24/08/2021

Registros e não registros

Diários de bordo. Acho bacana começar um texto assim (diários de bordo), mas na verdade sempre me perguntei sobre quantos dias antes e quantos dias existem depois das anotações. Mais dramático é se as anotações são as últimas coisas que ficam, que persistem, que ultrapassam a barreira imposta pelo tempo, quando o autor, sem saber, acaba partindo desta para outra. Também penso muito em câmeras fotográficas. Em como estragadas podem perder registros únicos. Registros últimos. E se for roubada, o ladrão se importa com as fotos salvas no cartão de memórias?

São preocupações minhas que ora veem à tona. Tenho feito uma coleção de camisas de futebol. Não chega a peitar os maiores colecionadores, donos de bazares, sites, lojas virtuais, improvisos por grupos de whatsapp, mas tenho minhas peças e me orgulho e curto cada uma delas, de verdade, todas com alguma beleza, singularidade, história especial, de maior ou menor grau. Ao passo que avanço a quantidade de cabides e itens dobrados em prateleira, recordo meu avô sobre uma cama fria de hospital, com poucos tecidos para taparem-lhe as longas e cada vez mais finas canelas. De qualquer forma terminaremos assim. Ou partiremos um pouco mais saudáveis do que definhados. Podemos partir de repente, de uma maneira surpresa. No caso dele, todos já estamos preparados para o findar chegar em algum momento. Além do mais, independente do tempo que ele perdure com suas agravantes questões de saúde, ele é o recordista de idade de nossas famílias, passando os 90 e relutante em chegar aos 91, caso sobreviva até o próximo novembro.

Embora destaque seus problemas físicos, se alimentando cada vez menos e com veias e ossos cada vez mais salientes por conta disso, minha mãe observa que ele está razoavelmente bem de cabeça. Não creio que chegaria assim daqui a mais do que seis décadas. De maneira alguma projeto isso. Um dos casos que me trouxe aqui a relatar é porque estava quase adormecendo após o almoço e em um acesso de teimosia tamanha, como se fosse um desses senhores idosos, me recusei a levantar e escrever as poucas linhas que eu havia pensado. Lamento muito por tê-las perdido para sempre em um vácuo no espaço não arquivado pela memória. Os malditos neurotransmissores queimaram o arquivo, rasgaram a folha, jogaram fora os poucos versos. Nem sequer eu recordo do que se tratavam. Isso que me chateia. Não consigo sequer restituir a temática de meu pensamento naquela matinê. Assim acredito que, se minha mãe estivesse viva aos 130 para me conferir nos meus inalcalçáveis 90, duvido que ela se refiriria a mim como estando "bem de cabeça". Não vou estar "bem da cabeça". Provavelmente nem estarei, como sabem.

E a sentença sobre meu avô também é bastante duvidável, pois o sr. Lino estava querendo sair para pescar em um desses dias, logo no estado em que ele se encontra, definhado sobre a cama. Em outro momento, com maior juízo, vejam só, se recusou a partir para pesca porque ele quer aguardar o verão. Ficamos no aguardo se ele resiste a esse final de inverno, passagem por primavera e alcance o sonho da próxima pescaria, ou continuará a pescar seus últimos sonhos por agora. Quanto a mim, sigo me martirizando muitas vezes pelo que não tenho culpa, meus tecidos de variados clubes e seleções espalhados pelo sofá enquanto meu avô não escolhe o que vestir, escolhem por ele, no restante de suas últimas peças. É quase setembro e ainda está um pouco frio para os padrões de despedida de inverno.

21/08/2021

poema do peixe

como um filme de terror se defronta a vida

como se a vinda aqui nada valesse

como se brinda a vida em um fim desses?

como se ainda motivo aparecesse


tento escrever agora altivo

de dentro para fora ou de fora para dentro:

qual motivo?

que me leva a vir aqui sedento


não me dou por vencido facilmente

mas basta ser algo que eu o queira 

já não quero muita coisa, realmente 

e quando quero muitas vezes é besteira


quero mesmo é prosseguir por esse rio 

caudaloso é o destino do poema

que acena a uma aventura e outras mil 

pelo fio da criação não há problema


o verbo querer é tão presente

tão presente mas também em outros tempos

muitas vezes eu gritei com todo aumento

eu queria e eu queria aos quatro ventos


aos quatro cantos ou quantos eles fossem

será que eu queria o sabor tão desejado?

por exemplo fosse ele algodão doce

é provável da minha parte rejeitado


outros jeitos, outros queijos tentativa

preocupante é o estado da gengiva

sangra fácil anunciando corrosiva

a erosiva relação com a saúde 


ataúde é uma palavra só lembrada

pelas últimas andanças dessa estrada

pode ver como rima mas se opõe 

ao estado de saúde - sol se põe


lamurento posso enfim ficar

no cerrar desses versos, no cessar

lamacento nas encostas desse rio 

para dentro dos cardumes juvenil


como um peixe se desvencilha das amarras

pelo trânsito para longe das mortalhas 

escorrega jovial pelo cardume 

enquanto jogam pescadores uni duni 


à espreita tanta coisa se é feita

na tentativa de pausar esse peixe 

santa ceia , santa é a semana

que engana os destinos desse feixe


mas melhor por aqui se despedir

antes que nosso herói seja pescado

pela boca morra pela isca

ou pela rede a debater-se acompanhado


quem não acompanha agora nada

não entende o prazer das nadadeiras

em sincronia a mover-se à correnteza

gentileza pelas forças dessa água


e o peixe vai contente ou apenas vai 

desovar adiante outros canais

pelas ovas que perpetuam a espécie 

que iludem perfeição - até parece 


a natureza nisso se renova

no processo geracional desses peixes

que no cardume se somam formando feixe

misturando uns e outros muitas ovas


e assim nosso rio poema se povoa 

tanto faz agora se queres lagoa

ou abertura para o mar formar laguna

das espumas dessa água nada muda


quanto ao peixe nosso descrito tão querido

permanece a nadar assim sortido

sol se vai e depois retorna a pino 

e nosso peixe segue só por seu destino


criatura natureza assim tão besta 

criticarão o animal ao final desta

se não desta talvez em outra frase

pois sua vida não se encontra assim oasis 


ou quase, ou quase...


nosso peixe sai da água assim mergulha 

quando volta após passar pela secura

se reúne a outros peixes na tertúlia 

e se esconde ao mergulhar em água escura


reaparece o peixe esse em água pura

cristalino limpo e vulnerável 

ao voo coordenado da gaivota

mete o bico pega o peixe pelas costas


morre assim o nosso peixe idiota

não se preocupa 

lembra a ova?

essa choca 


e poema assim a ninguém machuca 

mas ao final: a quantos choca?

Nota de agradecimento em nome da saúde

De todos os males do mundo, é pior mesmo é sofrer da própria saúde. Claro que na pobreza se está mais suscetível a problemas de saúde, pela exposição, pelo desgaste, pela falta da alimentação adequada, nutrientes e aquela coisa toda. Mas vim mesmo agradecer a todos aqueles que se prestam a ajudar os outros. Não somente os mais reconhecidos e renomados médicos que realizam os procedimentos, mas aos atenciosos enfermeiros e técnicos de enfermagem, aos acompanhantes e pacienciosos lado a lado dos enfermos. Agradecer pela boa vontade, pela perseverança, por não desistirem em nome de outro ser. Aos que acolhem pessoas a seus cuidados, até sararem ou até o final, tornando menos dolorosa a passagem. Agradecer a quem recolhe animais abandonados nas ruas, os trata, os encaminha a veterinários, lhe cedem vacinas, medicinas e carinho. Cães, gatos e todos os bichos que vagam perigosamente pelas ruas. Obrigado a quem batalha pelo cuidado deles. Há muitas pessoas más, mas também há quem faça tudo isso valer a pena. Portanto, venho no mais puro bel prazer do agradecimento, do meu muito obrigado, para que minha gratidão por ora transcorre de um peito a outro, como deve ser, no exercício da tão bela lição que é a solidariedade. Não estaríamos aqui sem as justas parteiras, profissionais da enfermagem, médicos de plantão, abnegados, cuidadores, voluntários. Você já agradeceu por quem realmente merece ler, ouvir, sentir esse reconhecimento verdadeiro? Pois não perca tempo, enobreça seu estado de espírito ao máximo ao sentir-se grato e transmita isso na boa palavra, na carinhosa atitude. Que se iluminem os caminhos a partir disso e que em algo recompensados possamos ser também. Uma fé não obrigatoriamente alcançável a todos, mas, por ora, por mais que me culpe posteriormente, por agora quero apenas acreditar. Acreditar nessa benevolência, nessa boa vontade, nesse estado de gratidão, muito questionado em outros momentos, mas que, em meio a tudo isso, de ruim e de bom, me permito. 

Obrigado.

20/08/2021

Sacrifício

Mesmo envolto a filmes de terror nos últimos dias, me surpreendi tamanho plano ousado que minha mente ornou. Percebia uma casa muito cinza e afastada, por onde transitavam muitas pessoas que eu desconhecia. O movimento intenso daria ideia incluso de um comércio, bazar em funcionamento, mas não era o caso. Era como se morassem ali ou ali estivessem refugiadas e assim poderia ser também o meu caso. Ou o que eu fazia por ali? A casa tinha um aspecto acolhedor, mas decadente. Era a morada, mas era estranha. Era uma casa de proporções esquisitas, onde poderíamos associar sua figura a um grande templo. Fato é que as sensações que nos causavam eram meio horripilantes, sem saber o que decerto iria ocorrer logo adiante. A suspeita eram dos moldes da bruxaria.

Entre tubos de diferentes tamanhos e formatos que se amontoavam sobre os móveis, como se esquecidos ou recém-usados e ainda não passados pelo lava-louças, lembro de aparecer por entre meus dedos um bilhete. Um bilhete tão misterioso quanto todos os entornos daquelas curiosas cenas. Tentei fixar meus olhos somente naquele papel parcialmente amassado e em caligrafia apressada ou relaxada quando foi manuscrita. Seriam códigos que fugiriam a meu entendimento? E o fluxo de pessoas, ora tão numeroso, tudo desaparecia e as trevas se faziam presentes, como se de repente uma vela fosse rapidamente assoprada, transformando o estado cinzento em mais trancafiada e aprisionante penumbra.

