29/08/2025

Meu Pé de Laranja Lima (1970)

Meu Pé de Laranja Lima causou grande impressão e pode ser considerado um dos melhores filmes nacionais. Acostumado a filmes iranianos que retratam a infância, observar essa obra autobiográfica que vem do livro de José Mauro de Vasconcelos é contemplar a identificação com milhões de jovens brasileiros.

Zezé só revela o nome completo no filme ao recitar para preencher a ficha escolar. José Mauro de Vasconcelos. O menino tem seis anos, é miúdo, mas destemido. Tem um irmão menor chamado Luis (ou Luiz), com o qual é muito atencioso. Seu irmão mais velho aparece em algumas cenas e procura instruir o imaginativo e aventureiro Zezé. A infância neste filme não é retratada como a maior das nostalgias, do fantasioso e do maravilhoso enquanto não se cresce. Zezé, pelo contrário, vive à margem de uma sociedade abastada. Seu pai desempregou e não tem previsão de receber um novo emprego. A substituição dos postos por operários mais jovens é realidade. José mesmo muito criança já sai atrás de suas rendas, sempre pensando nos próximos. Sonha dar um presente de Natal ao maninho menor. Quando questionado por roubar uma flor para professora, confessa não ter dinheiro para comprar, não ter jardim em sua casa com flores e que não tolerava assistir ao copo na mesa da professora vazio. Roubou-lhe uma flor. Em seguida fala que a professora não deveria destinar brindes de comida só a ele, que era excelente aluno. Uma negrinha na escola era ainda mais pobre e ele dividiria a comida sempre com ela, que era excluída por outras crianças. A professora poderia dar brindes direto à menina. Zezé cometia erros, xingava, se metia em brigas, mas tinha bom coração. Passados anos da vida adulta é fácil enxergar. O envolvimento de todo contexto e o perdão para os erros infantis do aprendizado.

Nessa vida com percalços, descalço pelas ruas, Zezé não romantiza a infância. Sonha viajar, fala até em suicídio, conversa que pesa clima ao fazer amizade com um confessor português, o senhor Manuel Valadares. Como o pai estava desempregado e ocorriam algumas brigas em sua casa, com a irmã adolescente e os pais, Zezé chega a projetar que o português o adote. Manuel, que não tinha filhos, não descarta a ideia, mas não tiraria o menino do seio familiar.

Claro, o personagem principal das confissões de Zezé seria o que dá nome ao filme, o tal do Pé de Laranja Lima. Zezé o descobre no terreno avulso à casa e lá parte para brincadeiras e imaginações. A árvore além de ouvinte também dava dicas maravilhosas ao menino. Um realismo fantástico. Zezé gostava de brincar de imaginar um zoológico e animais ferozes para impressionar o mano Luis. Além da árvore do protagonista, os irmãos também tinham entre mangueiras e outras árvores, uma da tamarindo.

O efeito do filme com acontecimentos tristes, emocionantes, crus, remendadores de nossas e outras infâncias torna as lembranças como um clássico. Se comparam as épocas, se pensa no raio do capitalismo que faz crianças trabalharem e adultos sucumbirem. Faz com que desejem fugir ou morrer, que sejam discriminadas, que percebam ou não as diferentes classes sociais e financeiras. O dinheiro como base de tudo, para comer, para presentes, para determinar as crianças que tenham ou não tenham Natal, que tenham ou não tenham figurinhas de chiclete e outros brinquedos, que possam ter a bicicleta ou não, conforme o filme recém avaliado neste canal, o Este Mundo é Meu (1964).

Meu Pé de Laranja Lima supera sensores para cortar/contar essa época da arte brasileira com amostras de pobreza, mas de esperança. Retratos crus, a mistura do rural e do urbano, da sociedade ainda muito religiosa, do crescimento das cidades, da passagem do bastão das gerações. Dos portugueses incorporados à sociedade brasileira: amigos? Confessores? Por que não?

Zezé encanta por seu senso aventureiro, por não se intimidar, briga e busca melhoras pelos irmãos, chega a brigar com menino maior do que ele. Luta contra as desigualdades, sonha planos para si e pelos outros, roga contra Jesus que o teria abandonado. Não é fácil ser criança. Toda a romantização da infância esquece de muitos exemplos. O escritor José Mauro de Vasconcelos não nos deixou esquecer das agruras de um Brasil profundo e relativamente recente. Talvez da nossa janela para fora ainda hoje.

28/08/2025

Esse Mundo é Meu (1964)

Filme lançado em ano marcante para história brasileira, Esse Mundo é Meu teve o "luxo" de permitir críticas sociais à essa época. A ambiguidade no título do filme é interessante. Pode-se pensar em uma conduta de posse, de poder, de aquisição, mas a análise final resulta pensar em apenas assimilação, pertencimento. Esse Mundo também é o meu, também é o que vivo.

A história mostra dois trabalhadores, um negro e um branco, e suas respectivas vidas com as companheiras. O negro Toninho é engraxate e sonha comprar uma bicicleta, mas, embora desça ao centro para trabalhar em barbearias e na rua, entre em lojas para namorar o transporte de seu desejo, não consegue atingir a quantia para sobreviver e comprar. O branco Pedro descobre que a companheira está grávida, deseja um aumento de salário na fábrica, na serralheria em que trabalha, coisa que não obtém. O chefe brava em plena discordância. "Se eu der aumento pra ti, precisarei dar aumento pra todos."

A companheira de Pedro pensa no aborto, pois não quer ter um filho sem estudos, um engraxate ou situação semelhante. O operário sonha que o futuro filho estude e seja um respeitado doutor. Situação distante para o Brasil da época?

O cansaço da espera, a ansiedade e o desespero moldam, modelam as duas histórias em pouco mais de 1h18min de filme. A direção é de Sérgio Ricardo, brasileiro que por muito tempo se dedicou à música, trilhas sonoras e canções. Assim, o filme tem acabamento apesar dos parcos recursos. As histórias fluem.

A figura central da bicicleta faz pensar em outros filmes da época, como o clássico italiano Ladrões de Bicicleta, o neorrealismo nas telas. No futuro, o árabe O Sonho de Wadja lembrará da importância da bicicleta, dessa vez para uma menina que não poderia brincar e se mover como os outros meninos, em função das restrições impostas na cultura islã. No Brasil de 1964, a identificação com o mundo do trabalhador que vive de bicos, não tem salário fixo, mal tem para arrematar a saída da miséria da fome, não tem para juntar para uma simples bicicleta e não encontra outra forma que não seja o roubo. A identificação com o operário que almeja uma vida melhor para família, deve dois meses do aluguel de um barraco. Ele e a mulher então recorrem, na dúvida sobre a manutenção ou a extração do filho, a uma clínica clandestina de aborto, com métodos mal afamados e polêmicos. Irão sobreviver?

A colocação da temática do aborto em plena época demonstra ousadia e abertura para um debate ainda muito distante de ser vencido em 2025, mais de 60 anos depois. A identificação com a dura realidade das personagens mostra um Brasil que muito precisa avançar e a dificuldade de sobrevivência para quem vive à margem, na localização, no acesso à saúde e oportunidades.

⭐⭐⭐⭐

26/08/2025

O Médico e o Monstro (1920)

O Médico e o Monstro, filme de 1920, adaptado do romance de Stevenson, conta a história de duplicidade do médico Dr. Jekyll com a figura monstruosa de Mr. Hyde. Eles coexistem. Portanto, a temática do filme é essa coexistência do bem e do mal em uma mesma pessoa e a dificuldade para controlar a própria monstruosidade, a agressividade, a perversidade, os desejos. 

Dr. Jekyll é um sujeito por demais respeitado na sociedade londrina. Ele visita George e está encaminhado para casar-se com a bela Millicent, filha do magnata. O interesse da filha pelo jovem médico/cientista é visível. Porém, o próprio George incentiva Henry Jekyll a conhecer a perversidade, os cabarés, a vida noturna e suja de Londres. Como é dito por outro amigo deles, "há poucas coisas que George não conheça, não tenha vivenciado". Contrapondo a prudência e inocência de Jekyll, seu lado obscuro aflora pelo incentivo alheio. Assim, pesquisador e experimentador da ciência, ele propõe em segredo o uso de uma poção, de uma droga que o transforma em um duplo perverso. Coexistem em Londres a figura respeitada de Dr. Jekyll e do corcunda aterrorizante e frequentador das maldades da noite, o tal Mr. Hyde.

Adaptando século depois se pode comparar a forma oculta em que Jekyll não era associado a Hyde, apenas seriam amigos que nunca, logicamente, apareciam juntos. Henry Jekyll chega a destinar em testamento suas descobertas e patrimônio para o "amigo" Hyde, situação que pôs todos em desconfiança e vigilância: qual seria a relação entre Jekyll e o perverso, estranho e desconhecido Hyde? Uma mesma pessoa pode ter lados ocultos, crimes grotescos, aparências a enganar. Disso não sobra dúvida, sobretudo nas redes sociais e, como é o tema do Brasil no mês de agosto, os perigos das redes com tráfico de imagens e consumos velados ou obsessivos de temas que colocam em risco a sanidade, os direitos e a preservação de crianças e adolescentes. Situações suscitadas a partir do vídeo de Felca e por aí adiante.

Muitos Mr. Hyde vivem escondidos em Dr. Jekyll, sejam em traidores, abusadores, criminosos dos mais diversos tipos, violentadores, articuladores de conteúdo proibido e traficantes. A temática é totalmente clássica através da modernidade em que a humanidade se desdobra sobre novas maneiras e tecnologias para sobrepor camadas e infiltrar-se em universos do abjeto e do repudiante. Camadas ocultas de crimes virtuais e entre quatro paredes se misturam à história do viés tecnológico. Crimes domésticos, crimes familiares, abusos cometidos por quem deveria cuidar e proteger. Eis variedades de Mr. Hyde que sobrevivem à sombra dos órgãos investigadores e da sociedade alerta contra a tirania e a perversidade dos falsos zeladores.

Temática que se mistura ao agosto lilás de proteção contra a violência contra as mulheres e sobretudo na proteção de crianças e adolescentes. É difícil avaliar uma história como essa e não se colocar na condição de alerta de que casos podem estar ocorrendo ao lado ou em perfis que aparentam tranquilidade. A vizinhos e familiares que suspeitam marcas e atitudes estranhas, a denúncia deve estar sempre disponível quando apontarem-se provas.

Sobre a história do filme mais do que centenário, Dr. Jekyll foi experimentar prazeres que o dominaram, descontrolaram na dosagem e o derrotaram como indivíduo e figura de convívio social. As camadas de bem e mal que se acoplam em um mesmo sujeito, como delineava Nietzsche, podem desequilibrarem-se e causarem transtornos. Sobressaem-se a desconfiança e a incapacidade de leitura exata dos sujeitos, indivíduos cada vez mais individualistas, suscetíveis e programados a perdições e caminhos errados enquanto outros tantos visam o lucro. Vendem-se doenças e remédios. O problema e a cura. A indústria do erro, a cegueira de quem lava as mãos e da justiça e a indústria do punitivismo, por último. Ou nem isso. 

