No lado Feminine está a vida de Juliette Jeanson (Marina Vlady), uma moça que é esposa e tem filhos pequenos para criar. Ela é aspirante à atriz, mas as contas a serem pagas necessitam de maior urgência para os pagamentos. Enquanto deixa filha em creche, ela deve recorrer a outras formas de ganhar dinheiro. O panorama inicial do filme apresenta uma realidade para muitas mulheres naqueles tempos (e em tantos outros do porvir). Conhecer rapazes, engravidar, não contar mais com o responsável pai e ter de criar o primeiro filho de algum jeito. Não o bastante, conhece outro rapaz, engravida novamente e duplica a agressividade da tarefa pela sustentação.
Juliette Jeanson é a principal figura nessa transição de filme com a linguagem técnica das obras de Godard. Um narrador expõe fatos do cotidiano parisiense e os atores contracenam em uma forma complementar, na nuance entre ficções e realidades. Em um monólogo, enquanto experimenta e compra roupas, Vlady afirma que ninguém sabe como serão as cidades no futuro, mas que com certeza elas perderão do seu passado histórico. Previsão não muito difícil, mas acertada. Godard mais uma vez aposta na técnica narrativa em que as personagens olham para câmera e expõem seus discursos, com reflexões, citações e muitos monólogos. Contam as duas ou três coisas que se sabe.
Ao começo do filme, uma inserção política é marcante enquanto Juliette e o marido conversam. O marido está entretido com um amigo em uma missão de escutar uma rádio distante, praticamente um exercício de decodificação, pois o discurso é em inglês. O presidente Johnson conta sobre sua missão no Vietnã - assunto contemporâneo dos filmes godardianos. A justificativa é cômica. O Vietnã não queria negociar e os Estados Unidos atacavam, bombardeavam lá. Com muita tristeza Johnson afirmava isso. Não quiseram negociar e com muita tristeza teve de ordenar novos bombardeios. Novas investidas sobre Pequim e outras regiões da Ásia até o Vietnã aceitar negociar. Mas infelizmente teve de ordenar novas invasões do exército estadunidense, pois o Vietnã, veja bem, dessa vez, mesmo negociando, não aceitou um acordo conforme queriam. Qual outra escolha possível que não sejam novos ataques ou sanções?
Filho pequeno de Juliette apareceu em seu quarto e relatou um sonho. Eram gêmeos, duas pessoas que do nada se uniram formando uma única pessoa: eram Vietnã do Sul e Vietnã do Norte, mãe.
Juliette está iniciando em seu trabalho. É a realidade para muitas mulheres, incentivadas até pelos maridos ou companheiros para realizar o trottoir. É interceptada por um jovem cafetão que lhe oferece intermediação (e proteção) por apenas 10% do ganho. Ela nega, diz que a guerra acabou e que sua situação é passageira, é temporária. O narrador, enquanto a personagem mistura o café com uma pequena colher, filosofa sobre as falhas da comunicação. A falha em entender, em amar, em ser amado, em ser compreendido. E que cada falha assim acentua a solidão.
"Seguidamente me sinto culpado, mesmo sendo inocente. Todo evento altera minha vida diária."
As reflexões sugeridas pelo narrador são muito densas, mais do que o café ou do que costumaria ser um café com filme de Godard. Ele questiona a tecnologia, o dito progresso que faz com que o futuro seja uma ameaça, que galáxias distantes possam bater à nossa porta. Todos os pensamentos sobre adventos e sobre as limitações de linguagem, de mundo e de consciência ocorrem ainda no café, com a câmera a focar o interior de uma xícara. Um dos aprendizados que pode se sacar desse momento todo é que é possível e recomendável escutar bastante (aos outros, a possíveis sinais) para além do exercício da observação. Aulas.
Pausa do filme em 30 minutos*
A obra avança com imagens de construções em Paris e a atividade de Juliette e sua amiga Marianne como prostitutas. Godard demonstrava muita preocupação com a forma deplorável a que se submetem mulheres ao exercício dessa profissão, ao passo que procura as retratar na vivência, enquanto seres complexos, com suas ânsias, qualidades, defeitos, características plenamente humanas e não objetificadas.
