Ao contrário da análise positiva de Alphaville, Uma Mulher Casada talvez seja um dos filmes que menos gosto da filmografia de Godard durante a era da Nouvelle Vague. Este filme é de 1964 e conta a história de Charlotte, uma jovem esposa dividida entre dois homens: seu marido oficial, Pierre, e o amante, Robert. Ela é madrasta do pequeno Nicholas, filho do primeiro casamento de Pierre.
Seus pretendentes são mais velhos. Pierre é piloto de avião e constantemente está fora da cidade no exercício da profissão. Robert também tem de tirar dias fora, porque é ator de teatro. Charlotte vive à espera das viagens de Pierre para manter seu relacionamento extra-conjugal. Das suas poucas tarefas é manter o garoto Nicholas sendo buscado diariamente da escola.
Entre tantos elogios feitos recentemente aos filmes de Jean Luc Godard, este não é dos mais chamativos, explicando o porquê: não há filosofia mais densa e trabalhada, não há um roteiro cativante com as personagens, as atuações também não chegam a ser memoráveis ou divinas, não há acontecimentos que suscitem a trama em ação ou grandes suspenses. É um drama bastante morno, mas procuraremos atingir o objetivo de elencar pontos do filme.
Godard consegue mesclar seu gosto pela História ao pontuar uma viagem de Pierre, que passou da Alemanha a Auschwitz, na Polônia, local do maior campo de concentração da Segunda Guerra. O assunto permeia o filme. Em um dos encontros clandestinos de Charlotte com Robert, o destino é uma acanhada sala de cinema, precisamente na poltrona 12, quando a sessão de filme era referente à Segunda Guerra Mundial, e especificamente sobre os campos de concentração e suas aparências normais para os cidadãos que pudessem ver apenas de longe, de fora. É uma coincidência, pois Robert não tinha acesso a esse assunto que Charlotte travou com Pierre.
A trama do filme se desenvolve do meio para o final. Charlotte estava marcando consultas médicas e com a suspeita de uma gravidez. Ela descobre estar grávida em andamento, de três meses. Na hora, o espectador já fórmula a única pergunta possível: de quem será o filho? Há uma esperança de que a própria Charlotte tenha a resposta, mas adiantamos que ela não tem. Portanto, a dúvida é levada até o final do filme. Poderia ela, nessas escapadas, ter um cálculo mais preciso de com quem tenha dormido nesse tempo, mas durante o filme é provado que ela poderia estar até mesmo com os dois pretendentes em um único dia. Na manhã com Robert e à noite com Pierre, de volta de viagem.
Em visita a amigos de Pierre, a filosofia corre um pouco à solta no filme, mas entende-se que não com a profundidade de outras obras de Jean Luc. O objetivo maior do filme é entender a cabeça - e nela a bagunça - da situação entre um marido que tem um filho pequeno de outro casamento e almeja ter um filho de Charlotte, a cabeça da própria Charlotte, dividida entre os dois compromissos, e o bom vivente Roberto, sem a responsabilidade familiar e tentando alavancar sua vida de ator. Segundo ele, nunca foi casado. É um que dispensa compromissos do tipo.
A liberdade de escolha de Charlotte, à mostra da possível traição feminina, chocante aos olhos de 1964, são temas que podem ser mais reveladores, nesse olhar retrospectivo. Vale a lembrança, como outras análises por mim feitas, sobre os casamentos arranjados que perpassam tantas culturas pelo mundo em pleno 2025. Trata-se então de uma realidade francesa e europeia em plena década de 1960.
O feminismo aparece em algumas cenas do centro da trama. Charlotte frequentava uma piscina, de um clube ou pública, mas indiferente. Ali, tinha amigas e também passou a escutar a conversa de mulheres mais jovens, iniciando a vida sexual. Uma das adolescentes aconselhava a outra sobre como seria a experiência, sobre despir ou não, manter luzes acesas ou não, algum comportamento corporal de um jeito ou de outro. Charlotte escutava com a nostalgia de quem há muito estava iniciada e agora com compromissos maiores, tanto com o cônjuge, o cuidado com o enteado e o planejamento do que estaria por vir. Em meio a essas conversas, assuntos de penteado, de vestimentas e de signos do horóscopo, novidades e assuntos clássicos do que se considera moda feminina.