Percebo esse código em papel de repente em outro espaço, quando me deparo em uma espécie de shopping, talvez semelhante aos estabelecimentos Angeloni de Criciúma, ao sul de Santa Catarina. Era semelhante àquele estabelecimento ou de lá lembrei por causa do número musical que se apresentava: um músico diante de uma razoável plateia. Conforme ocorre com os músicos de centros comerciais, as pessoas mais seguiam suas atividades de admirar vitrines ou seus telefones celular do que prestavam atenção, mas sempre uma quantidade reduzida também o escuta e acompanha das melodias. Pois outro músico, talvez transformado em eu mesmo, se depara, após o dedilhar de algumas notas que está sozinho. Tão sozinho quanto na penumbra daquela casa cinzenta e esquisita.

Ele olha ao redor e, com o perdão da utilização da letra daquela música, acha melhor parar de olhar. Ou ao menos parar de tocar. Ninguém o escuta. Pois o código. O código o é entregue mais uma vez. Por alguma mão sorrateira que por ali passa, ou surge diante dele, como na superfície de alguma mesa próxima, ou mesmo o músico o encontra de seu bolso (como é possível surgir assim do nada?). Enfim, ele tem o bilhete em mãos, olha atento àquela combinação ridícula que lhe foge aos conhecimentos em significado. Mas tem para ele que aquela é a salvação de sua carreira musical. Ele precisa copiar aquele código para acessar ao sucesso. Para, ao menos, copiar seu parceiro que tocava para meia dúzia, dúzia inteira ou até três ou quatro dúzias de gente num shopping estilo estabelecimentos Angeloni em Criciúma.

Ele precisa ser escutado, é sua razão de ser e existir, ele não se importa, naquele momento, de fazer o tráfico com o mais temido diabo em troca de sua merecida plateia. A razão da existência musical, tocar para alguém ouvir. Ele aceita os termos de uso e sai em desembaraço do código que sacie sua vontade de receber os louros advindos de um tímido aplauso ao final de cada canção - algo do tipo. Com o código transcrito para sua mente ou para outro papel, ou dito em voz alta, na tentativa da convocação do diablo que lhe conceda a glória, o músico (será eu?) é novamente transportado.

Está agora em uma estrada vazia, sabe que essa mesma estrada vazia, interiorana, sem residências que a circundem, leva em direção àquela mesma casa sinistra, deslocada, opressiva, cinzenta e morada dos mais impiedosos segredos e feitiços, dos confins porãonizados da humanidade. Mas, ao manobrar uma camionete - ou desta mesma camionete ser apenas um secundário personagem no banco de carona - o músico atolado até o pescoço com as bruxarias se depara com uma cena de lhe tirar o fôlego. E ainda bem aqui tratamos de um músico de instrumentos de corda e não um soprador de saxofone, por exemplo. Isto porque sem o fôlego ele fica ao deparar-se com uma fileira de corpos em um pequeno vale - talvez escavado - que se desenha na estrada. A estrada é vazia de movimentos e entulhada de neve. Sobre essa neve estão deitados uma parelha inteira de corpos. Os corpos ele custa a assimilar se são humanos ou de algum antílope que por ali habite, onde Canadás será que estava? São humanos ou são alces depositados sobre a neve? As autoridades sabem desse absurdo? Onde está a sua camionete? Era o carona e foi chutado pelo motorista, para observar àquela audaz e impiedosa cena? Sejam alces, sejam humanos deitados naquela clareira que muda radicalmente os tons inebriantes do constante volume de neve que se acumula pela estrada, sejam do que forem aqueles horripilantes corpos antes escondidos, sejam esquecidos ou lembrados, ele tem certeza de uma única palavra sobre aquela quantidade de corpos: sacrifício.

Ainda sobre meu avô

Foi após eu firmar o obituário de meu avô que ele deu para não morrer. Os dias no hospital arrastam-se, como o cinza ininterrupto desse mês de agosto. Os cães estão loucos, ensandecidos aqui em frente ao apartamento. São uns cuidados pela vizinhança, que lhes fornece alimentação e água, em troca de uivos para luas cheias e alguma sensação de segurança que eles transmitem. Mas o assunto é mesmo meu avô, que segue como uma partida de futebol esquecida de ser finalizada aos 90. Sobre a cama, com as canelas cada vez mais finas, com a musculatura a sumir conforme não come nos últimos tempos. Sobrevive pelo soro e perde muito sangue e muito líquido pelos problemas em seu sistema urinário. O câncer que teve pela próstata ameaça voltar, se é que já não voltou e falham na nomenclatura ao dito cujo.

Percebi a fragilidade do panorama de meu avô ao comprarem para ele alguns iogurtes da marca do solzinho, destinada preferencialmente às crianças. Aí chega o ponto em que eu queria adentrar, a, mais uma vez, semelhança entre o estado dos mais jovens e dos mais velhos. A necessidade dos cuidados de outrem. A impossibilidade de se virarem com seus próprios recursos. Para além da saúde deficitária do ancião, aqui em casa discutimos os valores financeiros que ele a cada dia nos custa, porque precisa de um revezamento de cuidadoras, com o preço pela casa dos 100 reais por turno. Entre duas, vão-se praticamente 200 reais a cada findar de tarde. A da madrugada recebe mais, o chamado adicional noturno. Algumas batem cabeça no horário, com atrasos ou impossibilidades avisadas em cima da hora, privando minha mãe de qualquer sombra de sossego.

Digo para minha mãe relevar essa situação, porque logo ele parte ou melhora. Estamos cientes de que segue mais próximo de partir, justamente por não ter forças mais para alimentação. Segue conectado às sondas e, a bem da verdade, em momentos de fúria e de últimas provas de rebeldia, arranca os cateteres posicionados em seu corpo. Quando questionado por um bem humorado enfermeiro, se, caso fossem soltos, libertados seus braços, se meu avô iria se comportar ou arrancar novamente os cateteres, o meu ascendente de raízes polonesas admitiu: "vou arrancar, sim." O profissional agradece a sinceridade dele e segue seus trabalhos, mantendo meu avô delicadamente atado, na impossibilidade de arrancar-lhe o que o mantém vivo.

Houve um caso de amigo de meu pai, um engenheiro bastante mais novo, que, ao se dar por conta da situação sobre a cama do hospital, arrancava os seus conectores da vida. Acabou realmente por morrer e talvez fosse isso que desejasse, após problema neurológico que o acometeu. Estar nessa situação vegetativa, sobre um leito e extremamente dependente de terceiros, deve afetar as percepções de o que é estar vivo. Eu, em tão melhor situação sinto esses questionamentos, imagino-me na situação deles.

Enfim, como uma criança, em que a memória oscila entre aprendizados ou nomes antigos e entre o esquecimento das coisas mais básicas recentes, meu avô segue lá com sua capacidade intelectual também cada vez mais fraca. Chama pelos que já não o podem atender, relembra momentos, traça resumos de sua vida passadas nove décadas. Aguarda pelo apito de encerramento e busca alguma compaixão com o temido júri do juízo final. Enquanto isso, permanece imóvel sobre a cama, tentando domar seus instintos rebeldes e alternando entre o cansaço, a fraqueza, mas também a disponibilidade em que desata a falar como em um dos últimos confessionários.

Sem mais poder nos oferecer as cadeiras que bem construía nos conhecimentos da carpintaria e com um leque de piadas cada vez mais reduzido, meu avô vai se apagando, mas mantendo acesa sobretudo a discussão de quem arca com seus últimos dias, entre cuidadoras que levarão mais do que dois salários e sua possibilidade de alta ainda não se sabe para onde, entre as existentes casas geriátricas ou os aprontes da filha da esposa de seu segundo casamento. E, para meus compromissos com a verdade, nunca ouvi tanto sobre meu avô como nesse último mês. Talvez, se organizássemos a massa de tópicos sobre uma gangorra, o mês atual venceria o total de vezes em que ele era mencionado em todos os meses anteriores em minha casa. Em resumo, nunca se falou tanto dele. Nem tão bem, nem tão mal, mas apenas cada um avaliando onde pode inserir-se nos cuidados feitos, em contravontade, mas querendo manter uma imagem perante a família e a sociedade, além de uma aparente consciência tranquila. Próximos capítulos nos aguardam. 

A gente começava a ler as pessoas pela foto

10/08/2021

Aos vermes

Posso escrever quantos poemas eu quiser
Sem querer
Posso fazer mais poucas coisas
Contei aqui mais três

Posso seguir esse como uma estrada
No automático
Posso terminar nos contornos da Via Láctea
Ou do mar Báltico

Posso utilizar um Dicionário de Rimas
Acho que desde o Jornalismo não usava mais
Elas sempre vieram até mim: Dopamina 
Fazendo sentido ou não - tanto faz

Há coisas dentro da minha cabeça
A maioria não te interessa - se não tudo
As pessoas tem gostos e preferências estranhas
Vivendo no mesmo mundo

Pelas entranhas menos ainda interessa
Tudo passa com ou sem pressa
Os microrganismos não pensam nisso
Minha gata Melissa também não
Nem os vermes de qualquer tamanho

Não pretendo

Não pretendo deixar filho
Nem conhecer o Japão
Nem me jogar sobre os trilhos
Nem na frente do caminhão

Não pretendo votar em direita
Ou conviver com quem
Nem converter em pesetas
As vidas de algum Iêmen

Não pretendo cursar cinema
Ou mais alguma matemática
Nem resolver mais problemas
Além do que me mata

Não pretendo ver (mais do que) 2 mil filmes
Nem ler (mais do que) 300 livros
Nem me esconder no insufilm
Da estrada para lugar nenhum

Só é livre quem vence o ridículo
Se não for assim deve ser desperdício
Não queria me desperdiçar 
Mas também não quero vencer

Não pretendo me despedaçar
Nem unir os pedaços
Não pretendo me amarrar
A outros colapsos

Vastos são os erros
Na flor do asfalto os acertos
A economia é o soterro
Por sobre seus desafetos
Sem tetos
Considerados insetos
Ao sistema

Não pretendo vencer o sistema
Porque não posso

Curvado

Tive um último sonho. Estava na minha antiga escola, no pátio adjacente ao ginásio. Não lembro o que fazíamos para passar o tempo. Estavam todos lá. De repente, houve uma chamada e segui os demais que iam entrando para o ginásio. Ocorreria algum evento. Era Olimpíada. Havia como que classes posicionadas junto à linha lateral da quadra. Poderia ser um local de espera improvisada para realmente entrarmos em cena, ou poderia ser a tribuna, também no improviso, para assistirem aos fatos. Conforme foram tomando posição, escolhi uma cadeira. Percebi que fiquei na divisória entre nossa cor e a adversária. Havia dois meninos, que na época não sabíamos, hoje sabemos que são gays. Eles nos provocaram, à espera de vencer. Eram dos oponentes da ocasião. Realmente eram de outra turma. Um me acertou uns tapinhas no rosto. No sonho eu estava indefeso, sem reação de reflexo para impedir.

