puxei-a rapidamente pelo braço. Instruí minha força como pude, mas ela reagiu de forma surpreendente, demonstrando precisão para escapar da investida.

- Preciso ir. - Reiterou.

Percebi que minha luta era absolutamente solitária. Enquanto tentava agarrá-la de volta para sairmos daquela insanidade, ela, além de disposta a obedecer seja lá o que lhe disseram, me vi envolto dos demais pares de braço que agora tentavam me conter, por, obviamente, estar atrapalhando o objetivo daquela derradeira jornada. Me senti completamente intruso, como já parecia desde os rumos do barco e do desembarque nas areias, mas agora com certezas.

Enquanto me esquivava dos braços peludos, magros, gordos, flácidos, de unhas vermelhas, sem esmalte, roídas ou escuras mãos trabalhadoras daquele grupo heterogêneo, levantei a vista ainda para deparar-me com o olhar fulminante da guardiã da casa dos mortos. Não menos horripilante - pelo contrário - foi perceber que da terra sulcada erguiam-se novos pares de braço. Primeiro um. Um direito, o esquerdo. Um esquerdo, o direito. E cabeças desfiguradas com o topo do couro cabeludo incompleto, com o crânio à vista, com um olho sim, outro não, com a falta da mandíbula, com os ombros deslocados, com relógios de pulso sobre ossos e não mais músculos e pele. Todo tipo de aparência daqueles porteiros se metiam a nosso encontro.

Cambaleei alguns passos, praticamente caí de costas, observando aquela cena inacreditável, aqueles olhares dos humanos que permaneciam aceitadores e inexpressivos, minha irmã que não batalhou comigo, mas ficou a assistir aquele inevitável desfecho. Os mortos, a meu nível estive próximo de tocar completamente o solo, esses de aspecto mais sedento, mas talvez fosse apenas a força de sua decomposição contra meu olhar aturdido.

Corri praticamente em linha reta naquele mar de túmulos que havíamos transpassado e eu não os conseguia ler no momento anterior. Novos grupos de cadáveres lutavam para alcançar meus passos cada vez mais ligeiros rumo a uma tentativa de libertação. Quando avistei a guarita e os portões ainda abertos, percebi a iminente oportunidade de fuga. A corrida me custava um esforço danado sobre as pernas, um suador contínuo e o abafamento da respiração naquele tempo absolutamente cinzento. Parei quase defronte à guarita de onde a mulher sacara as velas. Percebi dois funcionários de rosto em começo de estado de putrefação. As mãos do rosto não só não estavam coradas, como sediam rugas, afundadas, para dentro, uma pele que facilmente seria desmanchada até com uma colher.

- Você?! - A sua já está acesa. - Disse, apontando para uma vela. Outras tantas estavam sendo acendidas aos fundos, em uma peça como uma capela ou, no mínimo, gruta. Novamente não pude fazer melhor julgamento pois a visão estava turva.

Segui correndo, aproveitando aqueles últimos segundos antes de aparecerem novos "funcionários" para cerrarem os portões. Ainda pensei em minha irmã por lapsos de segundo, mas percebendo que não havia como salvá-la e talvez até minha primogênita tentativa seria rechaçada. A encosta abaixo, agora parecia bem mais alta, corria praticamente como se estivesse a saltar degraus de uma imensa escadaria. Tropecei, virei cambalhota, ralei os joelhos e cotovelos, mas não me importava com a dor, desde que a continuasse a senti-la. O que não queria era cair no ostracismo da dor nenhuma, ou o que fosse acontecer com os outros dos portões para lá. Alguns já cambaleavam a me seguir, mas tive a suposição de que não poderiam romper aquelas barreiras imaginárias, desse mundo completamente quimérico e ilusório.

Procurei pelo barco e, cada vez mais desesperado, não o encontrava. Apenas areia e águas. Pensei em me arremessar na água, me livrando das calças para maior agilidade sobre as águas. De repente, senti um toque no ombro. Parei. Congelei. Senti o coração prestar um solavanco como se quisesse romper qualquer barreira do pescoço. Pensei no lapso: "Agora que vou parar lá dentro, com vela, com tudo". No outro segundo, estava minha irmã a me encarar sem entender.

- Por que está tirando as calças?

- O quê?!

Me deparei com um píer de pesca. Algumas pessoas me olhando. Uma criança de uns cinco anos me apontando o dedo. Sua mãe ou tia a repreendendo, ao mesmo tempo que segurava o riso.

- Vista isso aí...

Subi as calças, conforme a ordem de minha irmã. Fechei a braguilha com os dedos nervosos, demorando segundos que jamais havia me custado.

- Não se preocupe - ela concluiu. - Você escapou. Dessa vez.



