11/08/2025

Pierrot le Fou (1965)

Pierrot le Fou não era de meus filmes mais apreciados na filmografia de Jean Luc Godard. Mas a segunda vista é de novos olhares e experiências, assim como deve ser. A história começa devagar, na explicação de quem são nossos personagens. Ferdinand está a tomar banho e desenvolver seu hábito da leitura. Mais tarde se verá que gostaria de ser um escritor, mas está preso a um casamento com filhos pequenos e um trabalho burocrata, para burguesia. O tédio é evidente diante das limitações trancafiadas da vida. A oportunidade de uma aventura não será desperdiçada.

Para interagir com seu futuro empregador, na família do sogro, Ferdinand está em uma festa onde vê (ou, saberemos, no caso revê) a garota Marianne. Na oportunidade que se apossa deles, os dois formam uma dupla em disparada, no espírito dos road movies que ganhariam as telas pelo mundo. Até o próprio conhecidíssimo Easy Rider ainda não havia sido lançado. E Ferdinand e Marianne aprontaram o primeiro de outros golpes para cair na estrada. Ferdinand é sempre chamado pela garota como Pierrot e ele a corrige, sem demonstrar entusiasmo ou frustração (na maioria das vezes) : "meu nome é Ferdinand". Esse dialogo se repete inúmeras vezes, geralmente em trocas de cena ou de assunto, quando Marianne introduz uma nova perspectiva e adere ao uso do vocativo: Pierrot. "Meu nome é Ferdinand" é a resposta.

Nessa fase, Godard e sua cinematografia não poupam críticas ao fetiche aos carros. Na festa na casa do sogro de Ferdinand, são oferecidos drinks e assuntos assaz interessantes, como a velocidade que um Alfa Romeo (carro preferido da sátira godardiana) pode atingir em tantos segundos, relevância suprema que pode ser encontrada nas atuais rodas de conversa, em ambientes, digamos, mais pobres quando se perguntam a potência do motor de um carro ou quantos quilômetros o dito cujo consegue devorar por litro de combustível depositado. Godard também utiliza da acidez para recriar propagandas de produtos cosméticos e de higiene. O assunto entre a high society, injustamente desinteressante para Ferdinand, transcorre sobre adrenalinas-fetiches, produtos e aparência - nada muito diferente de 2025.

Durante a fuga com Marianne, eles têm a ideia de abandonarem o primeiro carro para evitarem uma perseguição bem sucedida por quem estava em suas caças. Assim, aproveitam de um acidente verdadeiro com vítimas expostas à beira da rodovia para estacionarem simplesmente o carro ao lado da tragédia e incendiarem tudo. Nesse planejamento que aparentava êxito, foi esquecido o dinheiro na valise no porta-luvas, tornando a aventura mais dramática pela continuidade da sobrevivência ao sabor de obcecado e imparável amor, na excitação pela estrada aos rumos de nova vida. Tanta promessa juvenil em um oferecimento caótico que um road movie pode trazer aos sonhos inocentes.

Godard satiriza o que por muito é considerado sublime. "Senti vontade de escrever um diário. Quem diante da natureza não sente a vontade de descrevê-la?" Assim ocorre desde a origem da literatura feita em terra brasileira, como a conhecida carta de Pero Vas de Caminha. Assim é orientada a literatura, nesse desbravamento, nos Sertões de Euclides da Cunha, nas paisagens cerradas, amazônicas ou pampeano-missioneiras, de Simões Lopes a Tiarajus, para se ater ao vasto Brasil.

À essa altura, há um deboche sobre as histórias, sobre os filmes de sobrevivência na natureza a qualquer custo. Sobre os urbanos que se deslocam realmente deslocados para áreas rurais, áreas remotas. Ferdinand afirma que estavam vivendo da natureza, da caça e da pesca, e na cena seguinte aparece dirigindo um trator com Marianne a reboque. O que será que Godard pensava sobre os programas que surgiram como Largados e Pelados?