Aguardei ali as diretrizes daqueles jogos. A coordenadora surgiu ao centro, como se fosse um show business. Só faltava o microfone descer do teto por um fio, em direção à sua mão. Mas talvez ela realmente erguesse um microfone. Estimado público.

Do nada traziam uma caixa com algo dentro. Ela anunciava a atividade, capturar o coelho cinza. Achei absurdo. Alguns se prontificaram em ajudar na caça. Seria uma equipe contra a outra. Provavelmente com vitória de quem capturasse antes. Me repousei o corpo contra a parede, as mãos para trás. Não quero. Não vou. Um colega tenta me convencer. Sem chance. Deixa o coelho. Que tipo de jogo é esse?

Ela de repente abre a caixa antes das equipes se posicionarem devidamente em volta. O coelho naturalmente dispara. Foge. Eu meio que comemoro. Até vou um pouco em direção a ele, talvez tomado pela curiosidade de onde vai parar o bicho. Ele vai pela única saída em que não precisa driblar o público. O coelho cinza some. Fico aliviado e aflito. Onde ele vai se esconder? Até quando? Alguns se prontificam para capturá-lo para o grande número, afinal, o que vale é o jogo, o que acham ser lúdico. Idiotas. Eu fico paralisado. Esperando e não esperando encontrá-lo. Muitas coisas na vida são assim. Se espera e não se espera encontrar. Quer e não se quer.

Mediante a ineficiência dos demais em encontrar o sofrido bichinho, saio daquela paralisia, mas não retorno à posição de origem, nada da lateral junto à parede, onde eu torceria junto ou não, mas me recusaria a participar daquela brutalidade, daquela selvageria. Pensei em todos os ritos de caça, nos mais e nos menos necessários, alimentação ou dito esporte. Malditos os últimos.

Percorro o ginásio rumo à saída pelo qual eu havia entrado, é uma abertura do solo ao teto. Antes, próximo da trave, da goleira, sou interceptado pela coordenadora, com um sorriso amarelo de quem falhou e deixou o coelho escapar, e também um antigo colega, o único melhor do que eu na matemática do fundamental. A coordenadora era professora de matemática. Ele se pergunta porque eu ando encolhido, curvado, cabisbaixo, de má postura ereta. Apenas respondo que sou assim. A coordenadora faz coro. Eles ficam ali a me analisar. Eu tomo o rumo da saída. Curvado, virguloide, decepcionado. Com tudo. Com todos.


04/08/2021

Vôlei de Praia brasileiro é eliminado antes da semifinal pela primeira vez



Fotos: COB

Por: Henrique König

O Vôlei de Praia foi instituído nos Jogos Olímpicos em Atlanta, 1996. Desde então, ao menos uma medalha era conquistada pelas duplas brasileiras no torneio. Mas em Tóquio 2020 não teve jeito. As quatro duplas, duas de cada naipe, foram eliminadas antes da fase semifinal. Nem o gostinho de uma disputa pelo bronze. Apesar dos ainda bons resultados no Circuito Mundial, uma das modalidades que mais trouxe alegrias para os brasileiros fica em alerta. É preciso se perguntar o porquê as coisas ocorreram assim.

A dupla favorita do Brasil era Agatha/Duda, mas elas não passaram pela dupla alemã da atual campeã olímpica, Laura Ludwig. A experiente atleta da Alemanha mudou de companheira, jogando com Margareta Kozuch. Mas as próprias alemãs foram eliminadas na fase seguinte, nas quartas, para uma dupla norte-americana.

Foi nas quartas que Ana Patricia e Rebecca pararam nas suíças Hiedrich e Verge-Depre. Ana Patricia relatou um dia de logística muito complicada, pois não dormiu e passou por diversos sintomas. Isso refletiu em sua atuação muito abaixo em todos os fundamentos. Rebecca tentou conduzir o jogo, mas não foi páreo para as europeias. Eliminação brasileira antes da semi.

Este foi o panorama também entre os homens, que tiveram os mesmos algozes. A dupla da Letônia, um país encostado à Rússia e ao Mar Báltico, com cerca de 2 milhões de habitantes, ou seja, uma Curitiba. Plavnis e Tocs venceram as duas duplas do Brasil.

Nas oitavas, eliminaram Bruno Schmidt e Evandro. Fica o lembrete que Bruno passou pela covid-19, foi internado, correu mesmo riscos sérios contra sua vida e sua participação em Tóquio foi considerada heroica. Na fase seguinte, nas quartas, Plavnis e Tocs passaram por cima de Alison e Álvaro pelo placar de 2x0.

É hora de lamber as feridas e tentar entender o que deu errado nas areias pelo lado brasileiro na Tóquio 2020.

Confira o número de medalhas do Brasil no Vôlei de Praia nas Olimpíadas:

1996: 1 ouro e 1 prata

2000: 2 pratas e 1 bronze

2004: 1 ouro e 1 prata

2008: 1 prata e 1 bronze

2012: 1 prata e 1 bronze

2016: 1 ouro e 1 prata

2020: 0

Multicampeã mundial, Ana Marcela fatura Maratona Aquática na Olimpíada


Foto: Jonne Roriz - COB

Por: Henrique König

Ela buscou o ouro dela. Na noite de terça-feira (3), já dia 4 de agosto no Japão, Ana Marcela fez história pelo Brasil e conquistou a quarta medalha dourada do país na Tóquio 2020. A nadadora fez uma prova de muito fôlego e superação para ultrapassar adversária e ficar com a primeira posição no último trecho da Maratona Aquática.

A liderança era da alemã Leonie Beck durante a maior parte da corrida, mas Ana Marcela Cunha cravou o tempo de 1h59min30.8s. Ficou um corpo de vantagem sobre a segunda colocada, a holandesa Sharon van Rouwendaal e quase dois segundos de vantagem para a australiana Kareena Lee, que fechou o pódio. Leonie Beck perdeu a medalha no último trecho.

Em sua trajetória, Ana começou com o 11º lugar no Mundial de 2011. Ficou fora da Olimpíada de Londres 2012. No Rio de Janeiro, se preparou mal na logística para a prova, com problema incluso de alimentação e terminou em 10º nas águas cariocas em 2016. Mas no Circuito Mundial, ela é tetracampeã. Soma mais de 25 de ouros em etapas pelo mundo, mais de 50 medalhas ao todo. Ela precisava de uma glória olímpica. E ela veio.

Ana Marcela do Brasil se torna a quinta brasileira campeã em competições individuais em Olimpíada. Tudo começou com Maurren Maggi no salto em distância, passou por Sarah Menezes e Rafaela Silva no Judô e desembarcou em Tóquio com Rebeca Andrade, o mito da Ginástica Olímpica, e Ana Marcela Cunha na Maratona Aquática.

Lembrança aquática também para a dupla bicampeã: Martine Grael e Kahena Kunze, vencedoras no Rio 2016 e em Tóquio 2020 no Iatismo. É o Brasil das águas!

01/08/2021

Pelos finais (e inícios)

Moro no último prédio da última cidade ao Sul do Brasil, o último país em muitos indicadores. Ok, não é a última cidade, mas nenhuma cidade mais ao Sul do Brasil é maior do que a nossa. Rio Grande pode dizer o mesmo, se assim desejar, pois fica mais ao Sul. Porto Alegre pode se referir a si mesma como a capital mais ao Sul, nenhuma outra é maior do que ela no sentido meridional. Enfim. Moro literalmente no último prédio, na última quadra de uma das ruas importantes, onde estão prédios da administração pública, jornal, poder legislativo, associação de professores e servidores da educação pública e muito mais. Também estou. Com apenas uma volta da chave - me mentiram que eram duas - saio a passear e a explorar o novo bairro e suas peculiaridades.

Prédios essencialmente antigos com mais ou com menos desgaste. Recordo, quando retornava desses passos, de uma família negra a passear. A criança empurrada pelo pai em um carrinho assim projetado, enquanto a mãe colocava na linha um cachorro enroupado contra o frio. Reparei nos prédios que nos cercavam, no estilo colonial português, mas na mão de obra escrava. Hoje menos de 1% das pessoas pensa nisso quando cruza por essas históricas ruas, que tanto presenciaram.

Ao morar em um prédio - o último da última maior cidade? - tenho reparado mais para cima, os cartazes de vende-se ou aluga-se, muitos espaços vazios. Muita gente nas ruas. O contraste é tremendo. Acumulam-se em portas de bancos, marquises, calçadas, prédios públicos e privados em busca de algum aconchego. Muitos preferem ficar assim e não seguir as ordens de abrigos municipais. Riscos contra as noites de temperatura quase negativa. Meu amigo relata que à porta do banco com o qual trabalha para suas transações, os moradores de rua o têm ocupado (invadido? a gosto de quem lê... barbaridade) para suas refeições mas também necessidades fisiológicas. O mundo selvagem do nosso centro. Haja trabalho para quem lida com a limpeza do espaço. Haja constrangimento aos clientes. E quem age pelos infratores, que permanecem nas ruas? Haja polêmica. Só fica também a lembrança que as instituições bancárias e seus banqueiros aumentam o lucro trimestral ano após ano, faturam de bilhões a trilhões - para quem sabe contar até tudo isso. Os bancários até sabem, mas nunca têm essa quantidade em mãos. Quanto aos ali depositados, contentam-se com algumas moedas para uma refeição. Embora não se faça mais refeição com pouco níquel.

Pela praça, quando eu ia em direção ao centro do centro, as crianças se enfileiravam para brincar nos espaços públicos, sobretudo nos balanços, escorregadores e gangorra. Os pais a vigiar, o vozerio a ecoar ao longe. Quando regressei, com a noite se aproximando os brinquedos já estavam vazios, a penumbra a tomar forma. As últimas poderiam protestar a ordem do recolhimento rumo às suas casas. Ordens dos pais. Enquanto isso, descia de um carro, a poucos metros dali, uma senhora com muita dificuldade de locomoção, necessitando da ajuda das mais jovens pessoas de sua família. Seguiram em passos retesados, os sapatos como âncoras, como revela a música de La Vela Puerca.

Os grafites contrastam ou muitas vezes complementam-se com a pintura viva de alguns prédios antigos. Os espaços vazios também se fazem notar, em uma ou outra esquina. O mato cresce desordenado. É o panorama do final do centro. Para outro lado, rumo ao bairro ferroviário (amo chamar assim) Simões Lopes, um maluco de esquina se assemelha a qualquer trabalhador marítimo, de touca, barba por fazer, dentes pouco cuidados e a balbuciar besteiras. Cumprimentou-nos e perguntou sobre as gurias. Disse que é bom e tem que ter, que a ele faziam falta. Me questiono se realmente fazem e confesso que - hoje - são raras noites. Para outro transeunte, ele cumprimenta um suposto primo. Tudo invenção daquela mente mirabolante. Logo adiante, um outro tenta adentrar um portão, provavelmente da empresa em que trabalha, portão extenso, de ferro e que serve para qualquer manobrista de caminhão contorná-lo com facilidade. Assim espero que seja e não uma cena de arrombamento...