19/12/2020

Crônica insaciada

Acabo de ler Dostoievski apresentar sua argumentação em Notas do Subsolo sobre a vontade humana se sobrepor aos padrões racionais. A vontade, o desejo daquilo que ainda não se tem, daquilo que se quer, isso supera as leis racionais da busca pelo bem-estar, pela aparente tranquilidade. Há sempre algo em nós que nos coloca em movimento, caso contrário é a morte. Não há dúvida. Ele compara a conta de dois+dois serem quatro como uma matemática, aritmética racional, mas que independe de nossas vontades. A lógica, as leis de sustentação, o cálculo de uma viga de 10 metros (obrigado, Vitória Moraes) podem estar corretos, mas independem do nosso desejo para estarem ou não. São coisas que podem ser tabeladas, podem ser definidas por fórmulas e cálculos repetitivos. De uma vez que se atinjam os resultados nas tabelas de senos, cossenos e tangentes, nada mais pode ser extraído dali.

Não venha ao caso a beleza que a arquitetura pode proporcionar e amplificar a gama de significados. Não é isso. É apenas a superação do modelo matemático para as questões vigentes do homem. Muitas vezes podem ser desenvolvidas associações entre um campo e outro, do subjetivo para o matemático, mas a lógica não responderá tudo, porque o homem quer se esquivar das questões certeiras e esgueirar-se pelo parapeito das incertezas. O ser humano procura os caminhos sinuosos para tentar quitar as dívidas com seu espírito aventureiro, descobridor dos sete mares.

Iria apenas salientar a questão que o escritor russo Dostoievski aponta que as formigas são operárias, são utilitárias, mas saem do ponto de partida de construir e sustentar um formigueiro e, séculos se passem, ainda estarão lutando pelo mesmo formigueiro. É a fórmula, é a matemática desses seres, cujos indivíduos podem ser atingidos por predadores, sucumbir pela chuva, pelos raios, por inseticidas da ação humana, mas a prole continuará de pé dia após dia lutando pelo formigueiro, por esse todo que ele representa. Já o ser humano, através de sua consciência, estará na luta por questões subjetivas, por vontades que muitas vezes independem do senso racional, se dissipam da ideia de bem-estar, questões que se tornam contrárias às vantagens que ele obteria ficando quieto, não indo à luta. Em resumo, a humanidade está fadada a seus indivíduos buscarem o algo a mais.

Esses dias estive pensando em uma metáfora de filosofia africana (de localização imprecisa no continente, me perdoem) que apareceu em filme sul-coreano. As duas fomes, a básica, por alimentação, pelas necessidades fisiológicas e a grande fome, a busca incessante do conhecimento, das descobertas, das experiências próprias, daquilo que não podemos absorver também pura e simplesmente nos livros, nos catálogos de viagem, nos atlas, nas telas do cinema ou do celular. A busca pelo prazer das incertezas, pelo prazer das conquistas e - apoiando-se novamente em Dostoievski - conquistas que nem sempre significam pelo que são, mas significam pelo fato de as atingirmos, pelo senso de conquistador, pelo sentimento de dever cumprido. Tão logo estaremos com a posse em mãos e nosso âmago sentirá novamente a grande fome, nos pondo novamente em alto mar para novas descobertas. São desejos intrínsecos à humanidade, em cada indivíduo. É bem verdade que o sistema, a sociedade oprimem à população para lançarem-se 24 horas, ou o maior tempo possível diário, para saciar somente a pequena fome, mas que grande fome proporcionalmente pode surgir conforme avançamos em outros terrenos. A grande fome, esta que é insaciável.

E penso em minha gata, a Melissa, deitada em sua cadeira, dorme várias horas por dia, sabe-se lá com o que e se é que sonha, mas vive pela alimentação e um pouco de entretenimento, que ela busca através da caça ou de passeios noturnos pelo jardim, ou como fazia em nossa outra casa pelos fundos do bairro. Esta é a Melissa, essas anteriormente apresentadas eram, são e serão as formigas, serão assim as outras Melissas e os gatinhos do terreno baldio aqui logo adiante, mas eu, mas meu amigo Alan Matheus, mas meus outros camaradas, que há de sermos? De querermos? De lutarmos além das questões racionais mais atadas e obedientes. Seremos insaciados por gerações.

29/03/2019

Estou vivendo ou

Será que estou vivendo ou apenas recarregando o celular todas as noites? Será que estou vivendo ou apenas dando os últimos grãos de ração pra Melissa antes de chavear as portas dos fundos de casa? Será que estou vivendo ou apenas roubando 1,6 segundo do motorista ao mostrar minha carteira estudantil do transporte de apoio da universidade, para estar apto a embarcar?