"O escritor escolhe a liberdade dos outros."

O filme é permeado de literatura. Ferdinand é altamente preocupado com as manifestações culturais. Vale lembrar que em cena inicial ele estava a ler sobre o pintor espanhol Velásquez para sua pequena filha e que ela deveria se interessar por essa temática e ir ao cinema quantas vezes considerasse necessário. "Vivemos em um mundo de tolos", dizia ele sobre a criança que ele não queria que se tornasse parte do exército de tolos incultos.

Tomado de surrealismo, ou pelo menos muitos elementos surrealistas, está essa fase do cinema de Godard. No convívio com a natureza, Ferdinand e Marianne dividem ombro, refeição e espaço com animais dos mais exóticos, entre araras e pequenos mamíferos. Esses elementos, em recapitulação da memória, estão presentes em vários dos filmes de Jean Luc, mesmo que sejam pequenas pausas na realidade aflorada com momentos musicais e dançantes que quebram o ritmo e a seriedade do drama que poderiam ser/se tornar os filmes. O surrealismo era uma corrente respeitada na Europa, sendo impossibilitada a ausência de lembrança ao polêmico espanhol Luis Buñuel.

As brincadeiras com as linguagens são constantes. Quando Ferdinand questiona se Marianne o amava e não o deixaria, ela responde com a certeza: "sim, totalmente." Convicta, depois olha para câmera e repete o "sim, totalmente", mas com outro tom, que sugere a dúvida. Mas não é uma pergunta. É uma retórica ou, antes disso, uma tremenda brincadeira. Em seguida, na troca de cena a atriz passeia com os pés na água em afirmação de que não sabe o que fazer, mas também não tem o que fazer. A liberdade e o tédio lado a lado.

Depois, Ferdinand elabora um pensamento filosófico de que, quando uma pessoa espera pela outra, ao mesmo tempo o que era esperado só passa a existir, na casa em que a pessoa espera, quando esse cruza a porta, chegando ao recinto. Antes, tudo era pensamento, memória, desejo e suposição. Loucura aos casais que se divirtam com essa corrente de raciocínio.

Pausa do filme aos 50 minutos*

Godard passa de uma ode à natureza, com seus animais silvestres, árvores enormes em paisagens praticamente intocáveis para causar a provocação que foi um de seus principais temas dos anos 1965-1970, com a Guerra do Vietnã. Para arranjar algum dinheiro vivendo em meio à natureza, Ferdinand e Marianne resolvem engambelar turistas estrangeiros, que somente falavam inglês. Ferdinand debocha do sotaque e das gírias atarracadas dos gringos, enquanto os personagens principais simulam uma conversação entre um almirante da marinha dos States e uma jovem vietnamita, feita por Anna Karina, em uma provocante 'yellow face'. Com uma espécie de mímica, de teatro de marionetes, queimam fósforos sobre combustível; metáforas da guerra. Vale a citação de Made in USA de 1966, crítica maior em relação à arte fílmica produzida no país norte-americano. Outras aventuras godardianas focariam mais na política armamentista e nas escaladas de guerra, diretamente.

É até difícil acompanhar o ritmo de mudanças nesse filme de Godard (em outros também). Marianne entra em uma fase niilista, de negações, mas logo se preocupa com sua "linha vital" na palma da mão, uma crença desvairada. A resposta de Ferdinand é que se torna niilista, não ligando muito para essas crenças ou quaisquer outras. Próximos de serem apanhados, a dupla se separa. Ferdinand vai a um bar que tem, categoricamente, um carro estacionado entre as cadeiras, uma hippie que dança freneticamente ao som de uma jukebox, como uma previsão das raves, e Ferdinand pede dois chopps: "assim terei um para quando acabar o primeiro".