Em outra madrugada, escutei um suposto assalto. Com as janelas todas cerradas como manda o horário - mas poderia ser desde mais cedo da noite - um suposto assaltante a atormentar um suposto passista. O ameaçado insistia em voz tentando manter a calma, porém um pouco trêmula na execução da fala. Dizia não portar objetos de valor em um traduzido "já te disse que tenho nada" e complementou "só queria dar uma banda". O relógio marcava 4 horas da manhã. Eles seguiram caminhando rumo aos fundos desse fim de Centro, para onde a vila se instaura e muitos anônimos para nós mas bem conhecidos entre eles, se empilham nos intuitos da sobrevivência, em busca do aluguel ou da moradia mais barata, em busca de um sonhado despertar melhor em algum dia.

No regresso para minha casa, pela narrada caminhada, antes de encontrar a família negra e pensar sobre a mão de obra dos 'portugueses' prédios, passei pelo edifício onde uma amiga morava. Ela transferiu-se para Brasília. O prédio está pintado de forma diferente e, aos meus olhos, nunca pareceu tão pequeno, assim em azul. A rua que por ali corre ganhou uma camada asfáltica, coisa que me inclina a dizer que chega a ser bagaceira. Passados alguns dias da operação de recapagem, o cheio da camada asfáltica ainda se ergue contra nossas narinas, é inebriante, um químico poderoso. Passo por portas de ferro baixadas - são as lojas - passo por igreja que também por milagre em pleno domingo encontra-se fechada. Mesmo em pandemia, a missa deve ter sido mais cedo. Pela rápida excursão aos rumos do Simões Lopes encontramos uma aberta. Enfim, a mais próxima de minha casa, histórica construção que ergue-se coberta por plantas, cartão postal local, apelidada carinhosa ou ofensivamente de "cabeluda", encontra-se  fechada. Seus singelos bancos ordenados e distribuídos para um gramado e um jardim também não recebem hóspedes. Pela pousada próxima de minha morada, um sujeito não alterou a posição entre o meu ir e vir, pois permanece com seus tênis Adidas depositados sobre a mesinha de centro. Tremendo tédio que o inebria tanto quanto a camada asfáltica afetou-me minuto atrás.

Com mais uma volta para abrir e mais uma para fechar, regresso ao último prédio da última quadra da última maior cidade do Brasil, um dos últimos países em alguns indicadores. O que estou fazendo comigo? Quais serão os próximos passos? Emaranhado de incertezas, mas com certeza a chave da porta vira menos do que eu achava que precisaria virar. E isso não é metáfora. Ou é?

Pensava que o inferno era quente

E o inverno era frio

Mas não era diferente

E frio foi o que sentiu

Sobre meu avô

Queria iniciar este texto com somente impressões de mais um domingo de movimento quase nulo no centro de nossa requintada cidade. Mas o estado de saúde terminal de meu avô, com quem logo destaco que pouco convivi, interrompe meus pensamentos e os redireciona. Imagino minha avó que foi casada com ele por muitos anos e com o qual teve duas filhas, minha mãe e minha tia. Meu avô que para exemplo dos mais positivos dentro de casa creio que não serviria, mas foi trabalhador nos caprichos da marcenaria, ramo com o qual eu precisaria renascer para tirar algum sustento/proveito. Aos seus chegados 90 anos, passava a queixar-se bastante de dores no quadril, situação comum aos carpinteiros.

A prima de minha mãe, portanto não filha de meu avô, mas que o tinha como um pai, por ter crescido sem o seu biológico, me contou certa vez das dores de cabeça que o atingiam pelo esforço repetitivo das batidas ou pelas algazarras que as mulheres da casa promoviam, em incessantes bate-bocas. Minha tia contou que meu avô posicionava a parte metálica e, portanto, gelada do martelo sobre sua testa, a fim de relaxar a pressão que a testa exercia. Hoje quem ameaça parar de funcionar não é a cabeça, mas a insuficiência cardíaca. Ele está transferido. Passados 90 anos desse imigrante filho de talvez alemães ou talvez poloneses pela inconstância total do sobrenome Venzke, nomenclatura que muito me faz pensar sobre minhas raízes mais para o centro ou mais para o leste da Europa. Na dúvida que me surge, simpatizo com a fragilidade da Polônia ao competir no mais visto futebol ou mesmo em outras modalidades, agora em clima olímpico e ela com dificuldades para somar um mísero ouro. Mesmo assim, ao longo da história é uma Polônia forte, muito por conta das polêmicas Olimpíadas realizadas nos tempos da Guerra Fria, em que o leste europeu competia forte com países como Bulgária, Romênia, Checoslováquia e a mais forte União Soviética, ainda insuperável por outro país que não sejam os Estados Unidos da América.

Mas voltando a meu avô, a única vez que o vi junto à minha vó, pois quando nasci já haviam terminado o relacionamento havia muitos anos, a única vez que os vi juntos foi no enterro de minha tia-avó. E conversaram como velhos amigos em uma conversa longa e até despropositada pela ocasião. Chegavam a se empolgar e a atrair a atenção dos demais comparecidos. Minha família e suas oportunidades como geradora de vergonhas alheias. No caso também a minha vergonha, pois eram meus ascendentes. Eles conversaram como um velho casal. E de fato eram, com o único porém de que não trocavam tantas palavras e de forma tão efusiva havia no mínimo um par de décadas - ao menos dentro do meu campo de visão - pode ser que tenham feito isso em outra ocasião. Mas como cada um passou a morar para uma ponta extrema de nossa cidade, creio que a raridade daquela ocasião era tremenda.

Pois imagino minha avó a chorar caso se confirme a notícia que nem tanto tememos, pois dentro de minha família há um consenso da passagem da vida e que, se não há mais o que tirar de positivo, qual o realmente mal dele partir? Não estamos em busca dos recordes por longevidade, embora sejam interessantes de observar nas famílias alheias. Meu avô hoje é o mais velho vivo, aos 90. Minha avó está prestes, na outra semana, se assim permitirem, completará 88. A família de minha mãe costuma parar de forma octagenária, como foi o caso da tia-avó do enterro em que minha avó e meu avô se encontraram - falecida aos 87.

Imagino minha avó a chorar pelas lembranças que com certeza evocará, das mais distantes às memórias ainda possíveis de acessar mesmo através da idade idosa. Por exemplo, ela deve ter em mente a longa conversa realizada no velório da irmã. Deve recordar juventude (jovens se casavam) e anos iniciais da vida adulta ao lado dele. Eles que tão pouco têm a ver, mas sinto como se completassem. Ele extremamente calado, ela extremamente falante. Ele calmo como água de poço, minha vó elétrica, tagarela, agitada, ansiosa como poucas pessoas. Se houvessem diagnósticos passados para essas doenças da mente, certeza que incluiriam medidas para conter tamanha ansiedade que a envolve. 

Imagino minha avó a chorar porque das pessoas que duram tanto em nossas vidas e assim partem, as memórias permanecem, mais ou menos mexidas, isto conforme a idade avança e urge a batalha incessante contra outro alemão, o identificado mal Alzheimer. Minha avó não chegou a ser assim diagnosticada, mas passa por um processo até considerado natural de esquecer coisas recentes e trazer à baila acontecimentos de décadas anteriores, sobretudo da juventude e dos primeiros anos da vida adulta. Às vezes evocando personagens que estão apenas no meu imaginário pela falta total de convívio, como "Tiemília", os "Mackdanze", entre outros. Talvez o chamado Adão Bom Vizinho. Pessoas de meu total desconhecimento. Só não totalizado porque minha avó os transporta à nossa casa com histórias desses tempos mais do que remotos.

Imagino minha avó chorar porque mesmo que falasse mal do ex-companheiro, algo de proveitoso teve, nem que seja minha sagrada mãe e sua irmã. Algo de positivo teve, do contrário eu não estaria aqui. Eu que já os amaldiçoei por aqui estar, mas reconheço a importância deles para esse processo evolutivo e progressor da espécie humana. Trecho positivista demais para meu duvidável gosto. Mesmo com tantos os problemas que os levaram à separação e em maior ou menor parte superação, algo de um permanece sobre o outro. Eles que nunca romperam de vez o matrimônio em processo de divórcio. Meu avô arrumou outra companheira para a ponta oposta da cidade e eu os visitei algumas dezenas de vezes - não muitas. Eram encontros anuais e mais algumas vezes. Recordo que meu avô também nos visitava. Eles vinham de moto, formigas atômicas como as do desenho animado. O trânsito se tornou cada vez mais violento e as dores nas pernas - e quadril - de meu avô logo limitaram também essas visitas.

A violência tomou conta de bairro e lembro algumas histórias de tentarem invadir-lhes a casa por meio de golpes de prestação de serviço e também de pedidos de auxílio. Diabos que enganam velhos parcialmente indefesos. A família para meu avô foi muito mais a dos netos de sua segunda companheira. Não reclamo, pois, tão pouco afeto a outras pessoas e mesmo parentes, ainda pude usufruir do outro avô que minha avó nos forneceu, o tenente Gedir, muito prestativo e companheiro, mais jeitoso e carinhoso do que meu avô jamais seria, mesmo distante ou mesmo próximo. Tanto faz. Jamais reclamo sobre isso e, diferentemente à minha irmã, eu o entendo e perdoo qualquer falta. De minha parte, estamos livres e quites. Eu o agradeço por eu estar aqui hoje. Hoje, agora.

Termino com meu reiterado desejo de que meu avô não sofra e, se tiver que ser essa a viagem derradeira, de moto ou seja qual veículo for, que ele a faça e livre-se das dores no quadril, nas pernas, na postura e que jamais tenha novamente que consertar uma cama, uma cadeira ou posicionar o frio do martelo sobre sua testa. Este foi um breve relato sobre meu avô. 

30/07/2021

A última caminhada

Tentei caprichar na última caminhada pelo meu antigo trajeto. Espero na vida ainda fazer muitas caminhadas, mas nunca mais será pelo mesmo trajeto pois vendemos a casa, o ponto de origem das saídas. Era um sábado de sol, até rareado em nosso nublado município, e procurei o centro da cidade, como de costume. Havia pouca presença de pessoas nas ruas, muitas cortinas de ferro baixadas até o nível da calçada. Os cães ainda não haviam levado seus donos para passear, como de hábito fazem aos fins de tarde. Avancei muitas quadras, na linha reta que nossa geografia permite.