19/08/2025

Natu Rezas

Natureza

Será que descobrimos mais alguma beleza

Nas espécies que não catalogamos?


Natureza 

Será que reconheceremos a sua realeza

Ou seguiremos brincando com os reinos?


Natureza

Posso morrer como filme "Gôsto de Cereja"

Ou agosto me reservará alguma surpresa?

15/08/2025

A Chinesa (1967)

Por ordem cronológica de preparação, o filme seguinte a ser analisado é A Chinesa (1967), um dos mais políticos de Godard enquanto fase da primeira Nouvelle Vague, iniciada em Acossado (1960), com roteiro do companheiro François Truffaut. Em A Chinesa, feito após 2 ou 3 Coisas que Eu Sei Dela e antes de Weekend, Godard já havia começado seu relacionamento com a atriz alemã/francesa Anna Wiazemsky, destaque no ano anterior no filme A Testemunha. Anna estreia nos filmes de Jean Luc com papel de importância em A Chinesa.

Jean Pierre Leaud e outros atores compõem nesse filme uma célula comunista, com as locações internas em uma casa altamente decorada com material político. O filme é todo composto por debates, discussões, pensamentos e manifestações de cunho político, com atuações locais ou mediante os problemas globais. Os jovens escutam a tradução da Rádio de Pequim e buscam se manter informados sobre as guardas vermelhas impulsionadas na China. Claramente, se vê que a célula comunista está com novos membros e os debates são de iniciação e com foco na continuidade das atividades. No início do filme, um companheiro deles aparece ensanguentado e rapidamente o acodem e o posicionam em uma cadeira. Quando questionado quem teria feito isso com ele, afirma, para alguma surpresa, que foram outros ditos comunistas, da Sorbonne, numa dissidência ocorrida sobre a situação russa (diante da Soviética de 67). Jean Leaud considera isso positivo, pois marca as opiniões contrárias e o posicionamento da célula enquanto modelo político. 

As paredes da casa em questão estão sempre decoradas com frases de efeito. Uma delas afirma que se devem combater ideias vagas com ideias claras. O filme tem andamento quase como um manual para recrutar, se politizar e entender questões político-globais. Nenhuma surpresa que tenha sido vetado/censurado de exibição qualquer no Brasil da época. A pensa os objetivos da ditadura cívico-militar brasileira, atuaram como a censura previa atuar: sem espaço para manifestações pró-comunismo.

Um convidado discursa para a célula sobre a perspectiva global após a morte de Lenin. Abre-se espaço para novas pesquisas, perspectivas e formulações. Sementes já foram plantadas. Eles debatem que as classes sociais vivem em constante choque, ebulição, movimento: há classes que ora surgem, outras desaparecem como movimento de atuação social. "Essa é a história da civilização." E essa pressão, essa luta de classes acabaria sob uma ditadura com base nas escolhas do proletariado? É negado. Desde 1921, Lenin afirmava que a ideia de classes sociais não se dissiparia sequer com essa organização social.

No filme, também se considera que revoluções só são possíveis tendendo-se, entendendo-se, buscando-se revoluções. Não acontecem por acaso ou não sendo almejadas. Para alcançar objetivos, é preciso focar na prática desde o bairro, a vila, a cidade, com exemplos práticos e não especulativos, imaginários. Além dos debates, diga-se, com o objetivo em tempp real, o filme é entrecortado com espécies de entrevistas com os membros da célula, com suas histórias pessoais de como aderiram à ideologia, de onde conheceram, o que têm passado e quais objetivos possuem na causa. Dentro disso, comentam situações cotidianas e de relevância para as discussões políticas.

Diferentes lugares de fala são apresentados. Veronique, a personagem de Anna Wiazemsky vem de uma família de banqueiros e estudava filosofia. Percebeu as desigualdades impostas pelo capitalismo (classes sociais, campo x cidade, agricultura x indústria), percebeu que somente estudar filosofia vinda de um bairro operário era uma contradição muito grande, mas tenta aplicar os conhecimentos em busca de uma teoria mais justa, que possa ser praticada. Segundo ela, queimar livros também não seria bom, pois assim não se consegue criticá-los.

O personagem de Jean Leaud levanta uma questão sobre linguagem (lá vem Godard). Se fosse uma sociedade de cegos, se prestaria mais atenção ao que é dito, em conversas verdadeiras, com atenção ao interlocutor. É uma crítica que ganha espaço cada vez mais em uma sociedade de muitos falantes e poucos ouvintes; poucos ouvintes ativos, poucos interpretadores, reflexivos, pensantes, questionadores.

Após o descanso da noite, os personagens despertam pela manhã e vão em direção a varanda da casa. Alongam e realizam exercícios enquanto pronunciam frases de teoria marxista como se fossem um exército a cantar durante os exercícios físicos. Uma sátira godardiana. O personagem de Jean Leaud então ministra a próxima conversa sobre os tons e directrizes da guerra na Ásia. Satiriza a ação dos países, cada qual representado por óculos escuros com suas bandeiras, enquanto o Vietnã está limitado a pedir socorro. Estados Unidos enviaram mais bombas ao país asiático do que durante a Segunda Guerra (princípios para quê? Ásia para os norte-americano?), União Soviética muito teoriza e pouco aplica. A China de Mao pede atenção, mas não teme o imperialismo e o capitalismo (como até hoje permanece). Nas palavras de Mao, esses impositores seriam como tigres de papel, ferozes na aparência, mas, para China, inofensivos aos objetivos. Inglaterra e França, consideradas potências mundiais, são passivas e não demonstram posicionamento profundo, como em outras guerras modernas - até sobre a passividade no caso Israel-Palestina.

Percebo que Godard também utiliza muito das armas de fogo, de representações de conflitos como apenas brinquedos, como se os personagens, os adultos brincassem com essas arminhas, como crianças. E as guerras não são assim? Com homens velhos a regular, a controlar, a ordenar distantes da linha de frente por objetivos econômicos, sem a real dimensão da desgraça de cada frente, do saldo de cada bombardeio. Assim como na psicologia infantil, são nas brincadeiras que muito é demonstrado e pode ser interpretado.

Ao longo do filme, Godard defende a corrente maoísta, considerando os segmentos da esquerda europeia como reformistas, insuficientes, impotentes. O exemplo maior a ser estudado, segundo a demonstração do filme, é a China (até por isso leva o nome, A Chinesa).

O personagem de Jean Leaud e Veronique escutam um discurso, escutam música e que os comunistas devem combater em duas frentes, entre elas, a arte. Leaud anuncia que é difícil para ele fazer duas coisas de uma vez, só consegue uma. Veronique simula uma DR de casal, que não o ama mais, justifica e diz que ele entenderá. O exercício era para mostrar que ele consegue sim fazer duas coisas ao mesmo tempo, no caso foi entender a questão e ouvir música. Questionável resultado, pois às vezes abdicamos da atenção de uma música ou a rebaixamos para segundo plano enquanto nos dedicamos em cheio a algo mais urgente e relevante. Complicado atuar em duas frentes, mas fica o debate da cena.

Prossegue mais um debate sobre linguagem, o que envolve a exclusão do personagem loiro Henri na célula. Por dissidências, foi votada sua saída. Ele comenta o episódio enquanto prepara um café da manhã, ou coisa parecida. O debate sobre linguagem é interessante no sentido de que, para se expressarem, discursarem, pautarem uma revolução, deveriam os comunistas armas discursos, panfletos, anúncios e transcrições na mesma linguagem considerada burguesa, tradicional? Há como romper esse obstáculo rumo a uma libertação, a uma alternativa? São questões de estilo ou há como revolucionar dentro daquilo (a linguagem) que é consagrado, inteligível e usual? Henri acreditava na coexistência pacífica das formas distintas enquanto Veronique era mais radical, pelo rompimento total. A própria Veronique encontra um escritor em um trem e conversam para atualizarem-se. Ela comentam que seus inimigos são os generais, os burocratas (...) e os intelectuais reacionários - um grande grupo. O debate dela com o escritor no trem vai da ideia de Veronique fechar ou explodir as universidades, como a causa inicial do filme do membro da célula após ataque na Sorbonne. Veronique crê que a educação é reprodutora dos paradigmas das autoridades e contribui para o reacionarismo, por isso deseja fechá-las e intimidá-las, propondo até ataques a professores e estudantes, na intimidação aos demais. O escritor se posiciona contra, porque essa ideia é dela e de mais dois ou três, não é uma atitude geral e revolucionária. É diferente do atentado proposto por uma mulher argelina, Djamila, que explodiu um café, "mas em nome da revolução", enfatiza o escritor. "Você não pode fazer a revolução pelos outros", transmite em um sentido da necessidade de acompanhamento, de retaguarda. Veronique nisso deseja que para aplicar as teorias revolucionárias que tem aprendido, ela precisaria da prática e o exemplo descrito era o modelo dela de atuação necessária.

Nas contestações aos planos, o escritor afirma que uma revolução precisa de bases firmes para o prosseguimento, que apenas atos isolados ou tomadas de poder sem uma base forte e planos vigentes se tornam ações temporárias e interrompidas, com altos riscos de apreensões e retenções. Quando a palavra volta para Henri, ele destaca o marxismo como uma espécie de ciência, de método e que os argumentos para atuações da célula eram válidos, mas estavam bagunçados; considerava falta de métodos.

O filme encaminha seu final com o suicídio de Serge, um dos convidados à célula que tinha a missão de assassinar um ministro russo como protesto. Assim, a missão recai para Veronique. Enquanto isso, segue uma entrevista com o excluído Henri, que não sabia do suicídio de Serge, conforme revelou, e não sabia mais sobre os companheiros, ex-companheiros de célula. O personagem de Jean Leaud chega a aparecer como comerciante de verduras, um simples feirante, também deixando que por centavos as pessoas tentassem acertar legumes em sua cara, como aqueles games norte-americanos ou japoneses.

Com muita referência ao famoso livro vermelho de Mao e com uma trilha sonora que o homenageia, o filme A Chinesa chega ao fim com a dissolução da célula daqueles jovens franceses e o futuro sempre incerto das organizações comunistas. Seria a China um modelo a ser seguido? Pelo comunismo da época ou pelo destaque econômico de décadas seguintes? Questões.


