31/01/2024

Quem quem quem

Quem nos aguenta?

Nós literários

No tempo do glitter 

Quem nos tem horário?


Quem nos lê,

Repensa?

Ou só avança

Imensa 

Distribuição de palavras


Larvas e sementes

Patentes

Registre sua marca

Evite pirataria 


Quem quer receber

"Bom dia"

Quando seu dia já não é bom?

Quem quer receber

"Bom dia"

Somente por obrigação?


Quem quer receber 

Em dia 

Até a ilusão do dia quinto

Um dinheiro tão finito 

Quanto o mito de viver

Sem poesia

25/01/2024

Enquanto estou imaginando, não estou vendo o que está acontecendo. Isso pode ser bom ou ruim.

18/01/2024

Entre minha tia, Pierre Goldman e Petzold

Chove de leve ali fora, do outro lado da janela. São 3h30 da manhã quando inicio o texto. Provavelmente serão pelas quatro quando encerrarei. Aguardo pela minha tia, que vem a Santa Catarina. Este a sem crase. Vou a Santa Catarina. Volto de Santa Catarina. Estou lendo um livro de um Judeu chamado Pierre Goldman. Ele era filho de poloneses, mas nasceu em Lyon, na França. Por isso o livro se chama Lembranças Obacuras de um Judeu Nascido na França.

Ele aborda o preconceito racial e os conflitos armados que permearam toda sua vida. Um erro de grafia no livro é assalto à mão armada, que leva crase, mas a cada citação no livro não há o sinal gráfico. Irrelevâncias. Escrevo a partir do meu celular. Sinto fome, mas não quero correr o risco de interromper o sono de meus pais, talvez a coisa mais preciosa que eu zele em vida, porque sei o quanto meu pai é esforçado quando acordado e merece repouso. Minha mãe passa o dia seguinte muito debilitada quando dorme mal. Eles merecem dormir bem. Não saio do quarto para comer algo para não correr o risco de cortar o sono deles. Mesmo sabendo que a aproximação de minha tia na rodoviária fará com que ela emita uma mensagem e acorde minha mãe. E meu pai a busque na rodoviária. Eu de metido insone devo ir junto de acompanhante.

Escrevo a partir do meu celular com o carregador não original, que fica acusando o mau contato entre dispositivo e aparelho. Raios.

Pierre Goldman se defendeu de tribunais injustos que imputiram assassinatos, homicídios em sua ficha criminal, que, segundo a vítima do sistema, deveria constar apenas de assaltos, quando nem fazia uso das referidas armas. Goldman fez contato com homens das Antilhas, congoleses, haitianos e demais latino-americanos. O livro tem tudo a ver com o clima pós segunda guerra. Goldman era um Judeu não pertencente ao país de seus pais, uma Polônia cada vez mais antissemita, barril de pólvora entre sovietes e anti-stalinistas. Também nunca foi um francês, sofrendo o preconceito racial por ser considerado um estrangeiro judeu. Engraçado que quando foi para os Estados Unidos, em uma passagem de navio, trabalhando para um comandante noruegueses, nos EUA, Goldman era visto como "o francês". As coisas mudam.

Minha tia conviveu no mesmo apartamento comigo no fim de 2022. Me ajudou em um período difícil de minha longa doença, quando eu não conseguia evacuar direito, pelo mau funcionamento de meu intestino, que não absorve mais vitaminas como deveria (atualmente tenho reforçado vitamina B oralmente, mas já levei injeções também em outros tempos).

A vinda de minha tia, que voltou a morar em Pelotas mesmo após a insistência de meus pais que ela ficasse em Santa Catarina, a vinda dela tornou-se um evento importante de meu verão. Estou muito isolado, sem amigos por aqui. Ter a companhia de minha tia pode me fazer bem. Deixo aberta a possibilidade disso. Me faz lembrar perspectivas quando, por exemplo, o volante Jailson saiu do Grêmio e não era assim dos mais importantes. Tempos depois a qualidade de elenco recaiu e a torcida esteve em polvorosa para que ele voltasse, o que nunca ocorreu. Fez campanhas e títulos pelo Palmeiras. Além dele, lembro o caso de Rafael Carioca. Ou até Douglas Costa, que viria como salvador. Maior desperdício da história que já vi no futebol brasileiro. Perspectivas.

Pois a perspectiva de minha tia próxima a mim, pessoa da qual nunca fui tão ligado, aumenta na medida em que não tenho outras pessoas com quem contar. E assim devo me acostumar por idade ou distância, ou rotinas atarefadas dos demais, ou menos tempo ou menos grana para disporem conosco. Nos viremos.

Além do livro de Pierre Goldman, a ver com o assunto, os últimos filmes de Christian Petzold, talvez o cineasta alemão que eu mais goste, escalando posição preciosa entre todos os europeus (estou acompanhando toda filmografia dele). Petzold dedicou os últimos anos a filmes com referências de segunda guerra mundial, a exemplo de Phoenix e agora Transit, o qual estou assistindo. Parei e aqui escrevo. Em Transit, traduzido como Em Trânsito, o personagem foge pela França cada vez mais ocupada pelos nazistas, necessitando de passaportes falsos, desculpas, dinheiro e muita desenvoltura. O interessante deste filme, além da troca de identidade com o escritor que se matou no início da trama, o interessante é que Petzold não se preocupou em ocultar os novos carros e as novas ruas francesas ou alemãs. Adaptou um filme de segunda guerra em um mundo como podemos presenciar em cenários dos anos 2020. O filme ainda dispõe de cartas, luminárias, trens (?), mas também há carros modernos e ruas que não escondem o avanço tecnológico pelo qual passamos.

Por fim, gostaria de afirmar que gosto muito dos heróis das tramas de Petzold, pessoas comuns e muitas vezes entricheiradas entre escolhas, além do bem e do mal. Diferença sagaz, preciosa em relação aos mais vistos de Hollywood, em personagens que despertam apenas admiração ou raiva, ufanismo demasiado, leitura rasa. Nos filmes de Petzold somos convidados a pensar em situações cotidianas e ao mesmo tempo extremas: o que eu faria naquela situação? Preciso roubar? Preciso fugir? Preciso amar? Preciso abandonar? Preciso aplicar um golpe? Preciso fugir das autoridades? Quem tem a razão, tão mutável e movediça, tão escamoteada e fugidia? Assim acompanharmos os últimos minutos do filme Transit, para descobrir se nosso protagonista ficará ao lado da família que encontrou pelo caminho ou fugirá com o passaporte que está encaminhado, concedido para iniciar uma nova vida não nos Estados Unidos, mas no México. 

O que será que Pierre Goldman escolheria se fosse ele no papel principal não do livro biográfico de sua vida, mas nesta interessante trama do filme de Petzold? Goldman que, ao largo do livro parece querer se livrar da morte - que o perseguia em pensamentos e ações desde a infância-, justamente por um amor distante, de uma antilhana distante, no tropical caribenho, encontra uma desculpa para manter-se vigilante no sonho de libertar-se da prisão e continuar combatendo, talvez ao lado das diversas organizações comunistas estudantis das quais fez parte, ou deseja apenas uma vida em calmaria, mais justa e menos ambiciosa. O que escolher para salvação e continuação quando os caminhos se entrecruzam e as soluções não são tremendamente iluminadas e dispostas como a facilidade de escolher um ingrediente nas gôndolas do supermercado ou um livro de uma estante?

Assim vivemos entre liberdades e aprisionamentos e eu, enquanto ainda chove, e passam das prometidas quatro da manhã, espero minha tia chegar na rodoviária.

17/01/2024

A natureza manda

Enorme temporal que chega também a Santa Catarina.

Nossas cidades estão preparadas para o que o tempo fará com elas? Não estão.

Aliás, tudo que a humanidade construiu jamais se compara com a natureza. No fim, ela que manda.

O homem tem poder da destruição equivalente à natureza.

A bomba atômica, por exemplo.

Podemos destruir o mundo antes da natureza.

Mas o poder de construção superior ao da natureza nós não temos.

Não minimizando nossos exímios engenheiros. Mas sim exaltando a natureza. Ela manda.

14/01/2024

Hum

Questionamento: como se livrar da depressão, se as alternativas de convivência recomendadas só nos fazem lembrar mais ainda da depressão? É como se, no convívio ao qual nos forçamos, a bolha criada pela depressão melhor ainda nos moldasse. Perguntas para lapidar e levar ao psiquiatra, porque não tenho a garantia de ter sido aqui claro no questionamento. Vocês entenderam?

Quanto mais se convive para tentar escapar da depressão, mais lembramos os motivos pelos quais chegamos à depressão. O mundo e as pessoas podem ser deprimentes. Por um lapso de esperança, podem também não ser.

Depressão e padrões

Acredito que após se passarem os dias de maior depressão, sente-se um sentimento de tempo perdido pelos dias desperdiçados. Apenas acredito nisso, porque, na verdade, não sinto que superei esses dias para olhar com outra ótica.

Em um exercício de imaginação, estava apenas imaginando como seria estar escape das garras da depressão, que cercam e encurralam, limitando nossas atuações no cotidiano.