Será que estou vivendo ou apenas reaquecendo o almoço pra combinar com algo pra janta? Será que estou vivendo ou apenas trocando as músicas do celular de mês em mês pra caminhar as mesmas ruas?

Será que estou vivendo ou apenas contabilizando quanto de internet tenho e quanto mês falta? Será que estou vivendo ou apenas observando panoramicamente a quantidade de maluco que nos cerca e não se pergunta se está vivendo ou apenas...

Dois litros do mesmo suco cheio de corante pra consumir em até 3 dias e ninguém me acompanha e se eu tomar tudo deve até ser ruim pra saúde e se não tomar tudo, vai fora.
Típico dilema da vida entre se ferrar de um jeito ou de outro.

Será que estou vivendo ou apenas produzindo lixo? Separando os reciclados, ao menos. Será que estou vivendo ou ocupando lugar na fila, na poltrona ou em pé no corredor do ônibus? Será que estou vivendo ou só reparando nas pichações dos banheiros e das paredes externas dos prédios? Mas será que eu estou vivendo ou apenas lendo autores pra dizer que li, pra não lembrar mais do que um resumo bem detalhado possa trazer. Horas e horas compenetrado em leitura para o quê?

Será que estou vivendo ou somando horas em jogos online? Como me disse, um companheiro de curso em uma das voltas para casa, em que, criando coragem no assunto, revelou uma somatória de horas para cada vídeo game diferente que ele pratica no mundo virtual. Quantas horas frente à tela, ganhando ou perdendo? Ganhando ou perdendo no jogo e no tempo, na experiência, no estresse ou desestresse? Quanto vale tudo isso?

Será que estou vivendo ou somente somando decepções diariamente? Será que estou vivendo ou apenas desistindo antes de entrar nas filas? Será que estou vivendo ou apenas repetindo a pronúncia nas aulas de língua estrangeira? Será que estou vivendo ou apenas reparando nos rostos quando as nucas que estão à minha frente se cambiam defronte ou em ângulos quase de frente a mim? Será que estou vivendo ou virando os olhos quando enxergaria vida neles?

Será que estou vivendo ou apenas contando as moedas de xerox? Contando as moedas no raro tempo que me sobra a degustar a semanal cerveja? Contando que alguma vaga de emprego me surja para ser efetivado. Vivendo ou bicando de bico em bico para arrumar mais uns trocos para trocar por mais almoços-jantas, xerox e cerveja.

Será que estou vivendo ou apenas me preocupando com os gatos de rua, que, na minha visão nada empírica, se multiplicaram no fim da Gonçalves Chaves? Eu estou vivendo ou apenas questionando como seria a interrogação invertida no início e a interrogação final no meio das frases, assim como é no Espanhol. Estou vivendo ou tirando seu tempo em conversas informais e de assuntos aleatoriamente não selecionados previamente? Estou, nisso tudo, vivendo ou somente me questionando se viver é tudo isso? E será que é mais um pouco? Um texto sobre vivendo.

17/05/2016

Sobre vivendo

Assisti ao filme "Sobrevivente", sobre o cara que sobreviveu (dã) ao naufrágio de um barco nas gélidas águas do Atlântico Norte, na Islândia, em 1984. Daí que chamou atenção o extraordinário de Gulli ter ficado cerca de seis horas nadando e flutuando pelo mar em temperatura praticamente negativa em Celsius. Humanamente impossível, afirmavam. Naquela temperatura, muitos teriam pego uma hipotermia irreversível em questão de minutos.

Daí que, dependendo a temperatura, o ser humano não consegue passar sequer minutos nos oceanos, que cobrem cerca de 71% da superfície terrestre. Notável também a cena que ele consegue chegar à ilha e está exausto, desesperado e perdendo os movimentos pela má circulação do sangue, etc. Encontra uma banheira (?) com água congelada em um pasto. Afugenta os bois (que sempre têm o alimento em volta deles muuuuu) com sua presença. Pega uma pedra e bate no gelo até ele se partir e ele conseguir beber algo após horas cercado por água salgada.

Daí que o ser humano não consegue sobreviver, sem maiores aparatos, à maior parte de seu planeta. Seja por questões de clima, predadores e tal. E neste que é o planeta habitável.

E nisso tudo, Raul Seixas disse em Ouro de Tolo que

"É você olhar no espelho
Se sentir
Um grandessíssimo idiota
Saber que é humano
Ridículo, limitado
Que só usa dez por cento
De sua cabeça animal

E você ainda acredita
Que é um doutor
Padre ou policial
Que está contribuindo
Com sua parte
Para o nosso belo
Quadro social"

Loucura, né?