Um ponto que me chamou atenção foi em frente ao albergue municipal. Um desolado estava sentado ao meio fio, meio cabisbaixo, para caracterizá-lo desolado. Outro, alto, bastante magro, como se um vento pudesse envergá-lo, saiu de dentro do prédio de entranhas a nós misteriosas. Ele trazia uma marmita e oferecia ao colega, que não consegui, na passagem de minha trajetória, identificar se aceitava, se iria comer, se declinava do convite, se refutava a bóia. Joguei meu olhar para um destino mais distante. Em frente ao albergue, para quem não sabe, localiza-se um dos hospitais da cidade. Lembrei da internação de minha mãe, quando eu justamente conseguia um emprego de verba importante, até para minha confiança profissional e cotidiana. Porém, minha mãe havia passado por delicado procedimento renal na mesma época, o que amansava qualquer sentimento positivo e, mais do que isso, nos preenchia de total preocupação na maioria das horas sóbrias.

Enderecei meu olhar para o maior alcance possível, para dentro daquele conjunto arquitetônico de janelas, que ameaçavam mostrar, mas não permitiam saber-se quem se ocultava para dentro do colosso hospitalar. Uma pessoa em pé também refletia no mesmo exercício, procurava acompanhar o movimento transeunte e dos raros carros pela via. Perguntava a supostos seres superiores sobre os porquês dessa vivência, procurava um modo de passatempo, cansada da programação de televisão aberta disponível, queria aproveitar a vista alta porque morava em uma casa, queria se sentir em casa pela vista alta porque morava em um apartamento, queria desviar o olhar da cena talvez bucólica e deprimente do quadro clínico na cama próxima, queria encontrar uma resposta da qual não tinha, na esperança que o próprio reflexo no vidro ou que a minha passagem, caminhando levemente curvado de fones brancos aos ouvidos, trouxesse. Espero ter ajudado.

Segui me ajudando ao procurar meu caminho pelas bandas da zona norte, região que acho feia pelo seu complexo de engenhos, mais ou menos abandonados, necessitados de pintura, manutenção, limpeza. Pichações ininteligíveis, uma escola em que minha avó trabalhou atirada às traças, da mesma forma que um prédio administrativo recentemente utilizado pela prefeitura. Prédios de funções cruciais no século passado ou em temporadas recém passadas. Restaurantes que trocaram de nome. Uma família na praça que bifurcava a rua logo adiante. Somente eles no banco do parque. Um casal, pelo que me recordo e uma criança a rodopiar, pequeno primata sobre sua bicicleta, procurando diversão enquanto os adultos apenas desfaziam o laço do enfado de qualquer fim de semana à tarde. A criança que pouco difere da presença ou ausência desses dias e quando se dá por conta caminha a esmo por sua terra natal. O adulto que sabe que sábado é folga e obrigação de aproveito, mas como fazê-lo? A criança sabe como agir e rodopia entortando o guidão da bicicleta, manuseando-o ora para um lado, ora para outro. Os ultrapasso. Encontro calçadas tão estreitas que preciso flertar com a ideia do meio da rua, contra os perigos dos carros em sentido contrário. Eu os vejo antes de me verem. Nenhum problema em desviarmos levemente o percurso.

Da calçada estreita, reparo em um conjunto de degraus que não bem representam uma escada, mas levam para um prédio de pequeno comércio, armazém ou farmácia - como são comuns por aqui as farmácias - para onde na vidraça em vitrine anunciam o jornal descontraído para quem se descontrai Diário Gaúcho. Meu amigo me informou outro dia quando ali passávamos que naquela escadaria haviam matado um ex-menino e agora ex-adulto que estudava conosco na mesma escola. Declinado ao tráfico de drogas teve o triste fim por encomenda bem cumprida através dos disparos que viraram anúncio na página dos nossos Diários Gaúchos locais, em foto do corpo estirado circulada por alguns meios virtuais - possivelmente, porque a mim não me interessaria ver.

Contorno essa calçada e prefiro investir pelo contorno da zona norte em shopping que só lembro tê-lo adentrado em distante infância. Prédio branco de arquitetura duvidosa e amplo estacionamento, por onde alguns gradeados condôminos olham para o exterior de suas vidas no espaço urbano. Eu contorno a rua e sigo em frente, ao esmo meio planejado de meus movimentos. Pelos condomínios observo e sou observado por vidas que há muito tempo habitam por aquelas bandas. São pessoas que curvaram o dorso mais do que hoje erroneamente me curvo. São cabelos que branquearam ou caíram, são casais que se criaram ou se desfizeram, são mortes que os separaram ou a plena vontade garantida pelas assinaturas em ata de divórcio. São casais recontratados, são novas e velhas uniões, são bodas das mais diversas cores. São gente junta com filhos distantes. São gente junta, com o filho ao lado esperando alguma ordem serviçal de busca ou entrega. São amigos que se ajuntam para curtir o solzinho no que no Rio Grande do Sul se ponderou em comum acordo chamar de lagartear e o dia estava propício para tal atividade preguiçosa.

Enquanto escrevo essa breve passagem, meu maior exemplo próximo, meus pais discutem os hábitos dos vizinhos que se interferem em nossa vida através dos ruídos que descubro próprios dos apartamentos, que muito afetam a ordem natural do desenrolar de meus pensamentos. Quase me misturo à discussão, mas prefiro continuar debruçado sobre minhas linhas. Onde eu estava? A zona norte. Os casais idosos. Os amigos de longa data. Os passos retesados, tensos, diminutos, calculados no anti-quedas. A oposição jovial a cruzar o caminho, de passos incertos, arrogantes, incalculáveis, inimigos da matemática mortal que sombreia a vida. Arrogantes por ignorarem o fim que a todos nós aguarda. Caminham determinados com o mate, com a cuia, com a certeza de mal de alguém falarem, de se atualizarem por seus smartphones. Visualmente namoro vultos, acompanho passos, ao mesmo tempo ciente de que não devo exagerar-me nas perseguições visuais, evito chamar a atenção quaisquer que seja e prefiro o trotar a esmo que volto a repetir como objetivo e finalidade. Abandono as visões mais ou menos agradáveis, me dirijo a outras, gosto da inconstância, gosto da improbabilidade, da probabilidade, da surpresa do que vou encontrar pela frente.

Passo por um par de charretes, comuns a nosso município, incomuns para o corretor ortográfico que aqui grifa em vermelho como se, assim como é para muitos, elas não existissem. Acompanho de revesgueio seus movimentos para dentro dos descartes alheios, o manuseio, na seleção, o subir e o descer do veículo, com a esperança que vem e que vai, como ondas. Não se comunicaram entre eles e nem eles comigo. Segui minha viagem. Reencontrei duas moças com as quais havia cruzado caminho mais cedo. Não entendi para onde iriam, já que a avenida de destino jovem era para o outro lado. Me dirigi para lá, passando dessa vez por guaritas de segurança para um trecho de bairro serpenteado por casas mais altas e subsidiadas. As guaritas correspondiam ao pouso/local de trabalho de porteiros e seguranças particulares contratados. Desafiavam o tédio com o gosto amargo do café, com palavras-cruzadas ou simplesmente procurando algum dorso para onde pousar os olhos.

Mais adiante, enquanto caminho entre as maiores casas do bairro, com garagens amplas e muros que escondem momentos alegres em churrascos ou tristes apesar dos dinheiros, me aproximo da avenida de maior público e passam por mim uma família de ciclistas: duas mulheres e duas crianças. Penso na minha incompetência para desbravar os mesmos movimentos sobre duas rodas. Sigo caminhando até perpendicularmente ultrapassar a avenida movimentada em direção a uma recordista de imóveis à venda, local onde os jovens gostam de disputar rachas nas tardes de domingo ou nas noites de qualquer dia. Me surpreende e surpreende a vários motoristas um desavisado na contramão, recebendo a saraivada de buzinas para que guiasse pelo rumo correto. Ele consegue um desvio para a rua lateral, onde some de minha vista. Apresento a dúvida constante entre o sol quente ou a sombra a esfriar no resfolegar do fim de tarde. A parede frontal do clube de tênis projeta uma imensa sombra até o asfalto da rua. As árvores altas que ornamentam a agremiação terminam o serviço de encobrir o sol. Não gosto de caminhar por entre os demais andarilhos e corredores, na via central, disputando espaço também com bicicletas. Prefiro a calçada mais distante dos holofotes crossfiteiros. Gosto de observar se há algum jogo de futebol rolando em um campo em que muitas vezes frequentei na infância.

Acho interessante quem diga que a algum lugar muitas vezes foi, sendo que não foi. Ao passo que por mais que tenha ido dezenas de vezes ali, ponho em dúvida se digo que fui frequentador. Mas fui, bastante joguei bola naquele campo da via central de traves inclinadas para trás, desde a construção ou sabe-se lá qual efeito do solo ou do entortar por forças humanas. Alguns batem bola, me questiono porque não jogam juntos, recordo da máscara em meu rosto, desgraçada pandemia e encontro assim a resposta. Melhor que cada grupinho jogue somente com os seus - quando vê nem deveriam jogar. Observo, também não quero chamar atenção, assim como também passo pelas pracinhas e tento adivinhar do quê as crianças brincam, se diferente ou semelhante aos meus passos de infância. Raramente entendo. E quem as entende passados tantos anos? Mais me afasto desse conhecimento tão importante enquanto me estendo por outras áreas que para o quê servem?

Transferido de calçada, rumo à direção onde bate sol, ainda encontro uma outra família que me chama atenção. Após a mãe passar com o pensamento desvirtuado e distante, segue-se a ela a dupla de crianças. Um irmão mais velho empurrando sua menor versão, uma menina dentro de um carrinho assim projetado para crianças. Ele tem um determinado semblante de insatisfação, pois, tão pouca idade, de certo gostaria que alguém o empurrasse. Os irmãos mais velhos cedo lidam com essas tarefas. Novamente frisando, a mãe adiante na calçada e o par de pequenos dando seu jeito de acompanhar os maiores e mais separados passos da progenitora. O olhar emburrado do menino gordinho ficou-me na mente. A menina, ignorando a empatia ao mano, sorria divertindo-se.