Referência ao filme Alemanha Ano Zero, sobre o pós-Segunda Guerra









13/08/2025

2 ou 3 Coisas que Eu Sei Dela

O filme começa com uma breve explicação sobre Paris e investimentos que estão sendo feitos. É um tempo de modernização e a Paris cultural conhecida por todos, em parte capital europeia dessas transmissões culturais, também colide com uma Paris de prédios novos, retos, novas estradas, viadutos, bairros planejados e muito concreto. É um desvio geográfico significativo, em direção à ampliação e modernidade. Em meio a essas Paris, também em conflito estão a vida de muitas mulheres. A escolha aqui das análises por abordar 2 ou 3 Coisas que Eu Sei Dela (sobre Paris) antes dos filmes A Chinesa e Weekend, também feitos em 1967, se deve à proximidade deste com o filme analisado anteriormente, Masculine-Feminine.

No lado Feminine está a vida de Juliette Jeanson (Marina Vlady), uma moça que é esposa e tem filhos pequenos para criar. Ela é aspirante à atriz, mas as contas a serem pagas necessitam de maior urgência para os pagamentos. Enquanto deixa filha em creche, ela deve recorrer a outras formas de ganhar dinheiro. O panorama inicial do filme apresenta uma realidade para muitas mulheres naqueles tempos (e em tantos outros do porvir). Conhecer rapazes, engravidar, não contar mais com o responsável pai e ter de criar o primeiro filho de algum jeito. Não o bastante, conhece outro rapaz, engravida novamente e duplica a agressividade da tarefa pela sustentação.

Juliette Jeanson é a principal figura nessa transição de filme com a linguagem técnica das obras de Godard. Um narrador expõe fatos do cotidiano parisiense e os atores contracenam em uma forma complementar, na nuance entre ficções e realidades. Em um monólogo, enquanto experimenta e compra roupas, Vlady afirma que ninguém sabe como serão as cidades no futuro, mas que com certeza elas perderão do seu passado histórico. Previsão não muito difícil, mas acertada. Godard mais uma vez aposta na técnica narrativa em que as personagens olham para câmera e expõem seus discursos, com reflexões, citações e muitos monólogos. Contam as duas ou três coisas que se sabe.

Ao começo do filme, uma inserção política é marcante enquanto Juliette e o marido conversam. O marido está entretido com um amigo em uma missão de escutar uma rádio distante, praticamente um exercício de decodificação, pois o discurso é em inglês. O presidente Johnson conta sobre sua missão no Vietnã - assunto contemporâneo dos filmes godardianos. A justificativa é cômica. O Vietnã não queria negociar e os Estados Unidos atacavam, bombardeavam lá. Com muita tristeza Johnson afirmava isso. Não quiseram negociar e com muita tristeza teve de ordenar novos bombardeios. Novas investidas sobre Pequim e outras regiões da Ásia até o Vietnã aceitar negociar. Mas infelizmente teve de ordenar novas invasões do exército estadunidense, pois o Vietnã, veja bem, dessa vez, mesmo negociando, não aceitou um acordo conforme queriam. Qual outra escolha possível que não sejam novos ataques ou sanções?

Filho pequeno de Juliette apareceu em seu quarto e relatou um sonho. Eram gêmeos, duas pessoas que do nada se uniram formando uma única pessoa: eram Vietnã do Sul e Vietnã do Norte, mãe.

Juliette está iniciando em seu trabalho. É a realidade para muitas mulheres, incentivadas até pelos maridos ou companheiros para realizar o trottoir. É interceptada por um jovem cafetão que lhe oferece intermediação (e proteção) por apenas 10% do ganho. Ela nega, diz que a guerra acabou e que sua situação é passageira, é temporária. O narrador, enquanto a personagem mistura o café com uma pequena colher, filosofa sobre as falhas da comunicação. A falha em entender, em amar, em ser amado, em ser compreendido. E que cada falha assim acentua a solidão.
"Seguidamente me sinto culpado, mesmo sendo inocente. Todo evento altera minha vida diária."

As reflexões sugeridas pelo narrador são muito densas, mais do que o café ou do que costumaria ser um café com filme de Godard. Ele questiona a tecnologia, o dito progresso que faz com que o futuro seja uma ameaça, que galáxias distantes possam bater à nossa porta. Todos os pensamentos sobre adventos e sobre as limitações de linguagem, de mundo e de consciência ocorrem ainda no café, com a câmera a focar o interior de uma xícara. Um dos aprendizados que pode se sacar desse momento todo é que é possível e recomendável escutar bastante (aos outros, a possíveis sinais) para além do exercício da observação. Aulas.

Pausa do filme em 30 minutos*

A obra avança com imagens de construções em Paris e a atividade de Juliette e sua amiga Marianne como prostitutas. Godard demonstrava muita preocupação com a forma deplorável a que se submetem mulheres ao exercício dessa profissão, ao passo que procura as retratar na vivência, enquanto seres complexos, com suas ânsias, qualidades, defeitos, características plenamente humanas e não objetificadas.

Segue em curso também a preocupação com o uso da linguagem. O diretor está atento ao crescimento da importância da imagem, situação nunca mais posta em marcha reduzida. Isso só se acelerou até os tiktokers e a internet em pleno uso globalizado. A imagem é referência. Ele tenta descrever cenas, mas está óbvio que o trabalho que a amostra de imagens complementam onde a linguagem não consegue exprimir ou trazer precisão. É um debate muito sério da atualidade. Qual o futuro do rádio na era das imagens? Para onde ele vai além dos rádios nos carros e agora são controlados por bluetooth e pelas músicas escolhidas a dedo pelos ingressantes do veículo. Nem as rádios táxi entram em voga com o advento dos motoristas chamados por aplicativos móveis. As imagens dominam, na exibição, no espetáculo, no fetichismo. O audiovisual se sobrepõe de uma forma não antes vista. O ano era 1967. A Sociedade do Espetáculo de Guy Debord estava às portas de ser lançada. O ano era 1967 e os televisores, passado o tempo da ênfase do preto e branco, passavam a entrar nas casas já nas versões coloridas. Godard chega a brincar com isso. Se você não tem LSD, compre um televisor a cores - para efeito inebriante semelhante.

Muito mais do que sexo, essas mulheres atuam na divagação filosófica na trama. Paris é discutida com a métrica de com o podem ser consideradas, acolhidas, interpretadas e compartilhadas as cidades. Marianne acredita que tão importante quanto os elementos imóveis nas cidades são as passagens móveis: os cidadãos, o fluxo - e até, por que não? o trottoir desenvolvido por elas mesmas. A dupla de amigas recebe um estrangeiro norte-americano. "Você coloca os Estados Unidos acima de tudo" - se refere Marianne (onde já ouvimos esse lema?). Ele responde que é verdade, mas que eles têm, entre os méritos, as inscrições recentes do jeep e do napalm. 

Sem se unir à Marianne e ao norte-americano na consumação do ato, Juliette vê cartazes sobre a guerra do Vietnã e questiona como alguém na Europa de 1966 pode ter o pensamento em foco na Ásia. Como se importar com indivíduos que nem se conhece, apenas se imagina e idealiza? Godard demonstra muita preocupação com a Ásia. Com as guerras no Oriente Médio e Extremo Oriente. Sabe da quantidade de pessoas envolvidas, das grandes populações nesses países, da fome que assola a Índia. Ao mesmo tempo, nunca esquece da América do Sul e as ditaduras da época que corroíam os irmãos sul-americanos. Para além das críticas e do desejo pacifista contra o armamentismo e o capitalismo selvagem, Godard coloca no mapa dos olhares eurocêntricos esses espaços distantes. A guerra diretamente intimidante entre França e Argélia é fortemente abordada no filme O Pequeno Soldado. Nesse trecho de nova crítica à investida dos EUA contra o Vietnã, uma voz repete sobre as palavras de Juliette os dizeres "Amerika uber alles" ou acima de tudo. Frase que serviria anos depois para sátira da banda californiana Dead Kennedys contra seu próprio país. Na canção famosa, eles utilizam "Califórnia uber alles". Quais as diferenças entre líderes totalitaristas futuros e o bigode, além da quantidade de vítimas? E quantas vítimas eles poderiam fazer se assim pudessem? E como aponta recentemente o presidente colombiano Gustavo Petro: "são provas de poderio contra as periferias do mundo. E um dia estarão eles atacando eles mesmos", ou citação semelhante. O refúgio que se idealizava para Israel (será) se tornou opressor, totalitaristas e esmagador sobre as pessoas e terras palestinas.

"Você deve ser atenciosa com a embriaguez da vida."

"A poesia é para embelezar a vida ou é algo instrutivo? - Embelezar a vida é sempre algo instrutivo."

Outros personagens debatem em um restaurante, um bar com fliperama. São conversas entre homem e mulher com temas que vão desde a linguagem até a desinibição, o tabu que é falar abertamente sobre sexo. Se todos têm órgãos sexuais como há olhos, há bocas. A conversa, conforme as aspas anteriores, também giram por outras questões do sublime da vida. Godard desperta nessas filosofias também a forma como as conversas humanas costumam se construírem vulgares ou repetitivas, sem acréscimos ou reflexões. Explorar além na semântica e na pragmática quer evitar as limitações morais e sociais a que estão submetidos os seres humanos no dia a dia.

Os clientes do bar/restaurante/fliperama (com os ruídos da jogatina ao fundo) discutem sobre questões que podem ser pautadas, forjadas, baseadas na coragem, na vontade ou na competência (ou falta desses elementos). Questões do que se pode, do que se deve fazer ou não fazer, falar ou não falar. Atravessar valores morais, ser envolvidos pelos próprios ou contorná-los. Queremos falar e não podemos? Podemos falar e não queremos? Como atuam as ditaduras morais, os policiamentos ou autopoliciamentos? Questões à mesa, literalmente.

De volta para Juliette, no terraço de um conjunto habitacional, segue o raciocínio sobre dar nome às coisas, se podemos descrever as cenas, as imagens, a precisão e a particularidade das expressões por meio de palavras. As limitações desses fluxos da linguagem. É um filme bastante maduro de Godard, chegado o ano de 1967. Novamente penso na relação com os Beatles, o auge nos anos 1960, as transformações do mundo, o ápice desses movimentos artísticos, a passagem do som do rádio para compra desenfreada das televisões, o fetichismo pela mercadoria nova, o tecnológico, o imagético, as criação dos ídolos, das vedetes. Os Beatles que depois se separaram e nunca mais obtiveram carreira igual com bandas, tendo Paul McCartney a mais extensa, nas concentrações de sua própria figura como centro, enquanto Godard passou a filmes mais experimentais e novas técnicas nem sempre admiradas, nem sempre compreendidas, nem sempre facilmente digiridas, nem sempre inteligíveis à primeira vista, necessitando estar bem iniciado, bem inteirado, bem politizado para interagir com.

