02/04/2020

cobranças de falta

Eles haviam marcado o encontro para o final daquela semana. Conversaram bem e estavam passos adiante do que sugere algo surgido pela internet. Ambos aos 20 e poucos anos. Alguns interesses em comum, principalmente o clube da cidade, que vinha bem nos últimos anos, o que fez render o assunto. Restaurante no sábado. Jantar. Promissor. O papo e o vinho resolveriam onde acabar.

Gostou do sorriso de gengivas aparentes, dos olhos e dos cabelos escuros, das fotos disponíveis na internet. Ela se agradou do senso de humor e que ele era bastante alto, acima dos 1,90. Ele cursava direito e ela era formada havia dois anos, finalmente arrumando emprego na cidade vizinha, mesmo assim não exatamente na área imaginada por ela, nas repartições dos uniformes brancos da saúde. Demoraram um tintim para definirem a logística da saída deles, porque os horários de ambos era apertado. Ela com leituras e turnos longos, o cansaço, o abatimento, a persistência no fim das contas para mais uma labuta. Ele nas leituras e leituras e mais leituras, as aulas pela manhã, o estágio de tarde e os lanches disfarçados de janta para encerrarem o dia, solitários. Gostou de ter companhia para aquele sábado.

E o restaurante não era um qualquer. Ele pensou que não daria vencimento sempre frequentar tais lugares, mas que para uma primeira vez valeria a pena. A decoração era agradável, a meia luz oscilava um jogo de sombras propício para novas angulações do rosto de cada, sorrisos ao vivo que ainda não se compram e vendem no instagram ou em outra rede. Ele tinha facilidade em fazê-la rir e ela também se saía bem quando arriscava-se no humor, não restrita as risadas e bebericadas no champanhe que acompanhava a entrada.

Quando retornaram ao futebol, perceberam que era a praia deles, o caminho das minas exposto ao mapa por ali. O time andava bem, somando mais vitórias do que derrotas, o que nem sempre ocorria. Grandes sinais, subidas de patamar, duelos marcantes contra os gigantes, corridas a goleadas contra os menores. Estava tudo onde imaginavam. O time, o jantar, o encaminhamento nos estudos, os empregos na prática em ascensão. Ele era daqueles que decoravam a escalação e, de tanto ouvir no rádio os debates esportivos, fabricava suas próprias teses e destrinchava com êxito a escalação como um locutor, em poucos segundos. Goleiro, lateral, zagueiro, zagueiro, lateral, volante, volante, meia, meia, atacante e centroavante. Vírgulas facultativas, vivacidade a mil, garganta secando, mas sem cessar. Se aplicar metade desse entusiasmo na noite estariam ambos de jogo ganho.

Ela já remexia a taça em movimentos circulares, agitando o conteúdo da champanhe em segunda rodada. Todo o entusiamo natural do assunto, todo o engajamento que a motivava topar a ideia mesmo na cansativa rotina, estava descarrilhando e dando lugar ao tédio de ouvi-lo falar empolgadamente sobre as teorias passadas. Se ao menos depositasse algo no cartão sobre o futuro do time. Seria tudo pretérito o debatido naquela noite? As aventuras vivenciadas no amor também não sairiam do engessado passado?

Quando ela própria filosofava dessa forma, o pensamento que se afastava foi estourado como um balão-surpresa ou entrecortado por um taco como uma pinhata quando ouviu um nome que ela muito bem conhecia. "Era o que ditava o jogo o volante Gabriel." Sim, o Gabriel que ela recordava e sabia detalhes até demais. "Tu namorou com ele, não foi?"

Sim, sim, foi, ficou imaginando onde havia esquecido foto entre os dois ou qual amiga ou qual amigo, quem rompeu a barreira do bom senso e divulgou tal acontecimento que ela de súbito, desde que se separaram, cisão antes entre eles, anterior à saída dele do clube para outro distante, no Centro-Oeste, de prontidão ela já queria tomar total desconhecimento, apagar da memória, manter-se distante a qualquer referência sobre. Mas, além de não atingir esse objetivo pelos longos meses e agora passados anos que sucediam, agora se deparava com o fantasma frente a frente. O fantasma da memória com coberturas extras de ectoplasma.