O sol brilha forte lá fora, mas não quero sair. Tenho preguiça e vergonha e desinteresse. Às vezes mais preguiça, às vezes mais vergonha, às vezes mais desinteresse. Deixo minha cidade e meus amigos me perguntam quando irei voltar. Não sei quem encontrarei futuramente. A insegurança do futuro é prejudicial, mas, para o pleno exercício do viver, apenas o presente seria agora essencial. E no presente o sol brilha lá fora e não saio. Por preguiça, vergonha ou desinteresse.

O primeiro verão que vim para cá foi melhor. O tom da novidade, a proximidade a menos de quadra do mar. Caminhadas longas de exploração. Nem a ausência de Internet impedindo que eu caminhasse ouvindo músicas sortidas nos fones impedia. Nem o descontentamento constante com meu próprio corpo, de julgamentos imaginários ou existentes por outrem - certo é que eu sim me julgo.

Na Internet tiraram a semana para debater corpo feminino. A verdade é que uma tal indústria da moda construiu paradigmas antes inexistentes. Para vender roupa ou não vender, dificultar que se compre. Esses tempos ouvi uma ótima teoria que os estilistas, muitos deles gays, projetavam roupas para alterar a percepção das mulheres, concorrentes deles pelos homens. Se verdade ou não, há pingos de razão e sentido. A indústria é muito mais cruel do que o homem "comum". Ok, a indústria, as indústrias são comandadas por homens, mas pelos poucos capitalistas detentores do capital. Eles que mandam, constroem padrões inexistentes, mais fáceis ou mais difíceis de romper com.

O tal mercado de trabalho, a televisão também moldam padrões que em geral nem concordamos. Às vezes é escrachado, e tão falsa a aparência sobressaindo sobre a competência que o sentimento é repugnante ou de vergonha alheia.

Se o homem "comum" age em julgamento tão cruel quanto a indústria, ele é, sem meias palavras, um otário.

09/01/2024

Vezes sinto que nada é mais forte do que eu e meus breves sonhos de imortalidade 

18/12/2023

Imagens aéreas

Se eu for assistir, de um helicóptero ou pequeno avião, por exemplo, a imagens desde a altura que nos encontramos, acredito que o medo seja um elemento fundamental para fixação das mesmas belezas na memória. Está no medo uma capacidade de lembrança. Ignorar o inédito, a força do risco de uma queda vertiginosa desde acima, ignorar esses elementos, na coragem, na falta do risco que não resulta em medo, também resultará em apagamento mais ligeiro da beleza das imagens aéreas. Mundo de ganhos e perdas, de ônus e bônus.

13/12/2023

Crises

Identificar as crises é fácil. Difícil é identificar o quanto as crises realmente nos afetam.

Crises geram crises.

Identificar as crises é fácil. Difícil é encontrar as glórias que aparecem nos filmes.

12/12/2023

Pelotas

Cada vez que vou embora de Pelotas, e tem sido muitas, morre um pouco dela em mim, mas, assim como as sementes ocultas sob a terra, sei que algo dela ainda renasce em mim.

04/12/2023

Creio que é muito triste ter ideais suicidas, mas, por saldo deixado, parece mais triste ainda praticá-lo.

"Há nada pior do que aquele que usurpa a arte sem deixar um pedaço de sua alma. A arte é troca. Eu lhe dou todo o meu sangue e volto com um pouco de seu coração"

C.Tugren

Paz sob a terra

O ruim de ter desistido de tudo é que você tem de encontrar um motivo para seguir mais um pouco. Um falso pretexto. Uma medida provisória, nada mais. Nem que seja ler os textos de Garcia Lorca que eu deveria ter visto para as aulas de amanhã. Queria que você estivesse correta e eu tivesse mais o que fazer. Se eu tivesse traído ou tenha com quem trair e construir algo. A solidão mediada de tantas disfunções não é apenas um sentimento, mas uma ameaça constante, perigosa e destrutiva.

Sinto sua falta para desabafos, relatos e algumas piadas, mas não consigo encontrar chamas de sobrevivência da convivência. Me sentia em um barril de pressão e compromisso, da mesma forma que não irei conseguir enfrentar quando se tratar de trabalho, sei bem e aproveitava meu pseudo-emprego para manter-me ocupado e mentindo alguma utilidade. Após sair desse barril de pólvora, é o meu silêncio que me aprisiona.

Tenho agora um senhor como vizinho dos fundos, no apartamento contíguo. Não o conheço bem e ele é naturalmente estranho, como só estranhos poderiam parar aqui. Nesta segunda-feira será instalada a internet dele, por dentro de meu apartamento, por suposto, porque preciso de incomodações maiores do que as minhas. Tenho aula toda tarde depois e precisava ler as peças de García Lorca. Tentarei isso ao ponto final daqui.

Gostaria de perdoá-la de tudo, do que me magoou e não foi pouco, mas sei que algumas questões irão voltar à tona sempre, fantasmas entusiasmados em lençóis manchados. Para além disso, também não me sinto perdoado quando episódios passados sempre voltam. Não sou o monstro que nunca aparentava ser e agora naturalmente aparento. Minha vontade de machucar quando me sinto machucado é imediata, infalível e, até o momento, incurável, embora concordo que seja possível remediá-la. Acho que faltou cuidado e cautela. De ambas as partes, obviamente.

Há pessoas que dessa trajetória de campeonato jamais irão se recuperar e outras tantas que nem a oportunidade de redenção terão. Se pensas cômico, tenho nenhuma empatia com o que daí saia. Além do mais, muita coisa se planta e daí se colhe. Ainda em termos do campeonato, creio que faltou planejamento e mesmo seriedade para encarar o processo, é a liga mais difícil e competitiva do mundo. Nenhuma apresenta, ou apresentava, tantos candidatos. Venceram os mesmos. Dos últimos 9 anos, creio que só Atlético Mineiro, que permanece bem, e Corinthians (oi, sumido) romperam o fardo de que os mesmos vencessem. Parabéns aos que assim se contentam.

Bem saliento que o Botafogo fez algo diferente, do quinto lugar no carioca, passeou um voo alto pela liderança de 30 rodadas, para estacionar também em 5⁰, mas no brasileiro. Caso ficasse entre os quatro, igualaria o número de ficadas entre os quatro do Vasco. Nem isso se permitiu o pobre coitado, incorrigível. Como um fardo permanente, um doente em leito de UTI ad eternum, esse grupo de coitados volta a se apresentar para algum domingo de calor em um estado que tem como outros esportes a praia, a subida de morro, a corrupção e a milícia, uma falsa bossa nova e o mais legítimo dos funks. E lá estarão eles, para tortura de mais uns 10 ou 15 mil coitados que não desistem, peregrinam já em busca de nem sabem mais o quê. Mas prometem eles que o espetáculo da tortura um dia, logo mais em janeiro até muitos janeiros continue. Quanto será que custa se vender para o fim como a Portuguesa de Desportos fez-se e desfez-se a partir de 2013? Ela vice-campeã de 1996, que ameaçou ao máximo o bi do Grêmio. Bragantino ameaçou fazer este ano e assim outros coadjuvantes de pouca torcida, como foi o São Caetano, ameaçam esse terreno movediço entre médios e grandes onde paira e cada vez mais enterra-se o Botafogo.

Eu, na falta de onde ir ou cair adiante, caio junto. Pás de terra não faltam, postas por quem entenda isso ou não entenda. Te desejo paz. A paz que um dia, se algo do que promete o coro das vozes seja cumprido, eu encontrarei. Paz.

02/12/2023

Muitas vezes não quer levantar-se porque sabe que em pé não é tão mais alto, não é o quanto gostaria

La dulce esperanza luego se convierte en la ironía de la vida


Banda Cinco Tatuajes

O máximo que a gente faça geralmente só é grande dentro da internet

29/11/2023

"Fui totalmente atrapalhado por sonhos e projeções, visto que a realidade não era tão ruim quanto geralmente é."

28/11/2023

"A vida não respeita sonho"


André Santos, amigo e torcedor do São Paulo Futebol Clube

21/11/2023

A mulher que sangrava

Não sei porque certas histórias nos cruzam ao caminho, se por destino ou mera coincidência. Essa é uma das dúvidas que movem a humanidade. Estávamos a caminhar pelo trajeto que sempre fazemos em hora também costumeira, entre o meio e o fim da tarde, luminosidade natural ainda em alta, muito longe do pôr das seis. Nosso prédio está sendo pintado de cinza meio azulado, o rapaz não soube informar exatamente o nome da cor e, quando questionado, disparou respostas óbvias em seu gatilho de contestação rasteira e antipática. Somente o ausente chefe deve saber o nome exato da tinta. Mas isso não importa. Importa que estávamos caminhando pela mesma passarela, travessia que inclusive já abordei em meus textos se um dia tiverem ou tiveram a infelicidade de ter cruzado os olhos.