"Um rosto tem uma determinada expressão. Tem uma expressão particular." O quanto se pode descrever isso? O quanto as metáforas conseguem alcançar nas comparações? O quanto somos únicos em um universo tão vasto? 

Incessante fluxo no filme, mesmo aos minutos finais há muito assunto. A Paris e suas construções são contestadas com os novos conjuntos habitacionais que podem substituir antigos espaços para brincadeiras. A transformação das cidades, que passam a integrar condomínios como centros de recriação ao invés das ruas, dos parques. O aprisionamento atrás das grades dos prédios, as crianças pelas escadas sem espaços adequados de lazer - mais comum para edifícios menos planejados, em áreas menos planejados ou mais pobres, atualmente. Em uma conversa com seu filho, Juliette acompanha a leitura do dever de casa do menino. Ele considera a novidade do coleguismo entre meninos e meninas na escola. Acredita que é possível desenvolver amizade com algumas, mas com outras não. Esse assunto da amizade homem-mulher, extensão do filme anterior, Masculino-Feminino é um debate que pode ser iniciado na infância e não se encontra resposta precisa na fase adulta, com pessoas que acreditam na amizade e outras que apenas acreditam no interesse, seja na busca de conforto, de finança ou sexual. 

"Nossos pensamentos não são a realidade, mas uma das sombras da realidade."

As dúvidas finais (finalmente, neste longo capítulo): somente os autoconfiantes admitem falhar? Juliette discorda, e você?

O amor é falso quando as pessoas não mudam. No amor verdadeiro a pessoa que ama e a amada se transformam. Será?

Após tudo isso, Godard sugere propagandas e Hollywood que façam esquecer a guerra do Vietnã, do Iraque, a fome na Índia e os problemas habitacionais na própria Europa, na própria Paris, na sua própria casa de amores falsos ou verdadeiros. Fim.


12/08/2025

Masculine - Feminine (1966)

Não sei se porque são filmes revistos, mas sempre fica uma pulga por detrás da orelha de que já teria escrito sobre, em formato resenha, como aqui ocorre. Masculine-Feminine é um filme de 1966, e creio que é a terceira vez que o assisto. Componente da grade de programação do canal Telecine Cult, este filme de Jean Luc Godard pode ter sido encarado por mim algumas vezes também aos pedaços. A revisão agora é completa para satisfazer o interesse da proposta da resenha crítica. Diferente de outros filmes, talvez Masculine-Feminine tenha despertado mais na surpresa da primeira vista e tenha caído em elementos comuns a outros filmes nessa revisão. Escrevo isto enquanto acompanho o filme e os comentários seguintes vão ratificar ou retificar essa percepção.

O começo do filme em preto e branco é arrastado. Paul conhece Madeleine em um café, encontra um pretexto para lhe dirigir a palavra pela primeira vez. Ao reconhecê-la, pergunta pelo seu nome, menciona um amigo em comum e a possibilidade de um emprego. A crítica política é o forte desse filme, com a primeira entrega quando Paul (Jean Leaud) afirma ter prestado os meses de serviço militar obrigatório para o exército da França, se queixa da falta de lazer, de descanso, da solidão, da perda de contato com o mundo exterior e do excesso de ordens, obediência e imposição feitas pelos superiores aos jovens que, segundo ele, primeiro recebem esse tratamento do que opções culturais para criação.

Madeleine acompanha atenta ao discurso do jovem Paul. O amigo que eles têm em comum seria Dumas, que trabalha em um jornal. Paul não sabia ou faz que não sabia. Madeleine também já havia trabalhado em periódico, se dedicando às fotos.

Desde essa sequência do filme estão claros os posicionamentos políticos, como sindicalizados e comunistas. Em conversa com o amigo, Paul e ele concluem que a baixa adesão aos partidos ocorre porque ps trabalhadores têm jornadas de trabalho longas, apenas casa, comida e trabalho, sem tempo para dedicarem-se a mais estudos e lazer, muito menos a fazer política para justamente mudar essa realidade. Uma conclusão apontada na Europa de 1965, 20 anos após a conclusão, entre aspas, da Segunda Guerra Mundial (que teve desdobramentos, julgamentos e decisões mais tardar).

Entre a política, desde a manifestação da empregada que atira no patrão na saída do café na cena inicial, Godard encontra espaço para as conversas de casal com banalidades sempre involucradas em filosofia densa. Para um simples convite para sair entre Paul e Madeleine, se misturam questões do que os jovens pensam da vida, sobre como se sentiriam felizes, quais os limites a que se pode chegar e submeter a um primeiro encontro, quais são os limites das mentiras sociais que são contadas todos os dias para a digestão da convivência. A cena ocorre enquanto Madeleine está se maquiando e penteando seu cabelo. Godard estava sempre atento às nuances sociais sobre comportamento da juventude, atitudes, pensamentos, aberturas de espaço e oportunidades e feminismo. Seus filmes são memória viva, na ficção que imita, que segue lado a lado aos acontecimentos contemporâneos, a Nouvelle Vague da França sessentista, época de cisões e transformações.

Acoplados em saídas juntos e com um grupo de jovens militantes, encorajados e encorajadores para juventude da época, Paul e Madeleine partem em missões, seja de colocação de cartazes e dizeres pela cidade até pressionar a embaixada dos Estados Unidos com direito à pichação a carro e protestos para que largassem a injusta investida no Vietnã, combatentes do napalm. Durante cena, Paul e o amigo prestam abaixo-assinado para libertação de presos políticos no que dizia respeito ao Rio de Janeiro. Não era a primeira vez que o Brasil estava nos planos e nos assuntos de Godard, que também investia nesse como um destino para Bruno Forestier em O Pequeno Soldado, quando almejava deixar a França. É de se dar conta que quase sempre os personagens de Godard almejam fugas mal sucedidas, como em O Pequeno Soldado, O Desprezo, Acossado e Pierrot le Fou, atingindo o objetivo, aparentemente, ao final da prisão de Alphaville, contrariando a ideia de prisão de segurança máxima lançada por aquele universo distópico futurista.

Em cena no trem, Paul combina uma ação militante enquanto ouvem um diálogo inusitado. Uma loira está sentada em banco junto a dois negros e os três passam a se insultar. Enquanto ela chama os migrantes de assassinos em potencial, eles rebatem que ela seria apenas uma vagabunda com sonhos hollywoodianos. O preconceito racial é foco pelo que acontecia na Europa e nos Estados Unidos, sobre a dissolução de colônias africanas na independência de virarem países e o tratamento aos novos migrantes europeus.

"Não é a consciência do homem que determina a existência, mas a existência social que determina a consciência"

Enquanto isso, Madeleine e Paul não passam por bons momentos e ele questiona se deve mantê-la em sua vida, ao passo que também precisaria dela, por ser desalojado pela proprietária de seu apartamento, que o alugaria ao próprio sobrinho. Situações reais. O filme também é permeado pelo surrealismo. Entre as brincadeiras e cenas extravagantes. Paul implica com um jogador de pinball (Godard adora inserir o lazer da época com cenas em bares, mesas de sinuca, boliche e os novos fliperamas) e o jogador misterioso saca uma faca e o ameaça. Conforme Paul foge e sai da imagem, o rapaz, de cutillo em punho, esfaquea a si mesmo e é amparado pela volta de Paul. Surreal.

Madeleine começa a se afastar do estilo de vida de Paul ao alavancar uma carreira de cantora. Seu disco faz sucesso no Japão, atingindo as primeiras posições, o que também ocorria em casa. O relacionamento deles esfriava, mas prosseguia. A amiga de Madeleine, Elizabeth também interferia e tecia seus comentários negativos, em desaprovação ao andamento. Durante investidas e diálogos, a temática que aparece bastante nesta película é sobre os métodos anticoncepcionais, novidades cada vez mais introduzidas na época. Tanto a pílula quanto dispositivos internos de resolução cirúrgica eram afirmados e assim recomendados ou ao menos postos em pauta durante a trama que envolvia os personagens principais. 

Paul realiza uma entrevista com amiga de Madeleine a respeito de questões políticas e pauta a ocorrência de guerras pelo mundo, a preocupação com empregos e o controle de natalidade. Godard requenta temas entre um filme e outro, mantendo as pautas de seu interesse e, é claro, de interesse público à tona. Outro estilo narrativo presente nas obras é a introdução de notícias e de figuras em voga na época, por exemplo, para mencionar a temática da música pelo fato de Madeleine ser cantora, uma notícia sobre o sucesso de Bob Dylan aparece direto dos periódicos de papel.

Na cena do restaurante em que estão Paul, minimizado por Elizabeth ao afirmar, antes da chegada de Madeleine, que não havia chance dele com elas, porque não eram o tipo de garotas para ele e que ele ficaria sempre infeliz, o que revolta Paul, na cena do restaurante aparece uma sequência bastante forte sobre o título do filme. Apesar do título ter sido mencionado em uma brincadeira entre Paul e seu amigo, a questão do Feminino aparece em três momentos em sequência.

Madeleine recebeu discos autografados de presente, por sua carreira satisfatória e troca de contatos. Paul minimiza e tenta sempre sair por cima por um gosto musical refinado; ele é fã de música clássica e não das cantoras que estão fazendo sucesso nos anos 60. Parece não ser fã da própria namorada, não a admira e reconhece, apenas a quer manter de posse. Em uma das mesas do restaurante, Madeleine reconhece a mulher que assassinou o homem no começo do filme. Fofoca que ela agora trabalha de prostituta e, sendo prostituta, é continuada a cena com a negociação entre ela e o cliente. Propõem preços e situações diferentes, ela admite odiar os alemães porque seus pais morreram na Alemanha durante a guerra. Uma preocupação com o quão recente se foi e se esquece uma guerra devastadora para história da humanidade.

Em outra mesa, Brigitte Bardot, a princípio no papel de ela mesma, ensaia falas de uma peça, mas é totalmente submetida às instruções do arrogante diretor, que discursa sem parar e interfere na atuação da moça. São três mulheres submetidas em sequência ao machismo, à dominação, à imposição e à inferioridade em geral. Seja em um relacionamento com um partidário de esquerda, autoconsiderado progressista, seja na profissão mais antiga em que se submete ao cliente, seja na relação trabalhista enquanto profissional de atuação cênica. Três casos no mesmo restaurante, de forma escrachada ou velada para esta crítica.

A 1h15 de filme, aproximadamente, Paul e as amigas vão ao cinema. O filme em exibição mostra cenas de um relacionamento abusivo e com agressões inclusive físicas. Mais alertas para o objetivo da película. Apesar dos absurdos mostrados na tela, a inquietação de Paul é terem mudado o formato da transmissão e nisso ele se levanta rapidamente e, impositivo e pró-ativo, se dirige à sala de projeção para reclamar a mudança. Antes disso, vale a lembrança de sua ida ao banheiro, quando encontra um casal homossexual atrás de uma das portas, dentro de uma cabine, e, após urinar, o militante picha a porta com os dizeres "Abaixo à República de covardes".