Em casa, com a empregada doméstica, com a madame da qual esquecemos o nome, Charlotte também desenvolve conversa a respeito de relacionamentos, modernidade e aparência. Apesar de sua beleza definitiva, a personagem principal estava incomodada com o tamanho de seus seios, preocupação e pressão julgadas sobre as mulheres e suas aparências. Revistas femininas, conceito que se estendeu por décadas nos salões de beleza e salas de espera, erguiam métodos capazes de corrigir postura, aumentar as mamas, etc.
É de se pensar por esse lado também a diferença de classes e do feminismo na época, entre madames que tinham a possibilidade de escolha, enquanto outras simplesmente as serviam em emprego, ou lutavam por direitos contra preconceitos raciais, por exemplo. A conhecida diferença entre feminismo branco e feminismo negro; lugar de fala acentuado para época (imaginem só em Estados Unidos, por exemplo). Em depoimento da empregada, sabatinada em perguntas sobre como era seu relacionamento em casa, ela reclama que os homens muitas vezes reduzem a relação ao sexo; assim, ela precisa fingir para manter tudo bem - é a falta de direito de escolha, de autonomia sobre o corpo sendo transmitida nesse depoimento. Ao final, porém, talvez sintoma também de suas limitações de perspectiva, educação sexual e lazer, a empregada opina que essa forma de amor é a única verdade na vida, e, quando considerado o todo, é um remédio contra apatia.
Interessante que, após esses depoimentos, chega a hora da revelação no consultório médico: Charlotte descobre definitivamente que está grávida. Ela aplica uma sabatina ao doutor sobre aspectos, por exemplo, do prazer que uma mulher pode sentir, e se ele, o médico, poderia ajudar a descobrir de quem seria o filho. Em depoimento que pode ser considerado contínuo à situação das muitas empregadas domésticas e mulheres e casais de classes sociais mais baixas: Charlotte pergunta sobre o controle da natalidade. O ano, lembrem-se, era 1964, e a explanação do médico é mais um trunfo de Godard para antecipar problemáticas do mundo atual. Por enquanto não havia necessidade do controle de natalidade, mas este poderia vir a ser um grave problema. Assim foi e é em alguns países (como não lembrar o caso da China acima de bilhão de habitantes e como isso vem à tona para Índias, Bangladesh e Paquistão, e também para realidade de países da África). Enquanto Europa e regiões das Américas viviam a expansão das famílias amparadas pela medicina que reduzia a mortalidade infantil, hoje essas mesmas regiões do globo já apresentam quedas vertiginosas no número de filhos por mulher.
A situação da classe média em que Pierre tinha o único filho pequeno Nicholas, Robert não era pai e Charlotte passava a esperar o seu primogênito, demonstra já uma sociedade europeia bastante desenvolta em planejamentos. Situação recorrente à zona urbana, enquanto os rurais ainda possuíam maior natalidade com os cuidados das muitas tarefas do campo. Observação que pode sim ser retomada ao Brasil, com o habitual atraso de décadas, mas com resultados inclusive semelhantes.
Enfim, apesar da obra Uma Mulher Casada não ser da magnificência a que Godard nos acostuma, ela tem sim pontos altos que refletem o comportamento, os debates e as discussões da época. Godard era mestre em inserir nos diálogos banais, nos vazios, números, notícias, novidades, tópicos de interesse da sociedade e que garantem, passado mais de meio século, uma contemporaneidade clássica, um achado, um apanhado de informações ricas e dignas da época, objeto de estudo sedutor para acompanhar o desenvolvimento e os peculiares caminhos da humanidade.
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Cenas sensuais são comuns em Uma Mulher Casada (1964) Olhar crítico de 2025 deve entender as nuances e novidades apresentadas por Godard de forma ousada às telas da época. |
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