Essa mulher tem uma idade imprecisa, mas não era nova. Nova para morrer. Era cinquentona, estava deitada quando cruzamos por ela. Ela era confundível com ele, certeza que só me acrescentou no caminho de volta. Quantas pessoas passaram por ela desde então? Ela inicialmente estava deitada, de chinelos, tinha uma sacola em sua posse. Não estava no mais confortável. Parecia um pouco estatelada se agora bem me lembro. Não sei se bem me lembro. Sou no momento um narrador vacilante. Discutam isso em aula do tipo de narrador que sou, mas sou um narrador fiel a minhas dúvidas no relato que segue.

Pois quando voltamos, após aquela olhada do mar através de mirantes públicos, depois de pisotearmos as madeiras soltas ou bem cravadas da passarela que se estende após as calçadas de concreto, quando voltamos pela derradeira passarela de madeira, a mulher cambaleava. A mesma mulher logo a identifiquei. O que se passava com ela? Ela andava em zigue-zague, parecia desnorteada. Um líquido escorria de seus domínios. A cor era escura. Desnorteados, desaturdidos ficamos todos com aquela cena que não poderia ser ignorada na estreita passarela de madeira, com mirantes, com detalhes artísticos, com uma mulher em apuros. Ela pingava algo, mas o que será? Me pareceu desde o início ser escuro para ser sangue, mas seria  então um vinho que escapava de sua sacola ou do interior de sua roupa? Os pingos agora dominam minha memória como dominavam a passarela da travessia. Pingos para esquerda, pingos para direita, uma poça desses complexos pingos não identificados de conteúdo. Teria ela se levantado daquele sono em ressaca, vomitado um vinho e depois seguido pingando. Não vi cicatrizes, não vi machucados, mas minha irmã, que me acompanhava, acha ter visto.

Mas o terror não acabava. Ela falava sozinha. Falava que havia chegado sua hora. Seria apenas ressaca? Seria loucura? Teria sido agredida? Teria sido apenas desespero de uma ressaca invencível até trágico momento? Vinho ou sangue? Vinho que para os católicos mais fervorosos também é sangue do maior de todos. Ela escorria, ela se esgueirava, bailava a um lado e ao outro, aos murmúrios e às vezes com voz mais elevada. Observei meu pai passar por ela, na expectativa, na tensão, no temor que aquela criatura esdrúxula nos tropeçasse. Mas estaria doente? Mas que ajuda precisava? E seguia narrando seus infortúnios afirmando vez que outra que quando chega a derradeira hora não há o que possa ser feito. Desafortunada era apelido.

Não éramos os únicos a tão impactante visão. Além dos minutos, muitos, que se passavam entre a vermos deitada ao lado de bancos de madeira do mirante de madeira, da passarela também de madeira, além dos minutos, quantas pessoas haviam passado por ela? E agora, além de nós em presenciar aterrorizante cena, havia um estimado grupo de jovens que deveriam ter saído mais cedo de suas aulas de ensino médio ou mesmo estudavam só de manhã e passavam a tarde de bobeira maior na praia. Os jovens também não ligaram, já a conheciam? Nem se deram o trabalho de no fluxo de consciência antes de dormir formular tamanho relato que ora vos apresento?

Os jovens a ignoraram. Cruzamos pela senhora em polvorosa. Em polvorosa mais do que ela, que aceitava seu destino trágico, nós por não sabermos reagir a essa cena. Minha mãe costuma encobrir visões indesejáveis, nos imaginou "normais", eu e minha irmã a vida toda, agora adultos estamos mais diagnosticados e contemplados por remédios. Inadequações em nossas vidas e em outros episódios, como bem me recordo de uma ladra em um bagageiro de camionete quando voltávamos do Laranjal em Pelotas e os carros de Polícia que a seguiam, e logo também nos seguiam, nós imbretados nesta cena. Eles apagaram da memória, mas em minha memória infantil jamais esqueci dessa perseguição de carro. Que, caso não tenha havido, permanece tão viva em meu fluxo de memória que posso ser o maior inventor do mundo.

Enfim, meus pais procuram apagar cenas pitorescas negativas de suas memórias, anulam o trauma antes que esse os castigue. Mas eu, meus caros, eu sou castigado, açoitado das piores formas e, em noites de insônia, talvez eu conviva com a imagem da bêbada ou gravemente ferida que nos cruzou o caminho. Passou por vários. Corredores de rua cruzam aquela passarela. Pichadores algum dia ou alguma noite, mais provável, a cruzaram. Iniciais NZ da crew que reproduziu sua tag naquelas madeiras infames. Pais e mães com crianças pequenas cruzam bem quista passarela sobre o mato, vegetação natural ornamentada com garrafas de energético Baly daquela praia catarinense. Mulheres de saias curtas, homens tatuados, idosos procurando manter-se em atividade física cruzam aquela passarela. Quantos passaram por semelhante desgraça degradante presenciada? Quem a ajudou? Lamento ou não que nós não fomos?

Ela seguiu a proferir os impropérios. Desafiava as portas do céu ou as portas do inferno para quem acredita. Estava desvairada, mais do que a pauliceia de Andrade, estava mais para lá do que para cá, a cidade de Bagdá havia ficado quilômetros atrás. Ela proferia insultos, ameaças aceitáveis pela sua desfigurante posição. Ela prosseguiu. Prosseguiu não só na voz alta, mas nos passos trôpegos que venceram toda aquela extensão de passarela, cada tábua de madeira justaposta. Ela chegou no caminho concretado, passou pelo chuveirão que a milhares auxilia a tirar areia e sal a cada verão. Ela subiu a rua em formato de pouco inclinada rampa. Ela vencia a cada passo, o vinho ou sangue, o sangue ou vinho que não mais escorregava em eternos desconcertantes pingos. Marcas escuras e obscuras sobre o chão daquela madeira manchada para sempre em minha memória.

Minha irmã acelerou os passos, ela mais espirituosa, considerada até medium pelos que assim acreditam e ritualizam em sessões espíritas. Ela de cabelos, tenho certeza, arrepiados pelo corpo e vencendo antes de nós o palco trágico da passarela. Ela que tomou impulso e velocidade atlética poucas vezes vista em suas manobras caminhantes. Mas embora cada um de nós espectadores termos ultrapassado a distância da passarela, nossos olhos insistiam mais do que em qualquer outra vez por ali em olhar para trás. E a senhora avançava. Um zumbi branco, moreno de sol no exato dia em memória de outro zumbi, o maior deles, o dos Palmares, na marcação e demarcação do 20 de novembro para invadir nossos culpados fluxos de consciência de desigual Brasil.

E na Santa Catarina, estado de muitas vezes poucas consciências, que ignora o poeta maior Cruz e Sousa e ignora as cruzes da professora Antonieta de Barros, precursora do Dia do Professor, 15 de outubro, no Brasil, essa Santa Catarina que também permite que uma mulher cruze metros e mais metros sem ser interpelada pelo 'quê houve, minha senhora?'. Essa que talvez seja conhecida por outros, talvez mesmo pelos ignorantes (no sentido de ignorar) jovens que estavam também reunidos na passarela, conhecida talvez de episódios assim de que não valeriam nossa maior preocupação e atenção, mas não tem jeito, minutos, quase hora perco agora em memória dessa que ainda me invadirá o sono algumas noites por tempo indeterminado. Até onde foi, até onde caminhou, por que ela sentenciava seu próprio fim, como juro, eu, inventor de polpa, bem ouvi? Ela que subia a rua em inclinação de rampa rumo a, primeiramente, casas, chalés, cabanas de repouso em veraneio, e, mais adiante, passaria pelos portões da capitania dos portos, policiamento e bombeiros pela direção do Porto, casas e mais casas, trilhos, gente caminhante ou motorista. Não fomos nós os que descobrimos a verdade e isso me frustra. Pode ser que eles, em ato de legítima ou não defesa, em defesa ou não pessoal tenham ignorado e superado histórias e mais histórias como essa ao longo dos anos, mas minha memória novamente em terra se remexe, em contragolpes descontrolados se revolta e se refuga. Para onde foi a mulher que vinho sangrava ou sangue vinha?

15/11/2023

Você é apenas uma engrenagem na cultura pop e acha que é autônomo e importante.

14/11/2023

Tão Longe, Tão Perto (1993)

- A noite agora já foi para o buraco

- Na verdade todas as noites já são o buraco


Diálogo no filme Tão Longe, Tão Perto, direção de Wim Wenders, em 1993.

Patricia Highsmith #2

"Escrever é um substituto para vida que não posso viver."


Pois sinto que além de minha escrita também entra aqui cada vez que leio e vejo filmes, e quase me assusto mesmo o sobressalto de parar para pensar que aquilo não existe ou que minha vida, no quarto da frente de um prédio decadente e vazio no final do Centro, é totalmente insignificante e indiferente a quase tudo que me cerca.

13/11/2023

O amor por um clube dói

O amor por um clube dói mais do que qualquer outro. É o amor que será rejeitado não por uma pessoa, mas por milhares ou milhões de inimigos, que reincidirão suas grosserias, seu ódio, sua estupidez contra o seu amor semanalmente. Machucarão, chutarão, cuspirão, bradarão, odiarão até que sucumbas, porque desse amor não estás tirando mais seiva, mais fruto. 