Após Paul reclamar sobre as diretrizes e regulamentações da exibição de um filme em cinema de acordo com algum código que lê, ele sai da cabine de transmissão e picha um muro contra Charles de Gaulle. Alguns operários próximos ao local assistem à cena e um casal está a trocar carícias ao lado da parede, numa possível cena de prostituição, tudo à luz do dia. Ao retornar para o filme, cenas de violência sexual são sugeridas pelo ator que interpreta o homem com a mulher. Ele a pega de maneira agressiva e também a dirige a seu órgão para sexo oral. São cenas que desagradam aos personagens do filme de Godard, que ameaçam deixar a sessão.

Catherine-Isabelle, atriz que atua com seu próprio nome, amiga de Elizabeth e Madeleine, conversa com o amigo de Paul em uma cozinha. O amigo de Paul está muito interessado nela, mas não é recíproco. Ele desconfiava que a moça prefira Paul, que mantém o relacionamento capenga com Madeleine. Na sabatina à moça, são feitas perguntas sobre suas preferências, sobre sua vida sexual, sobre perspectivas e se ela se interessa pelas questões de política global. É interessante pensar que há poucos anos, no Brasil, perguntas do mesmo tom seriam totalmente estranhadas, enquanto pós 2013, por exemplo, a politização disparou no interesse de jovens e das redes sociais, com engajamento premeditados ou orgânicos. Na época, 1966, explorar tanto os assuntos políticos talvez soasse piegas para maioria dos jovens, que se politizariam mais nos anos a seguir. A cultural Paris e a França foram o berço do movimento conhecido como Maio de 68, abordado em outras críticas.

Bastante política se soma na parte final do filme. Paul está com Catherine-Isabelle na rua, um homem passa e pede fósforos. Ele rouba a caixa de Paul. Em seguida cumprimenta uma pessoa em um carro estacionado e pede para transferir bons votos às crianças. Ele retorna, estão em frente a um hospital dos "americanos", Paul o segue e tenta reaver a caixa de fósforos. Godard, muito esperto, não persegue essa cena e posiciona a câmera sobre a espera de Catherine. Paul volta nervoso que o homem havia se jogado gasolina e se incendiado. Catherine estranha que foi em frente ao hospital dos EUA. Paul informa que o homem deixou uma última mensagem em prol do Vietnã.

Em seguida, os jovens caminham em direção aos estúdios de música onde Madeleine ensaia as composições para seu novo disco. Ela inclusive é recebida por um repórter de rádio. Os Beatles aparecem novamente, pois Madeleine responde que eles e Bach são seus compositores favoritos. Na companhia de Catherine, Paul havia largado um raciocínio assaz interessante: "se mato um homem sou um assassino, se mato milhões sou um conquistador, se mato a todos sou Deus". Catherine apenas responde que não acredita em Deus.

O filme encaminha o encerramento com uma série de questionamentos que Paul fazia para um instituto de pesquisa e opiniões. As perguntas eram direcionadas aos franceses para saberem suas opiniões de comportamento, sobre interesse e entendimento da realidade política, com perguntas sobre o que é ser comunista, se sabem de guerra entre Iraque e o povo curdo, o que pensam das minissaias ou dos métodos contraceptivos. Paul conclui que as perguntas que eram para registrar o comportamento da população acabam perdendo o foco e objetivo principais para virar uma batalha de juízos de valor. Os ideais progressistas e conservadores seguem essas tendências até os dias atuais de 2025. Paul pensava que manipulava as pessoas na formulação das perguntas em rápidas trocas de assunto e que as pessoas em seguida o manipulavam com respostas falsas, infrutíferas e, portanto, improdutivas para o objetivo das pesquisas.

Em depoimento para polícia, as moças explicam o desfecho trágico de Paul. A mãe dele havia lhe conseguido dinheiro (os homens dependem das mulheres) para adquirir um apartamento. E conseguiu em uma área nobre de Paris. Madeleine, ao saber da notícia, quis morar junto dele, mas Paul recusou. Irônico que quando ele precisava de lugar para moradia contava com Madeleine. Quando adquiriu para si, a recusou. Como não há imagens do desfecho, apenas o depoimento das jovens, não se descarta que a morte de Paul, ao cair em um buraco, tenha sido acidental. A questão final é Madeleine Zimmer, grávida de Paul, saber o que faria com o filho que tem no ventre. Sendo dele, a criança sem o pai seria abortada ou não? O aborto é uma questão central das sociedades modernas, sobre a autonomia que a mulher possa ter, acima de questões tradicionais, religiosas e burocráticas, de decidir o futuro do que ela começa a produzir no ventre. Mesmo mulheres bastantes progressistas como Madeleine tinham total incerteza, insegurança e restrições ao futuro. O método que Elizabeth havia proposto a ela era inacreditável: agredir-se com um pau que sustenta cortina.

Fim.

Paul reclama do militarismo no começo do filme Masculino-Feminino. Apesar de não serem submetidas diretamente ao exército, as mulheres enfrentam outras formas de dominação, até pela atuação do próprio progressista Paul



A liberdade se mistura às suas incertezas

11/08/2025

Pierrot le Fou (1965)

Pierrot le Fou não era de meus filmes mais apreciados na filmografia de Jean Luc Godard. Mas a segunda vista é de novos olhares e experiências, assim como deve ser. A história começa devagar, na explicação de quem são nossos personagens. Ferdinand está a tomar banho e desenvolver seu hábito da leitura. Mais tarde se verá que gostaria de ser um escritor, mas está preso a um casamento com filhos pequenos e um trabalho burocrata, para burguesia. O tédio é evidente diante das limitações trancafiadas da vida. A oportunidade de uma aventura não será desperdiçada.

Para interagir com seu futuro empregador, na família do sogro, Ferdinand está em uma festa onde vê (ou, saberemos, no caso revê) a garota Marianne. Na oportunidade que se apossa deles, os dois formam uma dupla em disparada, no espírito dos road movies que ganhariam as telas pelo mundo. Até o próprio conhecidíssimo Easy Rider ainda não havia sido lançado. E Ferdinand e Marianne aprontaram o primeiro de outros golpes para cair na estrada. Ferdinand é sempre chamado pela garota como Pierrot e ele a corrige, sem demonstrar entusiasmo ou frustração (na maioria das vezes) : "meu nome é Ferdinand". Esse dialogo se repete inúmeras vezes, geralmente em trocas de cena ou de assunto, quando Marianne introduz uma nova perspectiva e adere ao uso do vocativo: Pierrot. "Meu nome é Ferdinand" é a resposta.

Nessa fase, Godard e sua cinematografia não poupam críticas ao fetiche aos carros. Na festa na casa do sogro de Ferdinand, são oferecidos drinks e assuntos assaz interessantes, como a velocidade que um Alfa Romeo (carro preferido da sátira godardiana) pode atingir em tantos segundos, relevância suprema que pode ser encontrada nas atuais rodas de conversa, em ambientes, digamos, mais pobres quando se perguntam a potência do motor de um carro ou quantos quilômetros o dito cujo consegue devorar por litro de combustível depositado. Godard também utiliza da acidez para recriar propagandas de produtos cosméticos e de higiene. O assunto entre a high society, injustamente desinteressante para Ferdinand, transcorre sobre adrenalinas-fetiches, produtos e aparência - nada muito diferente de 2025.

Durante a fuga com Marianne, eles têm a ideia de abandonarem o primeiro carro para evitarem uma perseguição bem sucedida por quem estava em suas caças. Assim, aproveitam de um acidente verdadeiro com vítimas expostas à beira da rodovia para estacionarem simplesmente o carro ao lado da tragédia e incendiarem tudo. Nesse planejamento que aparentava êxito, foi esquecido o dinheiro na valise no porta-luvas, tornando a aventura mais dramática pela continuidade da sobrevivência ao sabor de obcecado e imparável amor, na excitação pela estrada aos rumos de nova vida. Tanta promessa juvenil em um oferecimento caótico que um road movie pode trazer aos sonhos inocentes.

Godard satiriza o que por muito é considerado sublime. "Senti vontade de escrever um diário. Quem diante da natureza não sente a vontade de descrevê-la?" Assim ocorre desde a origem da literatura feita em terra brasileira, como a conhecida carta de Pero Vas de Caminha. Assim é orientada a literatura, nesse desbravamento, nos Sertões de Euclides da Cunha, nas paisagens cerradas, amazônicas ou pampeano-missioneiras, de Simões Lopes a Tiarajus, para se ater ao vasto Brasil.

À essa altura, há um deboche sobre as histórias, sobre os filmes de sobrevivência na natureza a qualquer custo. Sobre os urbanos que se deslocam realmente deslocados para áreas rurais, áreas remotas. Ferdinand afirma que estavam vivendo da natureza, da caça e da pesca, e na cena seguinte aparece dirigindo um trator com Marianne a reboque. O que será que Godard pensava sobre os programas que surgiram como Largados e Pelados?

"O escritor escolhe a liberdade dos outros."

O filme é permeado de literatura. Ferdinand é altamente preocupado com as manifestações culturais. Vale lembrar que em cena inicial ele estava a ler sobre o pintor espanhol Velásquez para sua pequena filha e que ela deveria se interessar por essa temática e ir ao cinema quantas vezes considerasse necessário. "Vivemos em um mundo de tolos", dizia ele sobre a criança que ele não queria que se tornasse parte do exército de tolos incultos.

Tomado de surrealismo, ou pelo menos muitos elementos surrealistas, está essa fase do cinema de Godard. No convívio com a natureza, Ferdinand e Marianne dividem ombro, refeição e espaço com animais dos mais exóticos, entre araras e pequenos mamíferos. Esses elementos, em recapitulação da memória, estão presentes em vários dos filmes de Jean Luc, mesmo que sejam pequenas pausas na realidade aflorada com momentos musicais e dançantes que quebram o ritmo e a seriedade do drama que poderiam ser/se tornar os filmes. O surrealismo era uma corrente respeitada na Europa, sendo impossibilitada a ausência de lembrança ao polêmico espanhol Luis Buñuel.

As brincadeiras com as linguagens são constantes. Quando Ferdinand questiona se Marianne o amava e não o deixaria, ela responde com a certeza: "sim, totalmente." Convicta, depois olha para câmera e repete o "sim, totalmente", mas com outro tom, que sugere a dúvida. Mas não é uma pergunta. É uma retórica ou, antes disso, uma tremenda brincadeira. Em seguida, na troca de cena a atriz passeia com os pés na água em afirmação de que não sabe o que fazer, mas também não tem o que fazer. A liberdade e o tédio lado a lado.