Se o par da noite já havia demonstrado entusiasmo e euforia anteriores, agora estava radiante, rasgava a meia luz do restaurante com o seu semblante em chamas, os olhos arregalando-se, o hálito da janta atravessando a mesa até ela, quando não saltitavam teimosas gotas salivares, frutos do júbilo crescente que o envolvia. Ele não só recordava os debates esportivos dos locutores no rádio como se transformava na sua própria versão. A voz a cintilar, a empolgadura no talo, o personagem do momento chamando mais a atenção do que os garçons pelas mesas ainda não atendidas. A expectativa dos arredores pairava nele, era o centro dos acontecimentos, o ponto final para a trajetória dos olhares cada vez mais atônitos.

O cerimonialista a reverberar e bendizer na rememoração dos lances mais incríveis puxados pelo cordão da memória: "E teve aquela cobrança de falta na gaveta, foi aos 36 minutos, eu estava na arquibancada de trás da meta e..."

"Outro feito extraordinário foi numa infração dessa vez pela meia esquerda, o centroavante Juninho queria a bola no cruzamento para tentar o gol de cabeça, os dois zagueiros se escalaram para área adversária, como era de praxe, mas o Gabriel confiou no seu potencial e mandou direto, um tirambaço, o chamado pombo sem asas, nem tanto ângulo para cobrança havia, uma façanha, um gol antológico, nenhuma chance para o aparvalhado arqueiro que ficou atapetado ao solo!"

O vocabulário surgia, as luzes pareciam dirigirem-se a ele, não bastavam os olhares antes migrados, tudo era a exibição de nosso showman, o locutor daquele sábado pacífico em que antes se ouviam poucas vozes, mas sobretudo as que vinham dos chamados da cozinha. No ambiente, da mesa de quase centro, antes eram discretos o tricotar dos talheres, as bolhas dos habitantes do graúdo aquário ao fundo, a música clássica quase inaudível, mas de tudo isso agora nada importava. O que realmente estava suspenso no ar era que

"ele pegou a bola pela ponta direita, trocou de posição com o Carlinhos, investiu pela banda, saiu do primeiro marcador, recolheu a bola enganando o segundo e aí sim partiu por dentro da zona inimiga, em velocidade, passadas largas que tinha, quando ficou de frente para a meta, bicou a bola como um bem gizado taco de sinuca e completou o serviço tirando do goleiro, este também, a-ta-pe-ta-do no chão onde a grama não cresce".

Saíram os primeiros aplausos dos convivas que torciam pela camisa ressaltada. "Ele beijava o escudo, sorria para as arquibancadas...", ela lembrou de beijos e sorrisos. "Na entrevista, lembro que ele falou que...", ela recordou as piores coisas que ele tinha dito. "Mas no último jogo, no último dos jogos, o Gabriel...", o Gabriel era um exorcismo que ela precisava fazer e não teve dúvida.

Ciente da condição do futuro advogado, ou procurador, ou juiz que agora ela nem lembrava e pouco se importava qual das funções ele queria, prestou ainda essa última dúvida para saber se estava tudo bem com ele quanto a pagar a conta, o pagamento que deviam ao restaurante naquela noite lastimável para ela como tomar um elástico 5x0 do rival. Sabia que não havia como se desculpar ao ambiente como um todo pelo ocorrido, mas, sabedora que ele teria como pagar inclusive as malfadas gorjetas, juntou pela alça a bolsa das costas da cadeira, ajeitou o vestido sem esbarrar na decoração da toalha da mesa e se movimentou rumo à placa de indicação da saída.

Pensativa, pronta para respirar o ar gelado daquela noite úmida, ainda tascou uma olhadela para trás para verificá-lo em seu estado máximo de êxtase. Parado, em pé em meio a duas mesas, organizava uma formação de barreira com os aturdidos garçons, que eram puxados pelos colarinhos e ombros como se fossem orientados por um capitão ou goleiro. Ela não ficou para observar como a bola, em chute milimétrico, encobriria a barreira para aconchar-se às malhas. Já havia ouvido essa história muitas vezes.

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