Seu amor está sufocado porque ele não dá resultado prático há muitos meses. Há muitos anos, há muitas décadas. Seu amor é unilateral, você ama o clube e ele nunca te corresponde.

Você implora para que ele vença o próximo jogo, porque Eduardo Marinho já nos anunciava que nesse esporte bestial alguém tem de perder. E é sempre você, seu fracassado, e seu clube estúpido quem perdem. E não basta que percas, que te remoas consigo mesmo, que não consigas comer a próxima ou as próximas refeições, que não durmas quanto deites a cabeça ou não levantes quando de levantar esteja a hora. Isso não basta. Você e seu amor em leito, em UTI precisam ser achincalhados, humilhados, pisoteados, exauridos até a última pancada por um bando de desocupados que serão também eles os primeiros a pedir que não pules, que não desistas, que não ceife yourself. 

Bando de imbecis, animais, no pior do termo, que não respeitam seu amor, que o espezinham, tratam na maior crueldade, tirania, infortúnios expostos, desgostos arrefecidos, dores incalculáveis, fraquezas que cobrem corpo a corpo. Diligências compartilhadas, febres estonteantes, risos de dor, demência conjunta, moradia de um coração inabitável.

Muitos sofrem comigo, cada um a seu jeito, despedaçados após mais uma destruidora derrota que acaba com sua semana, e essa semana vira mês, esse mês é mais um ano em processo de acúmulo e logo se passa uma vida. Ninguém do outro lado, do inimigo, se importa com você. Você tem os seus, mas também não sabe mais a quem recorrer, seu sentido de comunidade é falso, assimétrico, quimérico e você está sozinho nas calçadas do luto. Calçadas não. Sarjetas.

Tudo é dor, dói e corrói. Foi, mas não passa. Tudo você lembra. Tudo te machuca. Tudo enluta. E você cansou de levantar só para cair pisoteado, chicoteado, nocauteado de novo. Você cansou. Você cansou e pode se livrar disso. E deve se livrar disso. Você tem mais o que fazer. Só ainda não sabe o quê. 

Não sabe, vírgula, porque o amor por um clube dói. Arde. Invade. Queima até a última ponta, até mais tarde. Vira em brasas um amor que surgiu muito antes de qualquer outro e que agora corre paralelo se não submerso no esgoto.

O amor por um clube arde e não sei mais o que fazer com o meu.

Patricia Highsmith

O sentimento mais doloroso é o de sua própria fraqueza 


Patricia Highsmith

12/11/2023

Impressões sobre o cinema alemão

Tratam-se de meras impressões, suposições observadas sobre o cinema alemão contemporâneo, em especial na obra do diretor Christian Petzold, do qual estou acompanhando o sétimo filme em ordem cronológica desde os curtas com os quais iniciou a carreira.

Em parênteses, estou assistindo aos filmes na tela de meu compacto celular e quando os filmes são escuros podemos ver nosso rosto como em um espelho, às vezes atônito, às vezes indiferente, naturalmente.

Bom, sobre o cinema alemão, a observação que resultou na publicação dessas linhas consiste em analisar que, diferente de outros países mais bem demarcados com traços que muitas vezes beiram ou escracham o nível do estereótipo. Por exemplo, as conversações animadas e os muitos rolos amorosos dos italianos, ou dos quais também compartilham os franceses, porém mais polidos, preocupados em uma postura chique apesar de toda falsidade do charme burguês- já nos denunciavam há décadas. Os franceses como o próprio nome aponta em francos apontamentos, muitas vezes vistos por nós categóricos da sutileza como gestos grosseiros. Porém o cinema alemão, e além da contemporaneidade desde alguns primórdios como o filme do Golem em vilarejo judeu, ou até traços árabes ou turcos em histórias contadas pelos primeiros cineastas alemães, é notória a presença de muitos elementos estrangeiros ao que seria delimitação de Alemanha.

Wim Wenders trabalhou com histórias em diferentes países, dos Estados Unidos a Portugal. Portugal que está em destaque na obra A segurança interna (2000) de Christian Petzold, história na qual um casal de ditos terroristas com todas as aspas de esquerda criam uma filha adolescente mas tendo que pular de galho em galho pelos riscos das perseguições que sofrem.

Assim que a suplementação estrangeira está diretamente ligada ao cinema alemão. Não há um cinema alemão puro. País central, capital de uma Europa Central, desde a economia forte de Frankfurt aos portos de Hamburgo, da rica Baviera de Munique, da ligação com o leste nas complexas Leipzig e capital Berlim. No charme e nos bosques de interior por onde se possa passar nas histórias, até uma Stuttgart mais voltada nas proximidades da fronteira francesa. Um país de muitos migrantes, de africanos a árabes, chineses e turcos, e por que não brasileiros e outros seres americanos? Alemanha miscigenada porque assim é na busca pela qualidade de vida, nas saídas fugitivas de conflitos de violência e econômicos. Alemanha miscinegada também será por demonstrar superações passadas traumáticas em sua formação nacional e histórica?

O cinema alemão que observo é bastante complexo, com uma gama de assuntos, personagens, cenários, atuações. Já vi retratados prostitutas, mafiosos, drogados, banqueiros, famílias turcas, famílias miscigenadas, famílias a partir de homossexuais, de outras letras do LGBTQI+, bêbados, artistas, portuários, taberneiros, donos de redes hoteleiras, funcionários públicos, paisagistas, ecologistas, mulheres independentes em seus cabelos curtos, homens em seus cabelos compridos, bigodudos, fumantes machistas e os mais diversos personagens que se possa imaginar. 

Se imaginem cópias do cinema estadunidense, deboche com o cinema estadunidense, produções próprias mais silenciosas de viajantes, camponeses, andarilhos, passageiros de ônibus ou de trens, observadores das florestas, das belas estradas ou das águas, gente ligada aos vizinhos países, da França aos mais variados tipos do leste europeu.

O cinema alemão é um rico campo sociológico, semântico, de linguajares os mais diversos e atrativos. Antropologicamente variado, com seus personagens dos mais simplórios e caricatos aos mais desenvolvidos, que identificamos da realidade ou das imaginações mais profundas e surrealistas. 

Enfim, aqui apenas uma mostra para o que se pode explorar de ideias de observações a partir das mais diversas obras sejam elas de Wim Wenders, Fassbinder, Christian Petzold, Margarette von Trotta, Werner Herzog, Fatih Akin e outros e outras.

10/11/2023

A luz da lâmpada do poste tremula no vidro da janela farfalhado pela chuva. É sexta à noite.

29/10/2023

Sinto raiva das situações do mundo, depois um marasmo de pena de quem nem tem condições, mesmo de saúde, de articular diferente.

13/10/2023

Guerra e Humanidade (1959) - Amor Maior Não Há

Um filme que deveria ser visto e revisto até hoje.


O filme Guerra e Humanidade, do diretor Kobayashi, de 1959, retrata tempos de Segunda Guerra Mundial entre Japão e China. Os japoneses detinham o poder e escravizavam os chineses. A história conta o personagem principal enviesado entre muitas encruzilhadas, termo inclusive utilizado na narrativa. Ele estava para casar com o amor de sua vida, mas tinha o receio de ser convocado para o exército japonês. Em seus estudos sobre os campos de produção, acaba recebendo a oportunidade de controlar uma mina de extração, com milhares de trabalhadores chineses sobre o controle dos japoneses. Em estimativas do filme, eram mais de 10.000 homens em supervisão daqueles poucos japoneses.

Como recebeu este emprego para ser um dos supervisores da mina, levou sua nova esposa a este local afastado, uma terra hostil, dominada pelos homens e com pouquíssimas mulheres. Tão adverso e arisco eram o clima da localidade que os escravizados não possuíam a mínima chama feminina para atiçar seus corpos, de modo que um serviço de visitadoras, muito semelhante ao que veremos em Pantaleón e as Visitadoras, livro do peruano Mario Vargas Lllosa, acaba aparecendo na trama. São algumas prostitutas que serviriam de consolo e de aparição como recompensa aos exauridos trabalhadores chineses.

Esta primeira parte da trilogia Guerra e Humanidade chama-se Não Há Amor Maior (1959), contando a história do Sr. Kaji, o personagem principal. Ele possui livros do mundo ocidental e é um grande humanista, mas tem seus valores totalmente colocados à prova através das situações adversas que tem de encarar. São líderes oportunistas, corruptos, relatórios falsos, crimes de guerra, torturadores, trapaceiros e subordinados ao exército japonês tendo de conviver com a violência, a retaliação, os excessos de poder e uma tremenda injustiça. O Sr. Kaji e a esposa tem a convivência posta à prova durante toda a trama, escapando de uma situação e logo tendo de resolver outro infortúnio. As ordens superiores são injustas, os relatos dos acontecimentos, da violência gratuita são falsificados. Trabalhadores que são agredidos até a morte são postos em relatórios como fugitivos ou acidentados. A produção de alimento e a distribuição são escassas e injustas. Os chineses estão esgotados de trabalhar para os inimigos e sem recompensa, ameaçando fugas e rebeliões. O Sr. Kaji tem de pacificá-los, conter as investidas e negociar futuros ainda promissores para esses pobres prisioneiros de guerra.