Depois, Ferdinand elabora um pensamento filosófico de que, quando uma pessoa espera pela outra, ao mesmo tempo o que era esperado só passa a existir, na casa em que a pessoa espera, quando esse cruza a porta, chegando ao recinto. Antes, tudo era pensamento, memória, desejo e suposição. Loucura aos casais que se divirtam com essa corrente de raciocínio.

Pausa do filme aos 50 minutos*

Godard passa de uma ode à natureza, com seus animais silvestres, árvores enormes em paisagens praticamente intocáveis para causar a provocação que foi um de seus principais temas dos anos 1965-1970, com a Guerra do Vietnã. Para arranjar algum dinheiro vivendo em meio à natureza, Ferdinand e Marianne resolvem engambelar turistas estrangeiros, que somente falavam inglês. Ferdinand debocha do sotaque e das gírias atarracadas dos gringos, enquanto os personagens principais simulam uma conversação entre um almirante da marinha dos States e uma jovem vietnamita, feita por Anna Karina, em uma provocante 'yellow face'. Com uma espécie de mímica, de teatro de marionetes, queimam fósforos sobre combustível; metáforas da guerra. Vale a citação de Made in USA de 1966, crítica maior em relação à arte fílmica produzida no país norte-americano. Outras aventuras godardianas focariam mais na política armamentista e nas escaladas de guerra, diretamente.

É até difícil acompanhar o ritmo de mudanças nesse filme de Godard (em outros também). Marianne entra em uma fase niilista, de negações, mas logo se preocupa com sua "linha vital" na palma da mão, uma crença desvairada. A resposta de Ferdinand é que se torna niilista, não ligando muito para essas crenças ou quaisquer outras. Próximos de serem apanhados, a dupla se separa. Ferdinand vai a um bar que tem, categoricamente, um carro estacionado entre as cadeiras, uma hippie que dança freneticamente ao som de uma jukebox, como uma previsão das raves, e Ferdinand pede dois chopps: "assim terei um para quando acabar o primeiro".

Antes de se dividirem e retomarem contato por telefone, Marianne havia dado palpite sobre o que Ferdinand deveria escrever, ele enquanto aspirante a escritor, que já estava, entre sua obsessão por livros, a escrever seu diário de convívio entre o amor e a natureza. "Escreva sobre um sujeito que anda por Paris e encontra a Morte. Ele tenta fugir da Morte, anda por tudo, e quando pensa que a driblou, é acidentado por um caminhão". Uma boa anedota.

Com a separação de Ferdinand e Marianne, a família da moça sequestra o rapaz e exige informações sobre o dinheiro que havia no carro (e eles queimaram) e o paradeiro da sobrinha. Godard repete as técnicas de tortura apresentadas em O Pequeno Soldado (1962), dessa vez com Ferdinand sendo submetido a afogamentos enquanto tem uma arma de fogo apontada para sua cabeça. O objetivo dos sequestradores é encontrar o paradeiro de Marianne.

Liberto dos sequestradores após indicar que Marianne deveria estar em uma boate, um dancing, porque ela queria dançar, Ferdinand perambula de volta até o litoral e apenas reclamava que era uma tarde terrível, sem mais o que exprimir. Dias depois, de emprego no cais embarcadouro, o surrealismo retorna com tudo ao aparecer uma dita princesa do Líbano com fantasias de perseguição e de realeza, que se protege das perseguições de metralhadora porque Alá a protege. A refugiada tem um ajudante chamado Alexis e apenas passa pelo filme enquanto Ferdinand está a comer um pedaço gigante de queijo; bem surrealista. Marianne vai retornar em seguida apresentando o que prometia, que também sabia escrever uns versos. Escreveu sobre Ferdinand, o chamando novamente, como sempre, de Pierrot, le Fou (a nominação do filme em cena, elemento comum de várias das obras de Godard).

O filme segue seu ritmo frenético entre denunciar a escalada dos EUA sobre o Vietnã, o tráfico de armas no Oriente Médio, ao citar a Guerra do Iêmen, e encontra espaço para jornadas de autodescoberta. Ferdinand e Marianne estão juntos novamente e fogem do embarcadouro com um barco, pois ainda eram procurados pela polícia pelo primeiro homicídio cometido antes da primeira fuga. Nessas perguntas de autodescrição, Ferdinand afirma que ele é "um ponto de interrogação diante do Mediterrâneo", enquanto a imagem abre em plano com o Mar e a civilização em construção civil ao fundo. Poético.

Um resumo do filme está em declaração a 1h30min: "com você (Marianne) tudo é complicado. Não, tudo é simples. É tudo ao mesmo tempo". Resumo da ópera da ensalada de assuntos. Mas que não ousem desqualificar o roteiro. São apenas muitas informações, mas não totalmente desconexas. Em verdade, na primeira vista, tratando-se de filmes de Godard, o erro que o espectador comete é: levar muito a sério. Esperar que os personagens tenham comportamento tradicional e não disruptivo. Em verdade eles vão sempre oferecer saídas estratégicas, improvisação, inovação, rebeldia, soluções distâncias do comportamento usual. É o surrealismo que dá cara ao holofote. Com esse aprendizado sobre os filmes de Jean Luc, o espectador fica preparado para as próximas jornadas estonteantes. É sempre fora da caixa, fora da casinha, propositalmente; oposição ao padrão, ao tradicional, ao consagrado e batido.

Para os últimos 20 minutos do filme, Ferdinand e Marianne aplicam um último golpe para reaverem dinheiro e planejarem uma fuga para ilhas do exterior. A surpresa é quando a moça não segue a parte do plano e aplica um golpe no fugitivo marido golpista. O desfecho trágico, pode-se afirmar, é bastante francês. O impacto da poesia está na última das tantas frases pronunciadas no filme: "encontramos a eternidade. É o encontro do sol com o mar", em uma bela paisagem que, se não cumpre o desejo, a expectativa após quase duas horas de filme, encerra poeticamente uma aventura à francesa, com o impacto do cinema a cores vibrantes, com muita sátira, filosofia, aventura, reviravoltas e críticas.





10/08/2025

Made in USA (1966)

Apontamentos sobre o filme:

1- as técnicas, sonoplastia, cores, roupas

2- diálogos e exagero com as mortes e armas de fogo

3- a crítica aos roteiros e execuções comerciais de Hollywood

4- as reviravoltas

5- o final sobre o fascismo

Extra: a comparação temporal entre Beatles e o cinema de Godard

Made in USA (1966) é uma das grandes obras de Godard, talvez subestimada frente a outros títulos. A ideia do filmmaker era principalmente desdenhar do cinema comercial e das propostas batidas apresentadas desde a época por Hollywood e os principais estúdios estadunidenses.

No filme, uma história clichê, como não poderia deixar de ser, de um crime, uma investigação, alguma reviravolta. A trama principal é a investigação de Paula sobre a morte de um affair chamado Richard. Para não ficar na mesmice, apesar das técnicas e comicidades que iremos comentar, Jean Luc Godard introduz fatores histórico-modernos na narrativa. O desaparecido/morto Richard era membro ativo e polêmico do Partido Comunista: elogiado por uns, perseguido por outros. Ao começo do filme, a camareira do hotel onde está Paula destaca: se os comunistas tivessem ganho a eleição, seria proibido o banjo. Conflito de classes apresentado.

Godard abusa de diálogos banais com tons forçados, frases repetidas dos clássicos norte-americanos. São falas com frases de efeito, jograis feitos entre os atores, apresentações ensaiadas e um jogo de câmeras que não é comum ao cinema de Jean Luc. A aparição de muitas armas dá o tom da investigação, de uma vida sob constante perigo, contornada e intermediada pela violência e pelas formas self services de resolução, com ou sem a atuação da lei (na intermediação policial).

As mortes desde a aparição de um intrometido no quarto de Paula, quando questionamos, de onde pode aparecer de repente um tipo desses, Paula o executa de forma cômica, com um sapato, em que ela pedia a vítima para escolher a cor da arma. Com sangue em tons muito falsos, Paula arrasta o corpo desse tiozinho, como uma autêntica cena repetitiva dos filmes hollywoodianos. É de se questionar como não cansamos (mas cansamos) de assistir a isso.

Por onde vai, Paula torna-se suspeita, é acompanhada de perto por investigadores e carrega sempre sua arma de fogo. A sonoplastia do filme é interessante, com efeitos exagerados, interrupções sonoras durante falas importantes, signo usado por Godard em filmes vindouros, como Weekend À Francesa (1967), que também será analisado durante esse apanhado de resenhas.

A figuração também é especial em relação ao que costuma apresentar Godard. Como é um dos seus primeiros filmes coloridos, o diretor exagera nas cores vibrantes, nas vestimentas forçadas e desenha personagens com personalidades e diálogos toscos. Uma das cenas cômicas ocorre em um café, em que o atendente, o barman Paullllll (como ele se autointitula) oferece charadas e troca palavras com um bêbado e Paula. A troca de olhares entre Paula e um dos atendentes que aparecerá mais na narrativa também é forçosamente proposital. É de se questionar o treinamento, o pedido e a formulação para os atores, ao invés de parecerem mais reais, como costuma ser, terem de parecer mais artificiais e zombeteiros para com a situação.

Anna Karina consegue manter o nível de suas atuações, como quando desempenhou a srta. Von Braun em Alphaville, filme lançado no ano anterior. Entre cenas mais marcantes do filme, nesses encontros em cafés ou com investigadores e a importância destinada a seus carros, destacam-se mais mortes forçadas, inclusive na brilhante ideia da encenação demorada e dramática até finalmente cair morto, e na ação de criminosos se escondendo entre arbustos e à vista de janelas.

Como apontado no início dessa resenha, a crítica ao cinema comercial e repetitivo de Hollywood é a grande arte e inovação no filme. Uma acidez, uma ousadia, uma elegância para infâmia, para o deboche, para ironia. Essa forma de paródia poderia ter despertado o cinema contra os padrões impostos e enfadonho; bem verdade, se a mesma paródia não fosse podada e totalmente encoberta pelos próprios investidores do que é criticado no filme de Godard. O remédio contra a crítica manifesta é re-elaborar mais antídotos que se sobreponham e silenciem a crítica. Produzir mais, manter a onda que encubra a mancha na indústria. Tanto funciona que a manutenção dos estúdios norte-americanos da produção industrial é soberana sobre as obras feitas pelo crítico diretor politizado.

Godard muitas vezes é um eco solitário contra a selvageria das ações impositoras, imperialistas que cegam linguagens, manifestos e doutrinam pessoas ao silenciamento, ao amanso, ao conhecimento só de uma cota limitada, ao permitido, impedindo a crítica, o questionamento, proibindo-os. 