Segue em curso também a preocupação com o uso da linguagem. O diretor está atento ao crescimento da importância da imagem, situação nunca mais posta em marcha reduzida. Isso só se acelerou até os tiktokers e a internet em pleno uso globalizado. A imagem é referência. Ele tenta descrever cenas, mas está óbvio que o trabalho que a amostra de imagens complementam onde a linguagem não consegue exprimir ou trazer precisão. É um debate muito sério da atualidade. Qual o futuro do rádio na era das imagens? Para onde ele vai além dos rádios nos carros e agora são controlados por bluetooth e pelas músicas escolhidas a dedo pelos ingressantes do veículo. Nem as rádios táxi entram em voga com o advento dos motoristas chamados por aplicativos móveis. As imagens dominam, na exibição, no espetáculo, no fetichismo. O audiovisual se sobrepõe de uma forma não antes vista. O ano era 1967. A Sociedade do Espetáculo de Guy Debord estava às portas de ser lançada. O ano era 1967 e os televisores, passado o tempo da ênfase do preto e branco, passavam a entrar nas casas já nas versões coloridas. Godard chega a brincar com isso. Se você não tem LSD, compre um televisor a cores - para efeito inebriante semelhante.
Muito mais do que sexo, essas mulheres atuam na divagação filosófica na trama. Paris é discutida com a métrica de com o podem ser consideradas, acolhidas, interpretadas e compartilhadas as cidades. Marianne acredita que tão importante quanto os elementos imóveis nas cidades são as passagens móveis: os cidadãos, o fluxo - e até, por que não? o trottoir desenvolvido por elas mesmas. A dupla de amigas recebe um estrangeiro norte-americano. "Você coloca os Estados Unidos acima de tudo" - se refere Marianne (onde já ouvimos esse lema?). Ele responde que é verdade, mas que eles têm, entre os méritos, as inscrições recentes do jeep e do napalm.
Sem se unir à Marianne e ao norte-americano na consumação do ato, Juliette vê cartazes sobre a guerra do Vietnã e questiona como alguém na Europa de 1966 pode ter o pensamento em foco na Ásia. Como se importar com indivíduos que nem se conhece, apenas se imagina e idealiza? Godard demonstra muita preocupação com a Ásia. Com as guerras no Oriente Médio e Extremo Oriente. Sabe da quantidade de pessoas envolvidas, das grandes populações nesses países, da fome que assola a Índia. Ao mesmo tempo, nunca esquece da América do Sul e as ditaduras da época que corroíam os irmãos sul-americanos. Para além das críticas e do desejo pacifista contra o armamentismo e o capitalismo selvagem, Godard coloca no mapa dos olhares eurocêntricos esses espaços distantes. A guerra diretamente intimidante entre França e Argélia é fortemente abordada no filme O Pequeno Soldado. Nesse trecho de nova crítica à investida dos EUA contra o Vietnã, uma voz repete sobre as palavras de Juliette os dizeres "Amerika uber alles" ou acima de tudo. Frase que serviria anos depois para sátira da banda californiana Dead Kennedys contra seu próprio país. Na canção famosa, eles utilizam "Califórnia uber alles". Quais as diferenças entre líderes totalitaristas futuros e o bigode, além da quantidade de vítimas? E quantas vítimas eles poderiam fazer se assim pudessem? E como aponta recentemente o presidente colombiano Gustavo Petro: "são provas de poderio contra as periferias do mundo. E um dia estarão eles atacando eles mesmos", ou citação semelhante. O refúgio que se idealizava para Israel (será) se tornou opressor, totalitaristas e esmagador sobre as pessoas e terras palestinas.
"Você deve ser atenciosa com a embriaguez da vida."
"A poesia é para embelezar a vida ou é algo instrutivo? - Embelezar a vida é sempre algo instrutivo."