O alto comando japonês, quando acionado, pressiona Kaji por mudanças, por uma produção efetiva. Eles esperavam angariar da colheita 20% de aumento na produção. Não importa pelo que tenham de passar por cima. Por mortos, por esgotamentos, por torturantes jornadas de sacrificante trabalho. Mas Kaji, como dito, é um humanista e observa essas situações incrédulo de tamanhas injustiças, prometendo e pondo em práticas soluções que obviamente desagradam seus superiores e parceiros no comando da interiorana mina em terras chinesas.

Kaji vivencia a traição por todos os lados. Seus negociantes do lado dos representantes dos trabalhadores chineses o traem. Ele se decepciona, ameaça não ligar mais para as reivindicações e condições trabalhistas deles. Mas o coração de Kaji segue posto à prova e ele vai até as últimas consequências por aqueles homens antes desconhecidos, não importando suas origens ou pequenos ou maiores erros passados. O filme todo se desloca em uma trajetória não de santos, mas de homens passíveis aos erros e questiona o valor das desgraças que podem ser depositadas sobre esses desafortunados sujeitos. Kaji circunda por suas temíveis encruzilhadas, sinucas difíceis, quase impossíveis de resolver. Nos questionamos durante as peripécias o que poderíamos fazer no lugar do jovem japonês, de 28 anos, um emprego inusitado e a constante ameaça de perder seu encargo e ainda ser ameaçado de torturas, agressões e até do sumiço como a morte que facilmente poderia ser falsificada em mentiroso relatório.

Kaji convive com as prostitutas que visitam os trabalhadores, com os próprios milhares de mineradores, com os controladores dos suprimentos, guardas, encarregados do exército japonês e outros fiscais e administradores. A corrupção é uma prática frequente, retrata os extremos que ação e pensamento humanos podem chegar em tempos de escassez, guerra, conflitos, animosidade entre etnias, e mesmo entre homens que - teoricamente - lutam pelo mesmo lado de uma guerra. Tantos tentando obter vantagens sobre seus semelhantes, os excluindo, os oprimindo, lutando por seus cargos ou simplesmente por seus pedaços de sobrevivência.

Guerra e Humanidade inicia a trilogia com esse episódio da vida do Sr. Kaji em cerca de 3 horas e 24 minutos de filme. Mostra os excessos da guerra, as injustiças, os comportamentos doentis e fanáticos dos exércitos nacionalistas que até hoje habitam nosso mais ou menos estimado planeta. Mostra a dificuldade da manutenção de valores humanistas iniciais, presentes na teoria bem desenvolvida dos livros, inebriantes na hora do vamos ver da prática. Os desafios do Sr. Kaji deveriam ser vista obrigatória a estudantes, pessoas de todo o mundo, pessoas que desconhecem as práticas sacramentadas e repetitivas da crueldade dos exércitos, os roubos, os excessos, as torturas, os estupros, as condições de vida precárias a que são submetidos seres humanos que como culpa carregam apenas sua etnia ou local de nascença. Um filme pouquíssimo comentado, mas, até a presente hora, contando com minhas cinco estrelas depositadas em nota e com um alta média 4,5 através do aplicativo de catálogo de filmes do Filmow.

Recomendação do primeiro ao último minuto das mais de três horas de duração e lançada minha ansiedade para conferir os outros dois episódios dessa trilogia do diretor Masaki Kobayashi.

12/10/2023

Elena (2012)

Há o que achamos genial. E há o que não entendemos.


Assim começou o documentário Elena, de 2012. Não havia entendido se a moça que havia ido a Nova York estudar teatro era Elena ou sua irmã, Petra, que nos mostra em imagens resgatadas por ela sua vida em convívio com a irmã. Petra Costa é a diretora que assina a obra.

Entre os comentários que vi sobre a película, o destaque é a sensibilidade apresentada nela e não podemos fugir do comentário sobre o grande acervo de imagens da vida das irmãs, que tinham ainda a influência de uma mãe que fez um pouco de cinema em sua juventude. O filme é repleto de referências de como Elena serviu como inspiração para Petra. Uma relação muito próxima entre irmãs, de mais velha para mais nova. Uma família que vivenciou as dificuldades do período da ditadura militar brasileira, suas restrições e possíveis perseguições políticas e depois tentou vivenciar, respirar a arte, em um ar ainda rarefeito no cinema e no teatro nacionais.

Elena tenta ganhar a vida em Nova York. É outra realidade, são outras oportunidades, a ansiedade pelo que pode ou não dar certo. O coração da jovem fica dividido. A espera por um sucesso que não vem. Um talento que não se desenvolve ou não é valorizado. A espera, o compasso longo de uma espera duradoura. Elena vai e a família a acompanha, no caso a mãe e a irmãzinha Petra, bastante criança, pequena, de lembranças vagas, suscitadas ou relembradas através do acervo de vídeos caseiros. Petra é treinada por Elena para também ser atriz. Vídeos caseiros em brincadeiras, vestuário, atuações, banhos e desempenhos. Muitos de nós sonhamos em ter imagens registradas para posteridade através de uma câmera vista de forma amadora.

Petra reconhece a dificuldade de adaptação em uma Nova York de costumes diferentes, de idioma diferente, pois tinha que aprender a duras custas o inglês, do frio diferente do Brasil mineiro ou carioca. Para além da dificuldade de Petra, que era contornada com o passar dos meses em adaptação aos Estados Unidos, Elena passou pelos percalços daquele longo compasso de espera. A depressão contínua, os dias e as noites em muito sonho e pouca atividade, em depressão profunda sobre a cama. A promessa de ligações que não vinham, convites não depositados, atuações que nunca existiram fora dos registros amadores. Sonhos despedaçados, até que ela não resistiu mais e concluiu-se de uma forma bastante estadunidense.

Para Petra ficaram as lembranças, os registros, a admiração jamais cessada, a saudade, palavra bastante portuguesa e contínua, os olhos distantes e jamais consolados no olhar da mãe. "O que houve, mãe? Está com o olhar estranho." "Estava pensando em Elena." Cena que se repetia no dia a dia das remanescentes neste plano.

Para parte final do filme, finalmente entendemos quem era quem. Ou não. Quem havia ido a Nova York estudar teatro. Quem depois estava proibida, ao chegar à idade de prestar vestibular, de escolher teatro e de escolher, entre tantos destinos possíveis pelo mundo, a mesma cidade de Nova York. Se respondem perguntas lá do início documentado, de como era impossível, e ao mesmo tempo tão palpável e presente, encontrar Elena por alguma das infinitas ruas paralelas da grande maçã Nova York, na terra das oportunidades, mas também de opressões, dos sonhos que vingam ou que se vão atrás de portas de repetidos apartamentos.

Fico pensando que pouquíssimas pessoas teriam a oportunidade de realizar um documentário desses, seja pela banalidade de nossas vidas, seja pelas poucas oportunidades de entender de direção, edição e adaptação para cenas, seja pelo pouco acervo que reservamos em nossas casas sobre nossas famílias, nossas infâncias. O filme corre muito mais por narração de Petra sobre o que lembra ou inventa, através das imagens salvas em filmagens, do que com entrevistas novas, que também estão presentes ao tentarem reconstituir o trauma que, na verdade, lhes ocupou eternamente o âmago. Esta é Elena, viva nas imagens, nas lembranças, em olhares distantes e no coração de sua mãe e de Petra, petrificada, mas insinuante e plena.

11/10/2023

O futuro do turismo

Ao mesmo tempo em que a modernidade, a globalização e as grandes empresas povoam os mais longínquos rincões da Terra, em um ar de familiaridade, de uniformidade e padronização de cada canto, tornando-os os mesmos, ao mesmo tempo perde-se a devota cultura ancestral, a particularidade, o enriquecimento, a soma, as diferenças que nos fazem mais fortes. Essas diferenças sejam elas étnicas na miscigenação, na beleza das diferentes arquiteturas, na soma gastronômica e culinária de nossos estômagos que anseiam o distinto. A diversidade de modelos, de possibilidades, de ruas, de escolhas, de cores, fragrâncias e estilos. A padronização global impõe as mesmas peças, os mesmos moldes, as mesmas formas e atitudes. Ao passo que nos dão a segurança de conhecermos como funciona um shopping center - palavras inglesas, estrangeiras, mas globais -, ou um aeroporto, nos tiram, nos podam o eterno anseio, a graça pelas novas descobertas, o calafrio inquietante diante do desconhecido, o enriquecimento cultural e uma das verdadeiras vontades que nos fazem deixar o sossego de nossas casas rumo a novas experiências.

Pontes estaiadas pelo mundo, numa uniformidade que nos orgulha estarmos defronte a uma delas como se estivéssemos nos Estados Unidos ou na China, mas que ao mesmo tempo nos bloqueia alguma das vontades de para lá nos deslocarmos. Fast foods globais, que nos dão a certeza do que pedir ao sair de casa, mas trazem um desnecessário conforto que não mais queremos. Queremos explorar o diferente, experimentarmos novas receitas e medicinas. Buscarmos novos gostos e tradições que nos acrescentem.