Antes de se dividirem e retomarem contato por telefone, Marianne havia dado palpite sobre o que Ferdinand deveria escrever, ele enquanto aspirante a escritor, que já estava, entre sua obsessão por livros, a escrever seu diário de convívio entre o amor e a natureza. "Escreva sobre um sujeito que anda por Paris e encontra a Morte. Ele tenta fugir da Morte, anda por tudo, e quando pensa que a driblou, é acidentado por um caminhão". Uma boa anedota.

Com a separação de Ferdinand e Marianne, a família da moça sequestra o rapaz e exige informações sobre o dinheiro que havia no carro (e eles queimaram) e o paradeiro da sobrinha. Godard repete as técnicas de tortura apresentadas em O Pequeno Soldado (1962), dessa vez com Ferdinand sendo submetido a afogamentos enquanto tem uma arma de fogo apontada para sua cabeça. O objetivo dos sequestradores é encontrar o paradeiro de Marianne.

Liberto dos sequestradores após indicar que Marianne deveria estar em uma boate, um dancing, porque ela queria dançar, Ferdinand perambula de volta até o litoral e apenas reclamava que era uma tarde terrível, sem mais o que exprimir. Dias depois, de emprego no cais embarcadouro, o surrealismo retorna com tudo ao aparecer uma dita princesa do Líbano com fantasias de perseguição e de realeza, que se protege das perseguições de metralhadora porque Alá a protege. A refugiada tem um ajudante chamado Alexis e apenas passa pelo filme enquanto Ferdinand está a comer um pedaço gigante de queijo; bem surrealista. Marianne vai retornar em seguida apresentando o que prometia, que também sabia escrever uns versos. Escreveu sobre Ferdinand, o chamando novamente, como sempre, de Pierrot, le Fou (a nominação do filme em cena, elemento comum de várias das obras de Godard).

O filme segue seu ritmo frenético entre denunciar a escalada dos EUA sobre o Vietnã, o tráfico de armas no Oriente Médio, ao citar a Guerra do Iêmen, e encontra espaço para jornadas de autodescoberta. Ferdinand e Marianne estão juntos novamente e fogem do embarcadouro com um barco, pois ainda eram procurados pela polícia pelo primeiro homicídio cometido antes da primeira fuga. Nessas perguntas de autodescrição, Ferdinand afirma que ele é "um ponto de interrogação diante do Mediterrâneo", enquanto a imagem abre em plano com o Mar e a civilização em construção civil ao fundo. Poético.

Um resumo do filme está em declaração a 1h30min: "com você (Marianne) tudo é complicado. Não, tudo é simples. É tudo ao mesmo tempo". Resumo da ópera da ensalada de assuntos. Mas que não ousem desqualificar o roteiro. São apenas muitas informações, mas não totalmente desconexas. Em verdade, na primeira vista, tratando-se de filmes de Godard, o erro que o espectador comete é: levar muito a sério. Esperar que os personagens tenham comportamento tradicional e não disruptivo. Em verdade eles vão sempre oferecer saídas estratégicas, improvisação, inovação, rebeldia, soluções distâncias do comportamento usual. É o surrealismo que dá cara ao holofote. Com esse aprendizado sobre os filmes de Jean Luc, o espectador fica preparado para as próximas jornadas estonteantes. É sempre fora da caixa, fora da casinha, propositalmente; oposição ao padrão, ao tradicional, ao consagrado e batido.

Para os últimos 20 minutos do filme, Ferdinand e Marianne aplicam um último golpe para reaverem dinheiro e planejarem uma fuga para ilhas do exterior. A surpresa é quando a moça não segue a parte do plano e aplica um golpe no fugitivo marido golpista. O desfecho trágico, pode-se afirmar, é bastante francês. O impacto da poesia está na última das tantas frases pronunciadas no filme: "encontramos a eternidade. É o encontro do sol com o mar", em uma bela paisagem que, se não cumpre o desejo, a expectativa após quase duas horas de filme, encerra poeticamente uma aventura à francesa, com o impacto do cinema a cores vibrantes, com muita sátira, filosofia, aventura, reviravoltas e críticas.





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