Tentei um olhar complacente ao menino que trabalhava na ingrata missão de carregador, mas não sei afirmar se ele compreendeu. Talvez mais adiante compreenda, se assim se deparar com essa reproduzida cena, conforme o passar das gerações. Para os últimos passos, regressei para minha zona de sempre, o supermercado abandonado por onde lacraram as paredes e, mesmo assim, pela fachada alguns montam acampamento nesses caóticos tempos de pouca política governamental de acolhimento e renda de susbsistência - milhões de desempregados. Pelo cenário das pichações e tendo como vista de seus barracões improvisados o pátio acimentado de onde havia o ir e vir dos carrinhos de super. Logo adiante, nem 50 metros, uma padaria com drive thru, novidade pandêmica, contrasta os pontos do retrocesso e do avanço, do que fechou e do que abre, de quem se alimenta e quem precisa lutar arduamente por algo tão básico. Um pouco mais adiante, me deparo que há o conjunto colossal arquitetônico de prédios dos mais altos de nossa cidade, por onde dizem viver muitos dos jogadores do Grêmio Esportivo Brasil. Grande obra em condomínio de gramas naturais e artificiais, salões de festa, portaria e outras exclusividades que excluem a nós passeadores de calçadas.

Mais adiante e mais condomínios, os mais velhos apelidados de Rua Brasil e mais adiante os novos blocos de prédios que erguem-se em velocidade absurda, mudando o cenário, o horizonte, a vista ao céu e tudo o mais do que me era familiar de bairro Areal - e já não o é. O posto de gasolina, a entrada para a rua em terra muito em breve asfaltada como nunca havia sido, meus pais que haviam morado ali três décadas atrás. Abandonam o bairro e agora a rua recebe a camada asfáltica. Típica para aplicar a Murphy. Pelos paralelepípedos distorcidos das últimas quadras, visualizo o senhor que sempre está parado ali com o rosto de olhar vidrado, que eu sempre tento cumprimentar; ele quase não se mexe, mas responde afirmativamente à minha tentativa. Todas as vezes é engraçado e ao mesmo tempo desconfortável e assustador. Tem obra na esquina, um parente meu distante e entrando para a idade idosa toca a massa obreira junto com jovens do sistema braçal, apoiando-se em empregos do que há disponível para fazerem. Costado de outro conjunto de prédios em rua de esgoto à vista, calçadas que somem e reaparecem, terrenos baldios, mas a maioria construída como bem quis o autor, de simulacros de palacetes a apertadas aproveitações de terreno. Chego a meu destino final, no fim do final da quadra, para meus últimos momentos em hoje, passados 14 dias, apenas sonhado bairro no invólucro sútil de minha mente.

Fim de papo.

27/07/2021

Sepultamento

Estou preso no buraco

Do apartamento

É um simulacro

De um sepultamento

Um dia eu vou

Um dia eu vou ter um treco

No outro dia vou ter mais nada

No outro dia eu vou ter um terno

E uma moradia fixada


Um dia eu vou ter um treco

No outro dia vou ter mais nada

No outro dia eu vou ter um terno

E uma moradia fixada


Um dia eu vou ter um treco

No outro dia vou ter mais nada

No outro dia eu vou ter um terno

E uma moradia fixada


Num dia a cabeça cansada

No outro dia eu viro um boneco

Em uma caixa embalada

Em uma parede de cimento


Num dia não se aguenta nada

No outro dia nem se tenta

Para dentro da gaveta

Rumo à outra morada

20/07/2021

Viagem ao Desconhecido - Ana - Capítulo 1

Ana havia estranhado que conhecia nenhum daquelas dezenas de passageiros. Ela já havia feito aquela viagem também dezenas de vezes, entre a região metropolitana e sua pequena cidade, Sertão Santana, ao sul de Porto Alegre, rumo ao Sul do Sul. Viu cada pessoa mecanicamente demonstrar o bilhete ao cobrador, que era um mero assistente do motorista. Ela impulsionou com dificuldade sua mala de rodinhas para o degrau correspondente das entranhas do ônibus. A bagagem de mão colocou a tiracolo e se dirigiu também para o interior da nave. Escolheu um bom lugar, deu-se por conta, nem tão atrás, para perto do banheiro, nem tão para frente, onde sentia-se inoportuna, como se atrapalhasse o trânsito dos transeuntes que embarcariam depois, embora dessa vez ela fosse uma das últimas a subir a bordo.

Deu uma última olhada pela janela que já iniciava o processo de embaçar-se pelo fluxo de respirações daquele diminuto enxame. Diminuto, porque, por conta da pandemia, o número de passageiros era reduzido no local e o acesso era restrito aos portadores de máscara. Ela aproveitou o espaço disponibilizado pela poltrona ao lado e melhor aconchegou-se. Afundada no conforto que lhe era disponível, mergulhou os olhos para o interior de sua mente, mantendo a visão encoberta pelas próprias pálpebras. Antes, verificou se a playlista de seu dispositivo conectado ao aplicativo Spotify estava de acordo com suas vigentes exigências. Estava tudo em ordem.

Ana acordou achando que havia perdido o horário. Sabia que a viagem não era tão longa quanto quando vivia em Rio Grande e o ir e vir da região metropolitana lhe custava mais no dinheiro das passagens e mais horas empobrecidas por escutar somente suas repetitivas canções, vez ou outra alternadas por novas descobertas dos últimos tempos. Sabendo que Sertão Santana não distanciava-se tanto da capital do estado, era possível que houvesse cochilado e perdido a saída. Mas, ao olhar pela aparente normalidade em sua volta, concluiu também que se perdesse a hora de saltar seria notificada pelo mesmo assistente que apoderava-se de seu bilhete no embarque. "Estava tudo em ordem", repetia mentalmente para si mesma, talvez balbuciando o final da sentença com a ponta dos lábios.

Mas uma coisa chamou sua atenção a um par de segundos depois. Mirando em frente, para a poltrona imediatamente dianteira a seu nariz, notou que o nome da empresa era DATA, diferente da que muitas vezes viajou, a DATC. Primeiro sentiu-se delirante pelo efeito sonífero de suas horas de inércia e resolveu contrapor a vontade dos especialistas em tempos pandêmicos (os infectologistas) e passar as costas dos dedos, os nós sobre os olhos. Retirou qualquer princípio de remela que se formaria naquele lapso e correu panoramicamente a vista, em um movimento traveling, como a câmera de um filme rodado em primeira pessoa. Notou o pior, para certificar de que o erro não era o captado pelos olhos: todas as poltronas, mais cerca ou mais longe, informavam que a empresa de transporte que a conduzia a Sertão Santana (ou para onde?) era a DATA.

Em seguida, notando a ainda total apatia e tranquilidade dos demais passageiros mascarados, sem reconhecer um único rosto que lhe fosse comum do cotidiano de pacato município emancipado em 1992, tentou adivinhar as respostas com seus próprios recursos. Trazia consigo um cafona relógio de pulso, que, para sua surpresa, o descobriu travado em um horário muito próximo ao de embarque. Como poderia isso? Em seguida, sacou da bolsa o celular que traria a resposta do horário e outras tantos, tudo isso ao alcance de poucos códigos a serem destrinchados pelos inquietos dedos. Mas, ao tentar a senha para liberar a tela inicial, foi surpreendida com o acesso negado. Tentou novamente. Ora, Ana, acorde logo, está perdendo tempo errando coisas que nunca erra. Um relógio de pulso com problema de bateria, um celular com bateria, olha ali, 93%, mas trancafiado pelo seu eleito esquema de segurança. Tão seguro que agora nem ela conseguia liberá-lo ao uso. "Droga" - exclamou e era possível que seus passageiros vizinhos pudessem ouvi-la a lamuriar.

Um senhor que apenas tentava esconder o bigode proeminente sob a máscara, com um rosto magro que lembraria o de um personagem Mario Bros envelhecido, a observava com um olhar atônito, circundando a barreira do indiscreto, diria-se. Percebeu, como era de costume, a quantidade significativa de população velha no veículo. Estranhou que, pelo tanto que pensava ter dormido, não havia sinal ainda da chegada ao município de Sertão Santana, ela que praticamente decorava cada buraco que o ônibus colidiria na estrada, fazendo balancear-se suas 18 toneladas sobre. Ficou cada vez mais inquieta e passou a tamborilar com os dedos, que lhe restava fazer?

Não queria utilizar o banheiro do veículo, pela pandemia e porque nunca quis, nem em outros tempos, claro que não queria. Mas resolveu ir para lá, dirigir-se aos fundos, 50% da intenção para realmente aliviar-se, fazia tempo não urinava, outros 50% para tentar puxar uma conversa sobre a demora da viagem e descobrir o que estava acontecendo. Trôpega, mas nem tanto, observando que a estrada devia ter sido requalificada desde a última vez que deixara a capital para aqueles rumos, a visitar seus pais, eles já vacinados, ela ainda não. Apoiou levemente a mão somente sobre algumas poltronas, tomando o devido cuidado de encostar em nenhum topo de cabeça, entre aqueles pelos grisalhos do que um dia foram louros, outros plenamente entregues à calvície. 

Não viajava com os óculos para leituras próximas, provavelmente estava estojado para dentro de sua bolsa, que permanecia inerte sobre a poltrona enquanto ela tentava entender aqueles símbolos escritos à porta do banheiro, quando estava interna a ele. Havia um aviso, desses das companhias de transporte sobre o bom uso dos dispositivos e também haviam algumas pichações que desocupados faziam ao fingirem-se de ocupados com as necessidades fisiológicas: jovens. Cada vez mais tonta, criando quase uma poderosa vertigem, deu a descarga, lavou as mãos e começou o caminho inverso ao que fizera. Inclinou-se um pouco, quase de joelhos, distribuindo sua massa para equilibrar-se a algum desavisado solavanco. Queria assim tomar a atenção de uma senhora. Ignorou o distanciamento social em busca de derradeiras respostas.

- Demorando a viagem hoje, né, senhora?!

Nada de resposta. Ela não parecia ouvir direito. Com a noite que caía, o semblante em frente, em riste, queixo levemente arrogante.

- Sabe se falta muito para Sertão Santana? - Insistiu Ana.

A senhora dessa vez se virou, entre o bruscamente da surpresa de alguém falando com ela, que parecia absorta em qualquer pensamento que o valha, e o calmo e sereno de quem não devia satisfações àquela intrometida. Com a boca coberta pela máscara, a senhora não hesitou em enrugar, franzir a testa o máximo que pôde para exprimir seu total desconhecimento sobre o que a desconhecida falava. Não havia modo de se entenderem.

- Desculpe - disse por último Ana, já embrenhando-se pelo corredor rumo ao seu lugar, nem tanto atrás, nem tanto à frente. Arriscou uma olhadela para trás e certificou-se da cena que a vez rubrar por sob a máscara, mas sem que pudesse esconder a transmissão de sua vergonha: a senhora a encarava, aparentemente ainda incrédula pelo encontro repentino.

