28/05/2022

Música Sertaneja

Seu sofrimento é cadeia

Jogue a chave fora

Para não mais entrar


Hoje é sexta-feira

Dia de ir embora

Talvez nem mais voltar


Ouça, a noite te chamou

E lá fora já é tempo bom

Deixe o que for pra trás


Vem por essa noite

Pra curtir um monte

Direto da fonte

A ponte a atravessar


Sexta-feira é tempo bom

Sábado ainda tô pro som

E nos respingos de domingo

Antes do cachimbo cair


Seu sofrimento é cadeia

Jogue a chave fora

Para não mais entrar


Seu sofrimento é cadeia

Jogue a chave fora

Para não mais entrar

25/05/2022

Bye Bye Brasil (1979)

O filme Bye Bye Brasil (1979) retrata o Brasil profundo. Já escrevo aqui enquanto assisto. Um circo que circula pelos interiores do Norte e Nordeste. Um novo membro que se junta à trupe pelo sonho de percorrer novos lugares e ver o mar. E de que outra forma um morador do sertão ganharia a oportunidade em plena década de 1970? Cacá Diegues na direção está atento a isso.

O Brasil profundo ainda pouco explorado no imaginário nacional ainda hoje, imagine na década de 70. Nos tempos de guerrilhas em Araguaia, de heranças bandeirantes que até os dias atuais pouco discutimos. Um Brasil de garimpos e outras explorações. De trabalhadores miseráveis e empresas milionárias. Um Brasil de talentos ignorados e cantores que lucram às custas de dinheiro público de prefeituras, como o sertanejo Gusttavo Lima com show de cerca de 800 mil reais em Roraima, me parece. Dinheiro de prefeitura que cada morador é contribuinte. E a saúde e a educação como andam?

Bye Bye Brasil contrasta as imagens da natureza de extenso e continental e inexplorado - ou explodado demais, como dito - país. Contrasta essas cenas com a gama de personagens que se angustia e se adapta aos desafios da estrada e da necessidade de público nesses sertões e rincões. Eles saem do Nordeste para seguir o caminhão de forma itinerante rumo ao Norte brasileiro. Mencionam o sonho da Altamira do Pará, mas sentem as dificuldades da longa estrada, da falta de recursos, da luta pela saúde, das distâncias de afastados cantos. Observam o rio Xingu. À essa altura já ganham novo companheiro, pois a acompanhante do sonhador sanfoneiro pariu uma criança em região inexata.

O rural e o urbano se contrastam. Os jegues e as pessoas dividem o centro das ruas e dos projetos inacabados de cidades. Os carros de som disputam espaço nos anúncios. As fachadas dos rasteiros prédios alegam consertos e vendas do que é possível e talvez impossível fazer. Os anseios dos personagens esbarram nas limitações de inequipados terrenos. É retratado um país de poucas regras, em que os personagens entram a ponto de conflitos violentos, sem quem os impedisse. É o Brasil profundo onde os fabricantes de lei andam por fora do círculo dela. Onde os fiscalizadores, se presentes estão, são subornados. Onde as testemunhas mantém outras formas de silencioso agir. Não há tribunais que deem conta. A banda toca em outros ritmos.

É um Brasil profundo de sonhos e anseios antigos, mas ainda atuais. A luta pelo salário e o sustento. O sonhar de viver em caravana, passando por vários lugares, morando em lugar nenhum. A angústia e o cansaço da itinerância. O conflito da trama de personagens de origens distintas que são obrigados ou escolhem estarem juntos. O sanfoneiro que se apaixona pela outra artista. O companheiro deles que coleciona aventuras. Os diferentes talentos e as diversas formas de encarar as situações e agir. Os diferentes temperamentos e as distintas escolhas. A vivência como maleável e inesperada.

Um grupo de uma única caravana (do diretor Cacá- Cacáravana) mas com cada personagem pensando de forma distinta seu futuro. Um Brasil que flerta com a prostituição como renda. Um Brasil que cede a desejos e ao indesejável. Um Brasil entre o aceito e o condenável em uma mistura de opiniões, que de fato são o Brasil. Um Brasil que descobria que Manaus poderia, tinha já potencial para ser metrópole, ao menos para os acostumados ao nada conectado a quilômetros de mais nada. O sonho de alcançar Brasília, jovem capital federal, mais jovem do que os diluídos sonhos juvenis das personas gratas ou ingrata da estranha caravana.

Um Brasil que une folclores, talentos, trabalhos, rendas e a busca por rendas. Um Brasil que destoa entre os sertões sem água, os ribeiros à beira do rio, os litorâneos da pesca do mar, os transamazônicos e os mais novos moradores das selvas pedrosas. Os novos citadinos já periféricos e prontamente excluídos, que a exclusão costuma ser mais rápida que a "in" na batalha de prefixos. Fixam-se e desafixam-se. Preços e pessoas.

Um Brasil profundo formado pelo que tem de mais diverso para além de sua fauna e flora: formado por interiorizados cidadãos brasileiros, do sub-mundo das entranhas sertanejas e amazônicas. Nativos miscigenados por obrigação ou opção. "Atenção, rapaziada, muito obrigado pela atenção dispensada e até a próxima" - anuncia o circense em mais uma despedida dele e em ponto final onde aqui também por ora me despeço.

24/05/2022

Quem?

Será que vale a pena perder algo pelo caminho apenas pelo suposto prazer de reencontrar? Quem nos garante a sensação futura? Quem nos garante futuro? Quem nos garante reencontrar?