Na parte final do filme, Godard mantém sua preocupação sobre escaladas fascistas, sombras do que centenariamente nunca deixa a Europa, o mundo. Desde antes do bigode austríaco, até... até enquanto o mundo for mundo. A barbárie, a imposição, as restrições sobre, o controle sobre, a dominância de uma classe sobre outras será sempre o estigma da realidade. Fazem-se adaptações, forja-se um pontilhado ou frágil progresso para aprisionar as classes sociais sob novas arestas, atrás de novas grades. Na parte final do filme, o assombro do fascismo sempre à mostra, ampliado, amplificado ou mesmo velado sobre as práticas do cinema convencional, às vezes brevemente questionado sob a figura de vilões, mas geralmente combatido por indivíduos dotados, especiais, neoliberais no combate. Esperar pela figura heroica, masculina e branca, preferencialmente, combater com suas próprias armas, com o uso e a resposta da violência como providenciais soluções. Vencer a disputa contra "o mal" e dirigir rumo ao pôr do sol ou céu azul com um final decididamente feliz. Sob essa custódia, não criticar os líderes globais, suas empresas e muito menos aos patrocinadores, financiadores comerciais do cinema comercial. Apresentar as marcas e as mensagens subliminares para o público. No final, o produto deve ser a venda sobrepondo-se à arte, ao argumento, à filosofia, às intenções humanas.




Como palhinha sobre a época, estive pensando sobre o ápice da Nouvelle Vague questionadora do cinema de vanguarda europeu enquanto vivia-se a Beatlemania, do rock n roll revolucionário, de pedidos de paz e boas mensagens transmitidas até o esvaziamento cultural do enchimento e preenchimento de estádios para ouvirem-se gritos. Nos Estados Unidos da América, sobretudo. Turnês esvaziadas de significado que passaram a frustrar e ameaçar os próprios Beatles. Tanto é que fecharam-se nos estúdios para produzir música e pararam de se apresentar ao vivo. Vi por aí (ótima fonte essa) que Godard havia criticado a beatlemania enquanto vedetes sem questionamentos maiores. Os Beatles não se pronunciaram politicamente, ou muito menos do que poderiam. Também aponta-se que uma recusa causou o filme de Godard envolvendo os Rolling Stones ainda nos anos 1960, com o especial Sympathy for the Devil. Em rebate, Godard teria questionado os Beatles sobre o sumiço das apresentações e apontado que fazer um show em um telhado era uma inovação e tanto, antes proposta por outra banda.

Se a ideia da crítica de Made in USA é apontar as limitações e sujeições de uma indústria de cinema, sobre os Beatles a crítica de Godard também poderia pairar sobre apolitização, sociedade corrompida a partir da máxima do dinheiro e a idolatria acrítica e descontrolada das pessoas acerca dessa estrondosa mania. Apenas um parênteses sobre dois fenômenos dos mais importantes mundialmente a respeito da década de 1960: as canções dos Beatles (e do rock inglês em geral) e os filmes de Godard (com outras exibições do cinema francês em geral). É possível aprofundar o tema, por exemplo, expressando ano a ano as nuances, contribuições, a forma disruptiva, antagônica ou convencional do papel desses artistas, na aplicação da arte e seu valor: a transformação social. A transformação social vista sob duas óticas: a atingida e a almejada. Um tema e tanto.





09/08/2025

Uma Mulher Casada (1964)

Ao contrário da análise positiva de Alphaville, Uma Mulher Casada talvez seja um dos filmes que menos gosto da filmografia de Godard durante a era da Nouvelle Vague. Este filme é de 1964 e conta a história de Charlotte, uma jovem esposa dividida entre dois homens: seu marido oficial, Pierre, e o amante, Robert. Ela é madrasta do pequeno Nicholas, filho do primeiro casamento de Pierre.

Seus pretendentes são mais velhos. Pierre é piloto de avião e constantemente está fora da cidade no exercício da profissão. Robert também tem de tirar dias fora, porque é ator de teatro. Charlotte vive à espera das viagens de Pierre para manter seu relacionamento extra-conjugal. Das suas poucas tarefas é manter o garoto Nicholas sendo buscado diariamente da escola.

Entre tantos elogios feitos recentemente aos filmes de Jean Luc Godard, este não é dos mais chamativos, explicando o porquê: não há filosofia mais densa e trabalhada, não há um roteiro cativante com as personagens, as atuações também não chegam a ser memoráveis ou divinas, não há acontecimentos que suscitem a trama em ação ou grandes suspenses. É um drama bastante morno, mas procuraremos atingir o objetivo de elencar pontos do filme.

Godard consegue mesclar seu gosto pela História ao pontuar uma viagem de Pierre, que passou da Alemanha a Auschwitz, na Polônia, local do maior campo de concentração da Segunda Guerra. O assunto permeia o filme. Em um dos encontros clandestinos de Charlotte com Robert, o destino é uma acanhada sala de cinema, precisamente na poltrona 12, quando a sessão de filme era referente à Segunda Guerra Mundial, e especificamente sobre os campos de concentração e suas aparências normais para os cidadãos que pudessem ver apenas de longe, de fora. É uma coincidência, pois Robert não tinha acesso a esse assunto que Charlotte travou com Pierre.

A trama do filme se desenvolve do meio para o final. Charlotte estava marcando consultas médicas e com a suspeita de uma gravidez. Ela descobre estar grávida em andamento, de três meses. Na hora, o espectador já fórmula a única pergunta possível: de quem será o filho? Há uma esperança de que a própria Charlotte tenha a resposta, mas adiantamos que ela não tem. Portanto, a dúvida é levada até o final do filme. Poderia ela, nessas escapadas, ter um cálculo mais preciso de com quem tenha dormido nesse tempo, mas durante o filme é provado que ela poderia estar até mesmo com os dois pretendentes em um único dia. Na manhã com Robert e à noite com Pierre, de volta de viagem.

Em visita a amigos de Pierre, a filosofia corre um pouco à solta no filme, mas entende-se que não com a profundidade de outras obras de Jean Luc. O objetivo maior do filme é entender a cabeça - e nela a bagunça - da situação entre um marido que tem um filho pequeno de outro casamento e almeja ter um filho de Charlotte, a cabeça da própria Charlotte, dividida entre os dois compromissos, e o bom vivente Roberto, sem a responsabilidade familiar e tentando alavancar sua vida de ator. Segundo ele, nunca foi casado. É um que dispensa compromissos do tipo.

A liberdade de escolha de Charlotte, à mostra da possível traição feminina, chocante aos olhos de 1964, são temas que podem ser mais reveladores, nesse olhar retrospectivo. Vale a lembrança, como outras análises por mim feitas, sobre os casamentos arranjados que perpassam tantas culturas pelo mundo em pleno 2025. Trata-se então de uma realidade francesa e europeia em plena década de 1960.

O feminismo aparece em algumas cenas do centro da trama. Charlotte frequentava uma piscina, de um clube ou pública, mas indiferente. Ali, tinha amigas e também passou a escutar a conversa de mulheres mais jovens, iniciando a vida sexual. Uma das adolescentes aconselhava a outra sobre como seria a experiência, sobre despir ou não, manter luzes acesas ou não, algum comportamento corporal de um jeito ou de outro. Charlotte escutava com a nostalgia de quem há muito estava iniciada e agora com compromissos maiores, tanto com o cônjuge, o cuidado com o enteado e o planejamento do que estaria por vir. Em meio a essas conversas, assuntos de penteado, de vestimentas e de signos do horóscopo, novidades e assuntos clássicos do que se considera moda feminina.

Em casa, com a empregada doméstica, com a madame da qual esquecemos o nome, Charlotte também desenvolve conversa a respeito de relacionamentos, modernidade e aparência. Apesar de sua beleza definitiva, a personagem principal estava incomodada com o tamanho de seus seios, preocupação e pressão julgadas sobre as mulheres e suas aparências. Revistas femininas, conceito que se estendeu por décadas nos salões de beleza e salas de espera, erguiam métodos capazes de corrigir postura, aumentar as mamas, etc.

É de se pensar por esse lado também a diferença de classes e do feminismo na época, entre madames que tinham a possibilidade de escolha, enquanto outras simplesmente as serviam em emprego, ou lutavam por direitos contra preconceitos raciais, por exemplo. A conhecida diferença entre feminismo branco e feminismo negro; lugar de fala acentuado para época (imaginem só em Estados Unidos, por exemplo). Em depoimento da empregada, sabatinada em perguntas sobre como era seu relacionamento em casa, ela reclama que os homens muitas vezes reduzem a relação ao sexo; assim, ela precisa fingir para manter tudo bem - é a falta de direito de escolha, de autonomia sobre o corpo sendo transmitida nesse depoimento. Ao final, porém, talvez sintoma também de suas limitações de perspectiva, educação sexual e lazer, a empregada opina que essa forma de amor é a única verdade na vida, e, quando considerado o todo, é um remédio contra apatia.

Interessante que, após esses depoimentos, chega a hora da revelação no consultório médico: Charlotte descobre definitivamente que está grávida. Ela aplica uma sabatina ao doutor sobre aspectos, por exemplo, do prazer que uma mulher pode sentir, e se ele, o médico, poderia ajudar a descobrir de quem seria o filho. Em depoimento que pode ser considerado contínuo à situação das muitas empregadas domésticas e mulheres e casais de classes sociais mais baixas: Charlotte pergunta sobre o controle da natalidade. O ano, lembrem-se, era 1964, e a explanação do médico é mais um trunfo de Godard para antecipar problemáticas do mundo atual. Por enquanto não havia necessidade do controle de natalidade, mas este poderia vir a ser um grave problema. Assim foi e é em alguns países (como não lembrar o caso da China acima de bilhão de habitantes e como isso vem à tona para Índias, Bangladesh e Paquistão, e também para realidade de países da África). Enquanto Europa e regiões das Américas viviam a expansão das famílias amparadas pela medicina que reduzia a mortalidade infantil, hoje essas mesmas regiões do globo já apresentam quedas vertiginosas no número de filhos por mulher.

A situação da classe média em que Pierre tinha o único filho pequeno Nicholas, Robert não era pai e Charlotte passava a esperar o seu primogênito, demonstra já uma sociedade europeia bastante desenvolta em planejamentos. Situação recorrente à zona urbana, enquanto os rurais ainda possuíam maior natalidade com os cuidados das muitas tarefas do campo. Observação que pode sim ser retomada ao Brasil, com o habitual atraso de décadas, mas com resultados inclusive semelhantes.

Enfim, apesar da obra Uma Mulher Casada não ser da magnificência a que Godard nos acostuma, ela tem sim pontos altos que refletem o comportamento, os debates e as discussões da época. Godard era mestre em inserir nos diálogos banais, nos vazios, números, notícias, novidades, tópicos de interesse da sociedade e que garantem, passado mais de meio século, uma contemporaneidade clássica, um achado, um apanhado de informações ricas e dignas da época, objeto de estudo sedutor para acompanhar o desenvolvimento e os peculiares caminhos da humanidade.