Um mundo que se uniformiza também se limita. A pobreza de opções nos sai cara. Os avanços milenares e globais também se deram pelos cultivos distintos, pelo comércio de importações e exportações e não pela boiada, eucaliptos ou soja que a tudo dominem entre nossas fronteiras.

10/10/2023

A vida é só o tempo entre o florescer e o perder as pétalas.

Ou se lamenta que não floresceu. Ou após se lamenta que perdeu as pétalas.

01/10/2023

Meu pensamento é uma cinemateca que jamais será exibida.


Melhor do que lembrar tudo que se deseja é esquecer tudo o que se quer.


Frases de Rogério Sganzerla

14/09/2023

Quero visitar muitas obras, mas as obras só servem para serem revisitadas.

Já cataloguei ter visto 2405 filmes.

E daí?

12/09/2023

10/09/2023

Mar de Rosas (1977)

Um surrealismo à brasileira, cheio das cenas mais absurdas com um elenco que apenas deixa prosseguir. A história de um casamento todo desfalecido entre a esposa de irônico nome Felicidade (Norma Bengell) e seu marido Sérgio (Hugo Carvana). Após uma discussão mais acalorada, a mulher reage e mata o marido no quarto de um hotel de estrada. Ou assim o pensa. Prontamente, Felicidade foge com a filha Betinha, que rouba a cena do filme.

Betinha ganha destaque sempre pentelhando a mãe e pensando nas situações mais absurdas, embora, também com um senso prático, demonstra vivacidade e instinto de sobrevivência. Ela percebe a perseguição de um carro atrás do delas na estrada, numa fuga do Rio de Janeiro a São Paulo (ou de São Paulo, onde moram, ao Rio de Janeiro, não recordo).

A perseguição se acentua até que o perseguidor percebe no posto de gasolina uma oportunidade para galantear Felicidade e oferecer-lhes ajuda. Sérgio era um empresário importante, réu confesso de passar gente para trás, segundo o próprio testemunho de Felicidade. Críticas pontuais a modelos econômicos, por que não? A um machista Sérgio de casamento infeliz, pai de família mais importado com a ideia de aplicar golpes financeiros para prosperar às custas dos outros. Desconfiado por natureza a ponto de contratar funcionário para que, por sequência e tabela, vigie a esposa. Este é Sérgio, que pouco vemos e só ao início da trama.

O ponto máximo do filme é quando recostam-se a uma cidadezinha de arquitetura tipicamente do barroco à brasileira, algo sudestino em direção ao Nordeste, de aspecto Minas Gerais, interior do Rio de Janeiro e não nos surpreenderia perdida ali se fosse uma Bahia. Lá o trio, entre as duas perseguidos e o funcionário perseguidor, choca-se com um excêntrico casal, de hábitos e costumes deslocados da realidade, sendo ele um dentista, de pouca comunicação e combinação com sua esposa. Servem-se a bom tom de uma hospitalidade enquanto a tensão segue crescente de qual será o destino para Felicidade e a espoleta Betinha.

Mar de Rosas colhe de grandes aspectos surrealistas, entregando um produto bastante peculiar, em que podemos ver traços de bons diretores europeus, como Buñuel, ao passo que só no Brasil transcorrem determinadas cenas. De 1977 para a atualidade de quem quiser conferir, sempre contextualizando as dificuldades de propor certas críticas em plena ditadura militar brasileira. Direção da detalhista Ana Carolina.

06/09/2023

De Cierta Manera (1977)

De Cierta Manera é um filme cubano que já inicia polêmico por sua data. Gravado substancialmente em 1974, foi concluído apenas em 1977. Direção da cubana Sara Gómez. O filme é centrado em relações conflituosas. São ramificações de um mesmo tema, de uma mesma problemática: as relações.

A relação central entre a professora e o operário após a revolução de Cuba em 1959. O país está mudando, as pessoas estão mudando, as pessoas estão mudando o país. O casal formado por Mario e Yolanda vive conflitos, nas diferenças de linguagem e de visões de mundo.

Mas todo o filme é uma mescla, uma sobreposição de relações. A relação dos homens com o país. A relação dos homens com os demais homens, seus companheiros, sua forma de agir, de parecer e de aparecer. A relação entre o casal, já mencionado. A relação entre Mario e seu pai, um dos membros do conselho local. A relação entre a professora e os estudantes, nessa nova etapa de Cuba, que tenta lançar a Educação como pedra principal da transformação do país. A relação entre as professoras no método de alfabetização e de ensino. A relação entre a professora Yolanda e as mães trabalhadoras, em que é difícil que se entendam, em funções tão divergentes. Uma das mães com 11 filhos, tendo que trabalhar até tarde e não conseguindo auxiliar na educação de suas crianças. Ela é cobrada por Yolanda e rebate a acusação.

O filme mostra as problemáticas relações de um país em tremenda mudança, em ebulição. Cada um ainda tentando entender seu papel no mundo, seu papel na sociedade, seu papel nesses conflitos vigentes. Mario se cobra que, para fazer sua parte dentro do papel da revolução, para cumprir as metas propostas, teve que denunciar a um companheiro, amigo seu. Ele fica lamuriando a questão enquanto Yolanda e outros companheiros lhe dão razão. O conflito é estendido em discussão entre os demais, muitos apoiando que são necessárias atitudes para cumprir as metas propostas pelo novo governo. O filme termina em uma conversa entre os personagens principais, que vão se afastando no plano da câmera, esta captando as mudanças estruturais, imagens reais que permeiam o filme, em uma mescla de ficção, neste drama, com o biográfico e o documental.

De Cierta Manera, expressão que demonstra dúvida, hesitação, perspesctiva, permeia esses conflitos e mostra como as coisas podem ser vistas de pontos divergentes. Uma Cuba que assegurava uma mudança significativa para as próximas décadas. Um filme que tem um importante valor documental para que não se deixe escapar que toda mudança brusca é sim bastante polêmica, transformadora e a luz não vira escuridão, a noite não vira dia de uma hora para outra. A bruma estará presente, os raios de sol que despertam o dia ou tingem a obsuridade da noite são graduais e conflituosos. De Certa Maneira é sobre isso.

Casal Yolanda e Mario, em discussão pelas ruas de Havana


Em um curto espaço de tempo, o filme aborda as difíceis relações sindicais, de Justiça, entre membros de um bairro e até toca no assunto de religiões de matrizes africanas. Cuba registrava muitos escravos, vindos para o trabalho no campo, mas também trouxe espanhóis, de cidades como a andaluz Sevilla.

É importante ressaltar que, com a Revolução em 1959, muitas pessoas foram readequadas de espaços urbanos. Prédios históricos eram demolidos em razão de que a considerada marginalidade ali prosperava. Novas habitações eram providenciadas pelo governo, em novos prédios ou bairros planejados, também procurando diminuir o volume desproporcional e preocupante das favelas. A relação das pessoas com seus novos bairros, serviços e vizinhos obviamente contribui para essa panela fervente entre sangues africano, europeu e latino.

19/08/2023

Eu, tolo, tinha pavor de reler as coisas e caçava experiências que, de tão carcumidas, nem poderiam se chamar metades.

11/08/2023

Interbairros

Passou incontáveis vezes por mim, enquanto eu caminhava ou vivia de caronas. Dessa vez, impaciente pelo próximo ônibus correto, me aventurei pelo Interbairros. Estou começando a lecionar em uma escola em bairro distante, na periferia das Três Vendas, bairro que talvez hoje seja o maior na cidade. Ele é fatiado em sub-bairros e linhas de ônibus. Nesse cenário de vários letreiros, corta-se a avenida Fernando Osório. Tudo começou ainda mais cedo, eu que não gosto das manhãs. Pensei que pior do que os ônibus em si são o cheiro deles por fora, entre combustível já processado e aquele cheiro que fica entre latarias e rodas.

Dentro do ônibus, quando ele faz uma curva mais brusca, o cheiro de suor dá também uma guinada da direita para esquerda ou vice-versa, confundindo e desagradando nosso nariz. Ainda não foi dessa vez que ninguém tossiu durante a viagem. Se é que é possível. Duas senhoras conversavam sobre suas famílias. Uma forma de manter vivos aqueles que já se foram. Nas conversas e nas memórias. Uma revelava muita saudade da mãe dela. Após dissecarem o assunto, uma desceu e se despediram.

Outra senhora, mais para o fim da viagem, comenta que à frente há um poste caído. Alarma a todos. Todos olham em polvorosa. Ninguém encontra o poste caído. "Tu que mora aqui perto" - comenta para outra velhinha. "Isso vai te causar um prejuízo."

Antes disso, na passagem pelo Fragata, o ônibus já teria bicado o espelho de um carro, fazendo com que nosso comboio estacionasse em regime de urgência. O motorista desceu rapidamente. Mais estranho mesmo foram se entenderem rapidamente. Talvez a tal bicada no espelho também tenha sido fake news, assunto na aula de Língua Portuguesa na escola.