Outros personagens debatem em um restaurante, um bar com fliperama. São conversas entre homem e mulher com temas que vão desde a linguagem até a desinibição, o tabu que é falar abertamente sobre sexo. Se todos têm órgãos sexuais como há olhos, há bocas. A conversa, conforme as aspas anteriores, também giram por outras questões do sublime da vida. Godard desperta nessas filosofias também a forma como as conversas humanas costumam se construírem vulgares ou repetitivas, sem acréscimos ou reflexões. Explorar além na semântica e na pragmática quer evitar as limitações morais e sociais a que estão submetidos os seres humanos no dia a dia.
Os clientes do bar/restaurante/fliperama (com os ruídos da jogatina ao fundo) discutem sobre questões que podem ser pautadas, forjadas, baseadas na coragem, na vontade ou na competência (ou falta desses elementos). Questões do que se pode, do que se deve fazer ou não fazer, falar ou não falar. Atravessar valores morais, ser envolvidos pelos próprios ou contorná-los. Queremos falar e não podemos? Podemos falar e não queremos? Como atuam as ditaduras morais, os policiamentos ou autopoliciamentos? Questões à mesa, literalmente.
De volta para Juliette, no terraço de um conjunto habitacional, segue o raciocínio sobre dar nome às coisas, se podemos descrever as cenas, as imagens, a precisão e a particularidade das expressões por meio de palavras. As limitações desses fluxos da linguagem. É um filme bastante maduro de Godard, chegado o ano de 1967. Novamente penso na relação com os Beatles, o auge nos anos 1960, as transformações do mundo, o ápice desses movimentos artísticos, a passagem do som do rádio para compra desenfreada das televisões, o fetichismo pela mercadoria nova, o tecnológico, o imagético, as criação dos ídolos, das vedetes. Os Beatles que depois se separaram e nunca mais obtiveram carreira igual com bandas, tendo Paul McCartney a mais extensa, nas concentrações de sua própria figura como centro, enquanto Godard passou a filmes mais experimentais e novas técnicas nem sempre admiradas, nem sempre compreendidas, nem sempre facilmente digiridas, nem sempre inteligíveis à primeira vista, necessitando estar bem iniciado, bem inteirado, bem politizado para interagir com.
"Um rosto tem uma determinada expressão. Tem uma expressão particular." O quanto se pode descrever isso? O quanto as metáforas conseguem alcançar nas comparações? O quanto somos únicos em um universo tão vasto?
Incessante fluxo no filme, mesmo aos minutos finais há muito assunto. A Paris e suas construções são contestadas com os novos conjuntos habitacionais que podem substituir antigos espaços para brincadeiras. A transformação das cidades, que passam a integrar condomínios como centros de recriação ao invés das ruas, dos parques. O aprisionamento atrás das grades dos prédios, as crianças pelas escadas sem espaços adequados de lazer - mais comum para edifícios menos planejados, em áreas menos planejados ou mais pobres, atualmente. Em uma conversa com seu filho, Juliette acompanha a leitura do dever de casa do menino. Ele considera a novidade do coleguismo entre meninos e meninas na escola. Acredita que é possível desenvolver amizade com algumas, mas com outras não. Esse assunto da amizade homem-mulher, extensão do filme anterior, Masculino-Feminino é um debate que pode ser iniciado na infância e não se encontra resposta precisa na fase adulta, com pessoas que acreditam na amizade e outras que apenas acreditam no interesse, seja na busca de conforto, de finança ou sexual.
"Nossos pensamentos não são a realidade, mas uma das sombras da realidade."
As dúvidas finais (finalmente, neste longo capítulo): somente os autoconfiantes admitem falhar? Juliette discorda, e você?
O amor é falso quando as pessoas não mudam. No amor verdadeiro a pessoa que ama e a amada se transformam. Será?
Após tudo isso, Godard sugere propagandas e Hollywood que façam esquecer a guerra do Vietnã, do Iraque, a fome na Índia e os problemas habitacionais na própria Europa, na própria Paris, na sua própria casa de amores falsos ou verdadeiros. Fim.
Nenhum comentário:
Postar um comentário