Ana quase errou os passos, por pouco seus joelhos não conheceram deliberadamente o solo do corredor, precisou apoiar as mãos mais do que gostaria. Para completar o vexame que só ela (e a senhora?) sabia carregar, encostou na careca de um dos vovôs à sua direita. Era um princípio de pesadelo, sem dúvida. Maior ainda tornou-se quando o ônibus, com Ana já recostada, querendo proteger-se de corpo e extremidades todas para dentro das roupas, tal qual uma tartaruga em modo de defesa, na falta de uma terra fértil para o movimento do avestruz, o ônibus guinou em curva à direita, à qual Ana não fazia ideia de qual entrada significava aquele trajeto. Deparou-se ela pela janela que tratava-se de altos e góticos portões de ferro retorcido em bonitas e trevosas formas e pintura. De pronto não sabia se aquela bem retocada pintura a assustava ainda mais no tom brilhoso do negro ou se uma ferrugem tornaria tudo mais decrépito e inacreditável. Uma placa confirmou sua total e horripilante suspeita, aponderando-se de si uma realidade inacreditável: estava ela, pelas formas vistas ao longe, não mais pela leitura embaçada de seus olhos de perto, placas que indicavam que ela estava em algum lugar perdido e oculto pelo leste europeu.

Como sair dali?

19/07/2021

vento na janela

a janela bate com o vento

na constância de um ritmado pêndulo

faz pensar minha decisões vividas

faz pensar as que ainda serão decididas

faz pensar em como todas doem

faz pensar onde elas podem

me levar

o vento sopra na sua inconstância 

me leva daqui aos tempos de criança

às vezes leva embora às vezes traz

minhas ânsias 

às vezes a paz forma com ele aliança

e com vento a janela balança

traz com ela o corvo de alan poe entre outras

lembranças

e se hoje a umidade não a embaça

do corvo e dos tempos restam sobre ela

carcaça 

o vento animado ou só fazendo seu trabalho 

rebatendo-se nos galhos das plantas

traz maior preguiça para quem se levanta

traz a esperança a quem fica deitado

o vento personagem central audível 

de acordo com quem ele contata

bate na murada, na calha e na estátua

bate na escada, nas folhas farfalha

em tabela da janela aos meus ouvidos

trilha sonora dessa hora dos pensares

desconhecidos

se sobrepõe por novos caminhos

entre idos e vindos - trajetos perdidos

entre os achados segundas domingos

e álbuns de fotos há tempos sem carimbos

pelos carinhos há muito acabados

pelos clamores há muito apagados 

pelos amores que já não me desperta

não é possível com esse vento deixarem

janela aberta 

Alma dos Mortos

Se o vento fosse pela alma dos mortos estaria ventando pouco ainda. Pelotas, julho de 2021.

Tento proteger-me dos fins trágicos enquanto observo tantos outros.

17/07/2021

Pá Virada

Não quero buscar tratamento como se eu tivesse que necessariamente ser corrigido como em uma esteira fabril. Quero saber lidar com esse formato de pá virada.

Saber lidar é o bastante. Como lidar é a incógnita, tremenda variante fugitiva, escorregadia por entrededos.

Compondo sóbrio e sábado

Sábado e sóbrio e compondo

Pondo uma palavra após a outra

Pondo uma pedra após a outra

Sobre o poço da tristeza


Compondo sóbrio e sábado

Pondo um dado após o outro

Pondo um fato após o outro

Subindo por inevitáveis escadas


Compondo sábado e sóbrio 

Pondo um imbróglio após o outro

Sobrepondo e sobrepondo

Até que o coração inchado de tantos sábados 

Pareça novo

Pondo para fora

Por mais uns minutos, por mais umas horas

Vislumbrando ao longe aurora 

Como um pequeno ninho: domingo

Mundo Ruim

Será que (só) nós (iniciados) sabemos que o mundo é (tão) ruim (assim) ou apenas nós sentimos o quão ruim ele é? Fato é que para nós ele é péssimo.

Procura-se

Procuro fazer tudo certo. Sei que não vou conseguir, nem que adiantaria caso conseguisse.

O mundo é o todo e nos escapa. 

O melhor foi ontem

Arrumando as mudanças para trocar de casa me dei conta de que o melhor dia sempre será o que já passou, porque a dor do dia também já foi.
O melhor dia sempre será ontem.

Como escritor

Como escritor, sempre pensei em contar as tragédias e não vivê-las.

14/07/2021

Reflexões sobre o filme Salt and Fire

Não se escreve mais sobre as estrelas porque as cidades nem as deixam vê-las.

Aprendi que todos os gestos, ações e palavras podem contagiar os outros e criar memórias que nem fazemos ideia que geramos.

O deserto sempre é autoconhecimento.

Quando não houver mais para onde ir, para onde vamos?

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"A Verdade é a filha única do Tempo"

09/07/2021

nouvelle vague

eu queria viver contigo uma nouvelle vague
eu queria estar contigo até que o dia acabe
eu queria escrever contigo algo que ninguém apague
eu queria viver contigo uma nouvelle vague

eu queria viver contigo um filme francês
eu queria estar contigo até que acabe o mês
eu queria começar contigo no era uma vez
contigo eu quero terminar com toda a lucidez

eu queria viver contigo uma nouvelle vague
eu queria viver contigo algo que ninguém pague
eu queria abrir contigo portas que ninguém abre
solucionar, solucionar contigo coisas que ninguém salve
compartilhar, compartir contigo coisas que ninguém sabe
e alternar e viver contigo mesmo em outra vibe

arquitetar contra o inimigo um plano de maldade
e fugir, se esconder contigo em um esconderijo
e na fuga revezar contigo, tu dirige, eu dirijo
acabar em qualquer lugar, teu olhar como abrigo

eu queria viver contigo uma nouvelle vague
acabei escrevendo uma música pela metade

despluga que acabou

02/07/2021

Tomar um Veneno

Agora eu vou tomar um veneno
Por aqueles dinheiros
Por aqueles sentimentos
Por todos aqueles que estou devendo

Saúde para todos!
Todos menos pra mim
Benção para o povo
Que chegou o meu fim

Agora eu vou tomar um veneno
Uma pena que disso tudo eu desconheço
Se me perguntar, não sei qual recomendo
Pode ser indolor, pode ter mais dor
Essa diferença é o de menos

Pois agora eu vou tomar um veneno
Por aqueles do poder
Por aqueles que almejam
Por todos aqueles que estão vivendo

E um viva para todos!
Todos menos eu
Do mais velho ao mais novo
Praquele que nem nasceu
Deixo aqui meu 'boa sorte'
Que hoje vou aos braços da morte

Agora eu vou tomar um veneno
Qualquer nome que soe esloveno
Qualquer nome que soe eslovaco
Pode chamar que agora só tem vácuo
E procurar meu CPF cancelado

A Última Dose

Agora eu quero ter um final trágico
Por incrível que pareça é muito mais fácil
Do que os momentos que são mágicos
E chegaria tão rápido e tão ágil
Quando se dá conta já partiu

Agora eu quero ter um trágico final
Por óbvio que é muito mais fácil
De rimar
Coloca qualquer coisa legal
Que você não vai decepcionar

Agora eu quero um laço transparente
Que me enforque que me deixe
Sorridente
Um laço apertado com dois nós
Eu não aguento nem mais eu

Não vai ser a primeira pessoa
Que vai se acabar nem tão à toa
Também logo não vai ser a última
Que chegou à essa máxima culpa

Agora eu quero ter um final trágico
Por incrível que pareça é muito mais fácil
Do que os momentos que são mágicos
E chegaria tão rápido e tão ágil
Quando se dá conta já partiu

Agora eu vou beber a última dose
No obituário chamada de overdose
Espero que alguém que se preze
Seja quem escreve sobre essa morte

28/06/2021

O que é

Te questionaram o que é poesia e

Percebi que as melhores coisas que faço não sei ensinar


Sinta mais

E se nada te vem, admira

a wislawa szymborska

tento ressuscitá-la, poeta morta
mas ninguém se importa
além da minha mente que estala
da minha mente que instala
suas acomodações, noite outra

confiro sua data de nascimento
teria noventa e oito hoje
quase lhe desejo morta
para melhor dedicar-te o poema

primo sempre pelas rimas
como podes ver acima
como preferes os teus assim, sem açúcar
com um pouco esforço a gente muda
e agrada a visita - já tão íntima

adoro seu senso de humor
estrategicamente mais defensivo que ataque
forma assim bela práxis
se é que para isso algo serve

sorvo tudo que trazes
em temperatura ambiente
o frio de hoje em tua homenagem
penso nos campos de lá, daqui as pastagens
e nas palavras - ruminantes repetentes

absorvente de teu humor
em alto teor, de timbre e de álcool
solução que nada cura, mas banha os problemas
dilacera o que era puro eczema
e agora é nosso - porque tu o inspiraste
poema

14/05/2021

passado contínuo

eu perco muitos dias
com meu humor que tudo rechaça
eu perco muitos dias
como a comida
perde o gosto sob a cachaça

eu perco muitos dias
dos que passaram a nada que se faça
fácil pensar que eu não perderia
depois de passada a desgraça

eu perco muitos dias
outros dias eles que me perdem
nada a mais de fantasias
de paraísos e eden
mas muitos desses dias
já seriam dias que me servem


09/05/2021

por dentro

me preocupa
a tua cuca não entender
me ocupa
a missão de te dizer

tanta coisa oculta
tanta coisa a transparecer
e a luta
que resulta
tudo isso no ser

quantos porcento eu faço
do teu motivo
do teu cansaço?
quantos porcento o erro crasso
absolvido
do resultado?

me preocupa
a luta que importa não aparecer
me ajuda
a mostrar o que dê

tanta coisa oculta
tanta coisa a transparecer
e a luta
que resulta
tudo isso NÃO ser

quantos porcento eu meço
no teu caminho
no teu progresso?
quantos porcento eu me desfaço
quando me despeço
no teu abraço?

quantos, quantos porcento
eu me aumento
contra os teus percalços
no meu intento?
quantos, quantos nem me lembro
quantos dias se foram
desde aquele mês-embro...

por dentro não meço os porcento
por dentro o tempo não esfacela
o quanto eu me lembro
eu me lembro dela
por dentro não meço os porcento
por dentro o tempo em outras janelas
o quanto eu me lembro
a lembrança aquela

08/05/2021

Breve Profecia

Eram 18h15 de um dia do meio de maio. O relógio da parede ainda não havia perdido o fôlego dos ponteiros, que se arrastavam obstinados. Um sobre a mesinha ao lado da cama confirmava a ditadura imposta pelo primeiro. Se não estavam sincronizados, o primeiro ganha do segundo por um piscar de olhos. Viviam empatados. Empatada estava a comorbidade da senhora repousada sobre a cama, única posição que lhe apetecia para esperar a divina sentença. O obituário, o testamento, o luto, o preparo com a funerária. Tudo isso já havia sido providenciado. O estado de saúde era irreversível. Um homem, criador de cabras de 30 e poucos anos estava sentado sem apoiar as costas no abandonado encosto da cadeira. Ele apoiava as mãos em altura relativa ao peito, suspendendo ambas sobre a extremidade de uma velha bengala. A mesma de seu falecido pai.