Da Guabiroba se vê do alto a cidade, em uma das raras elevações. Vejo alguns comércios simples com siglas e imagino algum famoso com aquelas iniciais investindo na Guabiroba. Na avenida Duque de Caxias os taxistas, sem quem lhes dê serviço, conversam em roda de chimarrão, todos eles carecas. Esses dias caminhando passei por dois calvos que conversavam sobre seus carros estacionados em frente. Pensei que de carros entendo quase nada, mas cabelo eu ainda, por ora deste texto, conservo. Também vi um Fusca de calotas exageradas, chamativas. Um outro veículo com adesivo de carros rebaixados na favela. Ainda era Guabiroba neste caso.

Para os fins do Centro, nos fundos do Simões Lopes, vale dizer que as costas do Cefet, mesmo após quase duas décadas sendo IFSul, seguem feias. Outras casas carecem pintura e descascam até não poder mais, até quase casas não poderem mais ser chamadas. No Simões Lopes, a construção mais imponente, fora o reformado museu da viação férrea, por lógico é uma igreja.

Pelos bairros sigo conhecendo minha cidade que se transforma em imóveis que mudam de donos, em donos que mudam de imóveis, em imóveis que são mudados, também formada a cidade por quem nem tem onde morar. Um atendente que me vende uma água com gás porque sem gás não havia, me vende também umas bolachas de doce de leite e afirma que está calor hoje e que o tempo não dá trégua e "haja corpo para resistir a isso". O meu por incrível que pareça tem resistido ao inverno e mesmo aos seus veranillos. 

Próximo de minha casa canso de desviar de merdas de cachorro e talvez humanas. E pensar que almejavam lei que puniria quem não limpasse a sujeira proporcionada pelos pets. Bobagem das grandes. Na Câmara de Vereadores os trabalhadores de queixo e nariz em pé. Pelas escolas e abrigos infantis, creches, o vozerio das crianças me deixa alegre, triste e confuso. Quem serão os pais dessas crianças de hoje? Que futuro terão? O que a tecnologia modifica? O que, apesar da tecnologia, se mantém? Cantigas infantis que as pedagogas puxam.

Perto de minha casa, um espelho de uma loja especializada em venda de extintores me deixa mais bonito do que qualquer outro espelho, causando-me boa impressão e desconfiança. E cada vez que chego em casa não sei com quem vou cruzar. Gente me pedindo dinheiro, talvez em prontidão para me roubar, mantenho chave em mãos, vizinhos que reconheço ou não no semblante, carros de auto-escola, cães pernetas, lixo espalhado, lixo sendo recolhido, mais cocôs de cachorro, ferragem aberta, ferragem fechada, cães de raça em coleiras, vagabundos, trabalhadores, fofoqueiros, andarilhos e meus passos de escritor cada vez menos desocupado mas querendo estar, herdeiro que não sou. Herdo uma cidade assim.

25/07/2023

Portugal em "Frágil como o Mundo"

É um filme da diretora Rita Azevedo Gomes. A película portuguesa conta a história de dois adolescentes que, apaixonados, resolvem fugir do mundo que os cerca, mas, assim, enfrentarão novos perigos. Os incomodados Romeu e Julieta portugueses chamam-se João e Vera.

A mostra explora uma situação de Portugal rural, afastado, longe das maiores cidades do país, Lisboa e Porto. A falta de perspectiva é evidente no contexto dos jovens. Sem muitas alternativas, a saída das asas da família poderia ser uma solução. Mas, mal planejados, o destino é trágico aos novos pombos.

O filme perpassa diálogos filosóficos, ouvidos com intensidade, sem o intermédio usual de trilhas sonoras que muitas vezes tornam-se ruídos na comunicação. A palavra buscando ser sábia dos mais velhos. A palavra sonhadora e esperançosa da juventude. Ascensão e queda sendo construídos na simplicidade de um filme que desempenha uma narrativa feijão com arroz.

A melancolia de um povo português assentado após o tempo das grandes navegações e conquistas. Um Portugal que deixou Ásia, deixou América e deixou África. Um Portugal que mais lamenta a diminuição de seu poderio do que faz um minha culpa por tudo que ocasionou negativo a outros povos. Melancólico, refugiado nas entranhas de seu próprio país de atrasos e de agros campos distantes. Um preto e branco bucólico na tela de quase a totalidade do filme. Portugueses que já não mais guerreiros, mas mais recolhidos, resignados, observadores e maleados pelos campos, não mais enfrentando a severidade alentadora e destemida dos mares mundanos.

Um Portugal que se fecha e compõe músicas tristes. Sente saudades, aproveitando o bom Português, de quem não está mais, do que não é e nunca mais será. Fados contra os fardos do mundo. Portugal da narrativa de um Frágil como o Mundo, mas também como dica um filme mais antigo, em formato de imagens-documentário, o Movimento das Coisas, se não me engano, de 1985.

05/07/2023

Touki Bouki e Vidas Secas - Semelhanças e Diferenças

Touki Bouki foi apresentado recentemente por este escriba. Um filme que se passa em Senegal, retratando um jovem casal que sonha em deixar o país e suas mazelas, para uma vida melhor na Europa, desejando Paris. Em Vidas Secas, aqui se tratando do filme de 1963, com direção de Nelson Pereira dos Santos, inspirado diretamente na obra Vidas Secas, do escritor Graciliano Ramos, o casal também almeja uma vida melhor, tentando fugir dos rincões mais escassos de despovoado Nordeste.

Enquanto o casal em Touki Bouki - A Viagem da Hiena - é mais jovem, sem filhos e, portanto, com menos compromisso, os nordestinos brasileiros carregam consigo duas crianças, sendo dois meninos, e mais o cachorro da família, ironicamente chamado de Baleia, visto que a comida geralmente era escassa para todos os envolvidos.

No filme senegalês outrora apresentado, o casal discute seus sonhos à beira do mar, sonhando com outro continente. Estão dispostos a viver à margem da lei, aplicando golpes seja em quem for: autoridades, pessoas ricas ou mesmo artistas de rua. Como fuga, possuem uma motocicleta adaptada em que se destaca um dos símbolos máximos do filme: o crânio de boi - visto que são feitas várias metáforas entre a vida de gado dos humanos senegaleses e a vida dos bichos sendo ancorados rumo aos abatedouros. 

O casal brasileiro, Fabiano e Sinha Vitória, procuram viver dentro do que é possível nas agrestes terras. Eles conseguem um lar temporário, mas precisam trabalhar para o dono das secas pastagens, mais um jagunço que tenta passá-los para trás, depositando menos dinheiro do que o prometido, com a desculpa de que estão descontados os juros pelo 'empréstimo' de ter onde morar. Além do mais, Fabiano é analfabeto, jamais frequentou a escola, cena evidente quando defronta-se com o patrão, alegando que o dinheiro está a menos. O patrão mantém sua posição inflexível, reiterando que a soma está correta. Fabiano abaixa a cabeça, pede perdão e lamenta que a esposa, espécie de financeira da dupla, tenha feito conta que não devia. "Não é necessário barulho", se desculpa o peão vaqueiro.

Ainda dentro das regras de injusto jogo, o casal não consegue vender sua pouca produção de carne animal sem escapar de rigorosos impostos cobrados por prefeitura de pequena cidade - concentração de casas e gente. Fabiano é perseguido pelas autoridades, pois um metido oficial se envolve com a vida do vaqueiro, lamentando que ele tenha pulado fora em um jogo de cartas em que eram dupla. Assim, Fabiano perde o dinheiro, que a mulher acredita tenha sido desperdiçado em apostas, sem saber das injustiças que sofria com as corruputas autoridades locais. O jagunço sofre chibatadas, é vítima do abuso policial.

Na história senegalesa, a dupla vai conseguindo conquistar seus objetivos, almejando algo maior do que o Senegal recém independente após século de colonização francesa sobre aquelas africanas terras. Enquando Vidas Secas é rodado em uma espécie de conto cíclico, em que trilha sonora e paisagens iniciais e finais do filme se misturam, existe alguma perspectiva a mais na surrealista França imaginada pela jovem chamada Anta, no filme de África. Entretanto, o cíclico também está presente em Touki Bouki, pois o jovem Mori é vítima da vida emboscada em que são cercados os bois rumo ao matadouro.

Os bois. São figuras traçadas em ambos os filmes. As terras secas, o trabalho repetitivo e atencioso dos grosseiros vaqueiros em ambos os continentes. Semelhanças que aproximam um Brasil e um Senegal rurais, em épocas parecidas, sendo os filmes rodados com distância de exata década, o brasileiro em 1963, o senegalês lançado em 1973.

Em comparação, para finalizar breve análise, os pôsteres dos filmes em que as duplas protagonistas se destacam contra paisagem seca.




03/07/2023

Y apareci en un barrio del que no puedo salir

Era um show de rock, mas eu não havia definido ainda se tratava-se de um teatro, do ginásio Gigantinho ou outra acomodação. Fato é que a plateia se desenhava abaixo de uma espécie de mesanino (palavra a qual detesto) sobre o qual estávamos. O mesanino, na verdade, era um bar totalmente decadente, com um atendimento lixo, com um suposto dono da espelunca em aspecto carrancudo, ao mesmo tempo que pouquíssimo interessado nos acontecimentos que o rodeavam. Tão pouco se importou que os simulacros de brigas que ocorriam eram ignorados. Eu lembro de discutir com ela ou por causa dela, e assim arremessei meus óculos no chão, pela primeira vez, nesses três anos, destruídos, com um rompimento impossível de encaixar na lente.