Cenas sensuais são comuns em Uma Mulher Casada (1964)
Olhar crítico de 2025 deve entender as nuances e novidades apresentadas por Godard de forma ousada às telas da época.


08/08/2025

Alphaville (1965)

Alphaville talvez seja meu filme favorito de Godard. E o talvez aqui ainda é totalmente humano. Alphaville é um lugar robotizado no futuro, onde o controle sobre os cidadãos e as mentes é total e as pessoas são ou condicionadas à tecnologia ou eliminadas. O lugar obedece à lógica das máquinas e tudo é programado. Desde a chegada do estrangeiro Lemmy Caution em um hotel, a recepção é feita por sedutoras programadas. "Sedutoras de nível 3."

Godard usa elementos sutis ou não para expressar sua preocupação com a sociedade futura. A eliminação de estrangeiros e o seu controle total. Quem não se adaptar à tecnologia e às ordens da lógica será eliminado. Até a forma de eliminação é calculada e tem bases, por exemplo, na solução final contra os judeus na Segunda Guerra. Ao invés da frieza das manipuladas câmaras de gás, as pessoas seriam eliminadas em um teatro enquanto assistissem a uma apresentação qualquer.

O Alpha 60 é o grande cérebro programado para controlar Alphaville. Godard está atento às artimanhas das guerras. Em certo momento, enquanto Caution, jornalista estrangeiro, está conhecendo as estruturas do colossal Alpha 60, o recepcionista afirma que os Países Exteriores em breve entrarão em guerra com Alphaville, então, pela lógica programada, Alphaville resolveu invadi-los antes que isso ocorra. É a lógica e a disputa e o interesse que, por exemplo, os Estados Unidos usam no plano global a várias décadas, seja para justificar obtenção de petróleo, seja para intervir em questões ideológicas, como ocorreu na busca por recursos em Guatemala, Honduras, Nicarágua, embargo a Cuba, guerra em Vietnã, Camboja, intervenção na África em Ruanda, Angola, Líbia, ditaduras na América do Sul e assim por diante.

Alphaville demonstra a preocupação com o estrangeiro, com o que não se adapte. Eles dizem respeitar, precisar dos cérebros mais fortes e ao mesmo tempo temê-los. É a linha tênue entre a necessidade do controle desses ou eliminá-los. É uma sociedade mecanizada, onde a Bíblia está presente nos quartos de hóspedes em hotel e assim se imagina, se conclui que a teocracia estaria por tudo. Também no quarto de Cautton é apresentada a forma como as pessoas lidarão com a saúde no futuro: "os tranquilizantes estão no banheiro, senhor". Não é se você precisar, senhor. É óbvio que você vai precisar. A sociedade não tem como se sustentar sem esses medicamentos de uso controlado.

Godard sempre foi muito cuidadoso nos usos da linguagem, desde seus primeiros filmes. Experiência que ele vai ampliar ao longo da carreira até seus últimos filmes, mais técnicos, documentais. Em Alphaville, foi abolido o uso da pergunta "por quê?". Caution, enquanto jornalista estrangeiro, está acostumado a investigar e utilizar esse interrogativo. Já os cidadãos na Alphaville sequer reconhecem o significado do por quê. Um dos receptores para Cautton explica que não se usa mais "por quê" e sim apenas "para quê", porque tudo é guiado pelo objetivo, pela causa e pela consequência. É a lógica que controla e subverte qualquer saída dela. É interessante pensar que na mesma década, apenas dois anos após seria lançado o livro com tantos aforismas e pensamentos acerca disso, A Sociedade do Espetáculo, do também francês Guy Debord.

Durante o filme e suas investigações, Lemmy Caution é inquerido em diferentes interrogatórios, quando querem saber sobre seu passado e sentimentos. Os sentimentos, obviamente, também foram abolidos de Alphaville. Seduções e atos sexuais também são programados como tarefas das mais banais. Durante suas ações, Caution chega a excursionar com uma tentativa de nome falso: Ivan Johnson (algo até enfadonho e repetitivo, como um nome comum dos russos, mas com uma mistura proposital).

"Desde que está aqui, não entendo o que está acontecendo", afirma Natasha von Braun (Anna Karina), demonstrando que Lemmy Caution causa esse efeito na programada cidade de Alphaville: confusão, sentimentos humanos. Caution questiona Natasha sobre literatura e sobre conhecimentos básicos que parecem banais a nosso mundo, mas que em Alphaville foram abolidos.

Ao início do filme, Lemmy encontra Henry Dickinson, que conta que são comuns os suicídios. "E o que acontece com quem não se adapta e não se suicida?" Bom, aí eles te matam. Soa como uma ditadura, não é? Natasha von Braun é a filha do mentor Dr. von Braun. Palavras de sua lembrança foram eliminadas. Em comum com a Novilíngua do 1984 de George Orwell, em Alphaville também se proibem e eliminam palavras. Em Alphaville, a Bíblia e o Dicionário podem ser a mesma coisa na busca por respostas. A população não diferencia um desses livros do outro. No Dicionário as palavras somem e são abduzidas ou adaptadas, reprogramadas. Consciência é uma palavra inexistente. Ninguém deve pensar nela. Ternura também foi abduzida. São repaginadas em comum com os ministérios organizados na sociedade oceânica do 1984.

"O que faz com que a madrugada se ilumine?" A Poesia. A Poesia foi abolida. Até havia escritores, mas eles vivem na Zona Proibida (novamente em comum com 1984), "escreviam coisas incompreensíveis". Usam das palavras proibidas e dos sentimentos. Godard sempre quebra momentos de tensões com anedotas sejam mais ou sejam menos conhecidas. São casos de folclore, ditados populares ou provérbios de diferentes culturas. Alphaville quer controlar todos esses testemunhos. "Farei os cálculos necessários para não existir fracasso", afirma o poderoso Alpha 60. "Pois eu lutarei para que o fracasso exista", rebate Lemmy Caution.

"Você tem ideias estranhas, sr. Caution", afirma o professor von Braun. "Seriam consideradas sublimes na era das ideias. Mas em breve homens como você não existirão mais. Serão convertidos em algo pior do que a morte. Serão lendas", dando a entender que caíriam na vala comum do esquecimento, da eliminação. Um dos métodos sublimes apresentados no filme, no limiar cômico, é uma forma de eliminação dos inimigos do Estado que consistia em posicioná-los em uma cerimônia sobre um trampolim de piscina, deixá-los recitar suas últimas palavras e serem baleados, como um paredão de fuzilamento, mas artisticamente à beira da piscina. Um grupo de mulheres como a um nado sincronizado recolhia os corpos recém caídos na água. Métodos de tortura e execução, sem perder o brilho. A referida Sociedade do Espetáculo.

Entre quem poderia ser adaptado, selecionado, recrutado à sociedade de Alphaville, Godard levanta a crítica de que muitas vezes os selecionáveis eram alemães, suecos, norte-americanos. Será o preconceito daquela sociedade em favor dos que se trocam prêmios Nobel a cada ano, ou serão esses mais adaptáveis pela frieza sentimental? Perguntar não consolida a acusação.

Este filme de Godard é bem completo aos objetivos quando revista sua obra. Tem ação, tem suspense, tem altas doses de sua vasta filosofia, tem ideias distópicas, tem humor, tem o drama com disfarce/espaço a romance, tem a pesada crítica sobre as sociedades daquela guerra fria e com projeção ao futuro da inteligência artificial.

Ao começar a crítica de Alphaville, o foco seria a inteligência artificial, que está atingindo o ápice de desenvolvimento e preocupação agora pelos 2020 e poucos, rumo a 2030. Robotização, programação, substituição, algoritmos, subtração das importâncias culturais, desemprego. O final é especial, quando tenta salvar Natasha von Braun e ela tem dificuldade de proferir as palavras que deseja, do fundo de sua alma, Lemmy afirma que só ela poderá dizer o que quer, ou estará morta como os demais mecanizados de Alphaville. Será essa a crítica derradeira de uma sociedade que se comporta à luz da Inteligência Artificial e esquece de pensar, esquece de interpretar, esquece de raciocinar, esquece de sentir por si. Necessita de aspectos programados para responder simples (ou não tão simples) perguntas. Como você se sente?

Bando à Parte (1964)

Bando à Parte é mais um filme de Jean Luc Godard lançado em 1964, em uma fase muito trabalhadora do então jovem diretor francês. A cinematografia é assinada pelo camarada Raoul Coutard. Bando à Parte conta a história de um trio. São dois jovens trambiqueiros que tentam convencer uma simples moça, trabalhadora e estudante, a roubar o alto dinheiro de seus patrões, com os quais ela mora; e depois zarparem, fugirem, caírem fora.

Odile está apaixonada por Franz, um dos capangas, que, juntamente com Arthur, quer arquitetar o audacioso golpe. Franz e Odile (Anna Karina) se conheceram em aulas de inglês. Godard debocha do ensino da língua estrangeira, sobre a metodologia das aulas e o comportamento infantil dos estudantes, mesmo todos eles sendo adultos. Flertes e bobajadas acontecem durante a aula. Nos intervalos, Franz investe sobre Odile e Arthur aparece para compor o trio em busca do grande assalto.

É um filme que satiriza as técnicas de Hollywood, as histórias de grandes grupos, gangues e roubos. A técnica narrativa de Godard é cômica, chegando a propor um minuto de silêncio no meio do filme, quando o trio de reúne em um bar, e também uma pausa bem humorada para dança, avançando o tempo do filme.

O satírico também está nos personagens, com Odile muito inocente e pueril, tomando rumo e convencida a participar do roubo apenas com muita técnica e crueldade dos demais rapazes. Os patrões da jovem também são satirizados de modo que a Madame Victoria e o senhor que guardavam o almejado dinheiro seriam queixos elevados, sendo ele um sonegador de impostos, segundo Odile. O fato de ser um sonegador dificultaria que o patrão abrisse caso com a polícia para reaver a quantia do roubo.

Godard propõe uma reflexão na imagem que ilustra este capítulo em resenha, uma vez que debocha de uma possível queda de importância do idioma inglês, o que até passa a acontecer na modernidade com a ascensão da economia e da relevância da China e do Mandarim pelo mundo. Por que estudar inglês e não mandarim? O diretor sempre abria espaços no roteiro para inserções de sua preferência política e críticas à sociedade burguesa europeia. A história de Bando à Parte é uma história de safadeza, mas também um conflito de classes, de gerações. A história do planejamento e da execução final de um roubo repleto de momentos de tensão e comicidade. Não é um dos meus favoritos da vasta obra de Jean Luc, mas fica o registro da ficha de leitura a respeito desse filme de 1964, este realizado ainda em preto e branco.