Ele possuía o dom de prever a hora exata em que uma pessoa cruzava a derradeira linha, dessa para, diziam, ou costumavam dizer, para uma melhor. E de repente ele, em mais uma das voltas do ponteiro do relógio, levantou-se sem sobreaviso e foi comunicar a família. No cômodo ao final no corredor, na sala, anunciou de pé o respeito pela fatalidade que viria a ocorrer ainda naquela hora. Tirou o chapéu da cabeça, inclinou-a em pesar e enrugou a testa como que a procurar em uma bolsa o bilhete da exatidão. Fez um gesto com a mão que soltara da bengala como se afastasse a um imaginário inseto. Voltou a apoiar ambas sobre a extremidade do cajado. "Vocês me perdoem, mas não me está claro se 18h56... ou mesmo 18h59, mas das 19h não passa, não há dúvida." Repetiu o gesto com a mão em um capricho, ou mesmo um cacoete que não poderia ignorar de torná-lo a fazer.

Sua fama era tão absoluta na localidade que já havia recebido antecipadamente. Não cobrava um valor exato por seus serviços, por mais que não falhasse nos comunicados. Mas a ajuda de custo era sempre bem-vinda, afinal, era um simples criador de cabras e a profissão convivia com o desprestígio e com as limitações financeiras em vigente crise nacional. Cada vez que alguém adoecia gravemente pelo povoado, ele era convocado porque, mesmo sem mexer um músculo em relação a agentes funerários, questões burocráticas ou de preparações para os ornamentos das primaveris e floridas despedidas, era ele quem determinava a hora em que passariam aos próximos passos, adiantando os inevitáveis acontecimentos. Dessa forma, era confrontado por quem não aceitava as inegociáveis verdades. Ao mesmo tempo em que recebia por aquele mítico complemento de renda, também acumulava maldizeres, acusações das mais baixas, críticas às suas maneiras enigmáticas de descobrimento. E, sobretudo, ninguém entendia porque a capacidade de previsão era reservada para, no máximo, duas horas antes da fatalidade. Ele nunca previa a morte com maior antecedência, para o lamento daquela comunidade que já lhe confiava nos poderes.

05/05/2021

Vidas que perambulam

Seguidamente cruzamos com vidas que consideramos malditas e nos imaginamos no lugar delas mas apenas por alguns segundos ou minutos e logo as esquecemos, em troca de novos pensamentos. Enquanto isso, aquelas vidas ainda estão a perambular em busca de alguma verdadeira piedade e de algum conforto.

23/04/2021

Pós Travessuras da Menina Má

Comentaram intensamente sobre hoje ser uma dessas datas, um Dia do Livro. Mediante o conhecimento dessa informação, confesso um esforço a mais para terminar As Travessuras da Menina Má, mais um livro do peruano Mario Vargas Llosa, este que lhe rendeu simplesmente o prêmio Nobel de literatura. Cheguei à conclusão e não me surpreendi com o desfecho, sendo Vargas Llosa expert em preparar esses terrenos, que, se fossem comparados a terrenos, literalmente, seriam terrenos castigados pelas ações corrosivas do clima e pela ação degradadora do ser humano.

Mais uma vez encontro-me diante do cursor do mouse que pisca e me convida a transpassar minhas impressões para o espaço em branco. Imagino, nessa hora, o saltear dos demônios internos em direção à máquina, para o devido lugar em que ora tento posicioná-los, enfileirá-los, domá-los. Tarefa difícil que somente cada escritor sabe o quanto enfrenta. Nessas horas, penso também em todos aqueles que passaram por essas missões com a pena e a tinta em mãos, nos pergaminhos demorados e sagrados de antigamente.

Este livro abriu um preâmbulo sobre a vida que tenho a encarar pela frente. Missões e mais missões como essa que ora me dedico. O personagem principal, um tradutor, um peruano que lançou-se à Europa como meta e sonho, o principal deles viver em Paris. O reencontro com a menina que realmente amou. Ela nunca o tratou bem. Ele é insistente por ela, mesmo sendo usado. Me faz questionar o que temos de propósito para essa passagem, para essa existência. O trabalho dele, que circunda a narrativa, a tradução, é bastante nobre. Embora muitas pessoas reduzam o valor presente nas palavras, imagine o inalcançável tom que diariamente nossas palavras, mesmo o que aqui escrevo, não encontram na maior parte da humanidade, porque a maior parte da humanidade não dispõe dos conhecimentos necessários para decifrar o que é dito ou escrito em nosso idioma. A tradução é fundamental. Os tradutores, de encontros da Unesco, como ocorre no livro, ou em outras ocasiões, são também embaixadores pela paz. Mas esta ideia sobre a tradução apenas permeia a narrativa principal: os encontros de Ricardito com a menina má.

A transposição das ideias desse livro, que não fui atrás da informação mas deve ser de conhecimento a nível mundial, vide o prêmio Nobel, para indicarem algum rumo à minha vida é um egocentrismo desvairado. Por óbvio que é. Mas, ao mesmo tempo, me encontro contente pelo papel que a arte desempenha em atiçarmos-nos, em buscarmos inspiração, coincidências e motivações. A arte cumpriu sua missão. Foi um pouco antes de iniciar a leitura dessa narrativa, mas após já ter a ideia de comprar o livro, sem saber exatamente do que se tratava, foi aí que aprofundei, afunilei minhas conversas com a que tracei o paralelo de que ela é a minha menina má. Tal qual a personagem principal, a amante de Ricardito na história, ela também oferece um amor até inesperado pelo que se propõe entregar-se em madrugadas. Promete, estende tapetes e logo recolhe mundos e fundos. Tudo isso pelo efeito do álcool ou pelas suas ideias mais resguardadas que erupcionam verdadeiras nessa hora. Com minha maneira de gato escaldado, mantenho o pé atrás, a distância necessária, mas pronto também para um possível recuo estratégico que represente o impulso para o grande salto. É sempre um risco, mas é uma aventura, uma adrenalina, uma vertigem, um sentimento de sentir-se vivo que muitas vezes parece em falta nas gôndolas padronizadas dessa passagem. Tal qual Ricardito, sinto que saltaria por ela ou faria outras loucuras ou, como na própria linguagem do livro, faria as breguices que fossem necessárias como provas intrínsecas à essa situação.

Se preencho bem essa lacuna como o Ricardito, por sua vez, sei que ela enfrenta sentimentos suicidas e a incredulidade quanto ao amor romântico. Também me posiciono reticente quanto a isso, mas o sabor dessa vivência como um sabor de sorvete que sabemos não voltar a experimentar da mesma forma, parece-me válido. E quanto mais ela repete que no amor romântico não acredita, mais estudo aplacar nisso um reverso em que na verdade ela acredita, caso contrário não o citaria tantas vezes. Por que tanto falaria de algo que considera não existir? Ao mesmo tempo sei o quanto ela se sente confusa, talvez exatamente por esse conflito interno: existir ou não existir? Eu ou quem nessa narrativa? Como ela é muito acima da média em todos os requisitos, não me tardaria criar fantasias ilusórias e de ciúme sobre quem ocuparia meu lugar quando ela passar a acreditar no que afirma não crer. Não acredito em destino, mas considero muito bonitas as nossas coincidências.

Não acredito que meu destino seria tão belo quanto ela. Distante do positivismo, afastado dessa possibilidade afirmativa, o mais comum seria aceitar que ela realmente não crê na exploração de um amor romântico, este que seria altamente lindo enquanto durasse - quanto duraria? tu também, "Ricardito", tão efêmero sentimentalmente e enjoado e criador de fantasmas paranoicos buuuuu - ou, caso ela acredite, caso ela passe a acreditar, não seria contigo, Ricardito, por que seria contigo? Que tens de mais? Tu que, sendo tradutor ou professor ou o que for, também não terás os recursos para o conforto e a hospitalidade necessários para essa vida conjugal burguesa. Tu que, em casa, encontras apenas o exemplo pragmático de teus pais, que se confortam no desenvolver das tarefas, mas enxerga neles o auge da primavera amorosa como passado, distante do despertar de cada nova manhã e do horizonte futuro. Tu que, mesmo assim, lê, ou melhor, apenas passa os olhos, ignora as dores, os espinhos e os machucados das entrelinhas e aceitaria os termos de uso. Tu que avalia que é melhor existir o amor nessas condições efêmeras que findam logo adiante, em alguma esquina, do que conviver com a inexistência dele. O vazio de não vivê-lo. Pois é, pois é, talvez seja melhor pegar a lupa para esmiuçar a leitura das tais entrelinhas. Elas são perigosas. Alta periculosidade.

Enquanto isso, barcos que se movimentam no fluxo fluvial de algum porto. Não falando agora de amores, mas de livros, obviamente. O fluxo dos livros. Foi-se mais uma leitura e a próxima, o que poderá reservar? Tu, Ricardito (gostou do apelido, sonhador Ricardito?), tu que enfeitas tua existência no rabiscar mais ou menos ordenado das palavras, tu que és pastor delas e não te importas (não muito) que algumas te fujam o controle, porque sabes que faz parte na totalidade do rebanho. Tu que terminas mais um livro da leitura e pensa o que isso pode te ajudar num futuro teu. Num futuro, futuro mesmo, tempo a ser vivido, ou mesmo num futuro livro, quem sabe? Exatamente, Ricardito, quem é que sabe? Quem é que sabe de ti mais do que tu? Quem é que sabe da tua niña mala ou de que qualquer outra que te cruze o caminho? Assim sendo, que venham outros livros. És um influenciado. És uma esponja absorvente dessas narrativas. És um ser que vomita literatura sempre que termina alguma refeição oferecida por ela. Um anoréxico literário. Um viciado. Guardas quase nada em teu corpo, expões muito. Pões para fora. Um insaciado nesse campo difuso e eternamente exploratório, do qual nunca vencerás nem te darás por vencido. E nesse campo viverás, nas limitações e nas infinitudes previstas desse vasto campo.

Um sonhador que agradece aos livros enquanto não te encontras com as travessuras dessa ou daquela menina má.