Os óculos dispensados ao solo seriam somente meu primeiro problema naquela noite maluca. Meus familiares também se desenharam por ali, de uma forma bastante surpresa fiquei, porque não era costume deles aparecerem em qualquer evento noturno, naquela espécie de casa noturna recebendo um show uruguaio de rock, em que eu imaginei primeiro Cuarteto de Nos, mas descobri tratar-se de Attaque 77. Meu primeiro seguidor desconhecido em internet, ao menos na rede social que mais usei nessa vida, Diego Antônio - ou Diego Lokura - estava lá para setenciar que, sim, tratava-se da banda argentina Attaque 77, da qual ele era exímio fã. Éramos minoria naquela noite, pois os torcedores de bandeiras e camisas vermelhas estavam abaixo do pobre mesanino. As tribunas não estavam cheias, evidenciando um insucesso nas vendas ou divulgações, ou vendas e divulgações. Um show em casa noturna incompleta, com espaços para assistir, com bandeiras em vermelho e branco que tremulavam, tremulavam, e eu brinquei que levaria algumas daquelas para o maior colorado do mundo, o Hercílio Luz da cidade de Tubarão, cidade de meu pai.

Eu, bêbado, gritava impropérios que logo causariam algum simulacro de briga. Gritava que nunca havia visto tantos torcedores da Croácia ou do Hercílio Luz. Só faltou citar o Náutico para provocar ainda mais o pobre lado vermelho porto-alegrense. Cruzei com algumas figuras, pois lá estava o Lucas Pacheco, hoje dentista, com a mesma cara de quando o conheci na escola e um relógio de pulso que deveria custar mais do que meus futuros salários. Qual não foi minha surpresa quando pintou o aparecimento de meu colega Matheus, que havia sido agredido com um chute. Isto foi o que ele contou enquanto mancava. Eu pensei que tratava-se de uma brincadeira, ele praticamente imitando o mascote deles, um saci. Mas baixou um pouco a lateral de sua calça para constatar um tremendo roxão no quadril, algo que recorria a urgência da procura de um hospital na equipada capital gaúcha. Ofereci ajuda nos cuidados, o que ele negou e logo prosseguiu sabe-se lá para onde. Nisso tudo, eu precisava carregar a bateria do meu celular naquela casa noturna putrefata. Novamente surpreendido eu fui, pois haviam muitas tomadas, nos mais diversos formatos e posições daquelas paredes mal pintadas. Tentei plugar o aparelho com meu carregador desmanchando-se, o que em realidade assim está, bem ocorre, tive insucesso nas primeiras tentativas, mas logo consegui uma posição exata e delicada em que a barra de bateria poderia subir para meus gracejos.

Deixei o celular ali depositado sobre uma cadeira no canto do bar improvisado sobre o putrefato mesanino. Continuava a checar o movimento, sem prestar atenção se o esperado show havia começado, ou, se já começado, prosseguia, sem reparar mais na quantidade de camisas coloradas, muito menos nas bandeiras. O mesanino parecia uma espécie de mundo à parte, um espelho da desgraça, independente do que ocorreria no palco. As mesas eram poucas, os móveis velhos, sujos ou estragados. O horário da noite avançava sem maiores incidentes, quando eu percebi que amanhecia e precisava dar o fora dali, sem perder o que fosse: a carona da minha família ou o ônibus de excursão.

Percebi que meu celular faltava, pois havia só a cadeira branca, de madeira mal pintada, e, sobre ela, o velho carregador em frangalhos. Onde estaria o aparelho? Surgia assim meu segundo grande problema, o terceiro, se contar o coitado que levou o suposto chute que lhe causou tremendo roxão. Recolhi o carregador branco que tinha certeza ser o meu, sem nem pista do aparelho que alguém, naquela espelunca, havia roubado, obviamente sem sinal do enxugador de pratos ter presenciado o ato. Sem óculos, sem celular me dirigia para o lado de fora, quando avistei um casal que achei ser o de meus colegas de jornalismo, Wagner e Vitória, belos nomes quando posicionados juntos, diga-se de passagem. Comentei com uma terceira pessoa que achava que se tratava do Wagner, mas que na verdade era até uma mulher quem acompanhava a suposta Vitória. Erro meu.

Ao mesmo tempo reacendia a dúvida de que eram Wagner e Vitória lado a lado na porta de saída, pois Larissa, também do jornalismo, me puxou de vez para fora do estabelecimento, para uma noite que virava dia. As pessoas dispersavam-se em seus rumos, trôpegos bêbados, alguns motoristas, intactos ou não, eu ainda em busca de encontrar minha família ou o coletivo que me trouxera, eu pouco sabendo como. Larissa queria me mostrar seu filho pequeno, que brincava inocentemente na rua, alheio ao desconvidativo horário e a todos os demais acontecimentos.

Cheguei sim a reconectar-me com minha família, mesmo sem o melhor dos sentidos da visão na ausência de meus óculos, aproveitando o novo dia que raiava, feliz por encontrar meus pais. Mas logo os perdi novamente de vista, com o agravante de agora não contar mais com o celular para comunicações. Meu pai não sabe usar o whatsapp, minha mãe sabe, mas eu precisaria do quê? Pedir algum aparelho emprestado, encontrar o mito do orelhão de rua? De um posto de gasolina eles partiram sem mim, ou seria que em um posto desses me esperariam? Fato é que não encontrava mais o tal posto. Encontrei postos abandonados, casas abandonadas, todo o panorama de bairros pobres e sem-teto nos Estados Unidos, seja em Detroit, Cleveland, Baltimore, Nova Orleans ou algum recanto da Califórnia. Eram rincões do mundo ou da própria Porto Alegre que eu não conhecia. Nem seguidores perdidos da internet, nem ex-colegas de jornalismo, nem amigos agraciados com chutes, ninguém mais me libertava desse labirinto enquanto o dia, veloz, caminhava para novo anoitecer.

 Quantos edifícios Gagarine não estão nos cines?

Touki Bouki (1973)

A Viagem da Hiena. Filme senegalês do diretor Djibril Diop Mambéty. Exibido no Festival de Cinema de Cannes de 1973 e no 8º Festival Internacional de Cinema de Moscou. O filme foi restaurado em 2008 na Cineteca di Bologna, para registros de fichamento.

A história é de dois jovens revoltados com o descaso e a situação de seu país natal (Senegal) e que sonham uma vida de luxo em Paris. Eles desconhecem outras realidades, mas têm o sonho. O Senegal agrário e de paisagens desérticas é evidenciado. É impossível não capturar a força das imagens iniciais e finais da trama. A figura dos bois em última luta nos abatedouros. Sangria. Morte com o animal ainda em vida. Se debater. Morrer. Uma esteira de mortes, um chão de sangue. A crueldade humana, que em seguida é praticamente absolvida ao vermos como é o modo de vida do cidadão senegalês nas favelas, em meio ao lixo. As crianças correm atrás da moto do personagem principal Mori, interpretado pelo ator Magaye Niang. O veículo chama a atenção por possuir um crânio de boi depositado na frente. Sua companheira se chama Anta, interpretada pela atriz Miriam Niang.

Em rápida pesquisa, observamos que o filme é referência no cinema experimental africano. É uma produção bastante marcante, também se pensarmos que considerável dos países em África recém viviam o processo de independência. Senegal, em relação à sonhada França, não era diferente. As cenas urbanas e rurais povoam a obra clássica, que mostra a escassez de qualidade de vida na grande Dakar e suas imediações.

A dupla de protagonistas parte em uma jornada arriscada, roubando dinheiro ora de um golpista de rua, ora de uma arena que recebe combates corpo a corpo. O filme a todo instante mostra um país em dificuldade de progredir, de romper com seus traços mais violentos. O casal precisa driblar os moradores que também os roubariam, driblar a polícia, driblar um curioso taxista, driblar um rico idiota e conseguir embarcar em um navio que os levaria de Senegal a partir de Dakar. A conexão das cenas às vezes deixa a desejar sobre o plano lógico dos acontecimentos. É difícil entender como Mori e Anta não foram capturados no início de tão ousada fuga.

É mais fácil entender que os fugitivos tinham lá suas razões. Rebeldia, descontentamento, falta de perspectiva, ambições. O final é surpreendente, embora também nos deixe reflexivos do porquê tenha ocorrido assim.

A Viagem da Hiena é um retrato importante para registro histórico das cenas de um Senegal setentista. A independência do país em questão recém havia ocorrido em 1969. As marcas de século de colonização francesa estão grifadas durante toda a obra de Diop Mambéty. As citações, a irrupção casando ou colidindo com a ancestralidade africana, o sonho dos jovens. Um Senegal que ainda tenta(va) se encontrar e uma França mais pintada surrealista do que existente.

O ser humano em sua viagem de sonhos que muitas vezes morrem como um boi em um abatedouro.

⭐⭐⭐⭐