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Reflexões após o filme A Noite



Processos da loucura

Como não ficar louco em uma sociedade em que uma consulta médica custa 500 reais? Com desconto do plano de saúde 400. Nem a consulta o plano de saúde capta, absorve, abrange integral. Só um mero desconto. 500 reais, quase meio salário mínimo. Mais de meio salário para muita gente abaixo do mínimo.

Vai gastar meio mês para uma consulta em que o médico apenas olha para sua cara? Os médicos estão cansados da exaustiva pandemia. Concordo, muito eu penso neles. Mas muito penso em nossos abatidos pacientes. Atendidos com demora e muitas vezes atendidos de qualquer jeito. Chateados com os sintomas e com a forma como são tratados. Ou destratados. 

A pessoa muitas vezes volta para casa sem a resolução de seu problema. E ainda cansa mais o psicológico. E hoje em dia o que não cansa o psicológico? Na era de tanta informação. De tanta tecnologia que nos bombardeia assuntos. Imagina não ter assuntos, algo vai pousar para falarmos. De piadas às piores crueldades, mas algo vai. E aqui mesmo no texto de uma origem fujo pela tangente em outras raízes. Mas o psicológico. O psicológico cansado dessas notícias, dessa necessidade de interagir, da era do pós-trabalho para quem trabalha, de casa ou não, mas sempre sobrando para casa. Antes levava do restaurante um pouco de comida para o cachorro, hoje leva mais algum cliente insatisfeito que poderia ter sido tratado mais cedo. Consultorias e atendimentos. Preocupação e ansiedade.

A era do pós-trabalho para quem trabalha e quer garantir um sustento que lhe permita 500 reais em uma consulta particular,  ou 400 reais se você bancar a continuidade mensal do plano de saúde que não cobre todos os gastos, sinto-lhe muito. Como estiquei o ouvido para o caso da senhora que consultou as secretarias para tentar um atendimento o quanto antes porque depois que ela foi no dentista passou a sentir-se tonta. Será que é neurológico ou o que é? Ela, à beira de seus 90 anos, nascida em 1933, irá descobrir e minha fofoca ficará incompleta porque ela agendou retorno só para o dia seguinte, às 18 horas.

Não gostei das secretarias. Quando falaram do tempo, de casa ou apartamento frio e sujeito à umidade, ok, mas também falaram de outros pacientes, que uma mulher no exame dela nada apontava então não haveria necessidade de pressa na marcação de sua consulta. O desaforo. E eu ouvindo me sentindo tapeado porque eu mesmo havia sido remarcado já duas vezes, passando da suspeita de um ciclone que ao fim nem veio, e depois pelas prioridades médicas de atender um necessitado de cirurgia, sua especialidade, corta e corta. E lá se foi outro turno. E eu reagendado olhando ali cabisbaixo para meus próprios tênis que já foram mais brancos, sujam e já não limpo e minha roupa amassada e já não me importo se assim fica porque tenho prioridade é de resolver a minha saúde.

E cabisbaixo como eu aguardava, cabisbaixo eu saio porque sou eu reagendado, sem solução, não é com esse médico muito menos com as secretarias fofoqueiras que vou me resolver. Adio meus problemas e preocupações. Gasto tempo e dinheiro. E linhas que obviamente esse texto é sobre muita gente dependente de SUS ou apalermada mesmo na sorte de um plano de saúde, talvez incompleto. O texto é sobre mim  cabisbaixo, abatido e um pouco mais pobre, sim. Também mais pobre de espírito. Ah, o psicológico... Ainda não sou totalmente louco porque redijo essas linhas todas. Mas só por isso será?

23/05/2022

Viver

Será que é melhor viver a vida sabendo que pode morrer amanhã ou despreocupado, nunca pensando na morte? Pode ser ou parecer uma resposta fácil a você, mas para mim não é.

09/05/2022

Melhor amigo do homem

Mesmo que nada mais suceda comigo, que eu não tenha futuro, a certeza de que, com a minha idade, já vivi mais do que duas gerações de cachorros.

Isso é confortável do meu ponto de vista, mas também um pouco triste. As pessoas gostam muito de cachorros. Não hesitaríamos em trocar algumas pessoas que conhecemos por mais anos aos companheiros caninos.

Faz parte. Pensando que não gostaríamos de ler os pensamentos dos gatos, mas dos cães até me parece menos desapontador. Ou não? Aquela dúvida de se gostam da gente ou da comida, do conforto que oferecemos. As velhas relações humanas... E também relações caninas.

Por mais que eu me distraia, alguma hora tenho o inevitável encontro comigo mesmo.

05/05/2022

Planos inclinados

Vivia distante das possibilidades 

A boca seca e cheia de saudades

A sociedade a surpreender

Nunca viu de tudo, nem na tv 


Vivia isolado ao lado do nada

O corpo descansado, mas insaciado

Na mente o macabro

E tantas saladas

Um candelabro

De luz disfarçada


Vivia e morria diariamente

Vivia igual, morria diferente

Vivia afinal

Subjacente, rastejante

Insistente, planos doravante

Planos que surgiam 

Planos inclinados... decadentes


Planos descendentes da zombaria

Da ironia... única saída

Vivia e morria diariamente

02/05/2022

O que farei?

O que farei da minha vida?

Agora estou à deriva 

Não sei mais o que sirva 

Mas sei o que não vai caber


Escrever mais umas linhas

Enquanto houver-me tinta

No pincel disposição

Páginas, telas em branco

Nos convidam um tanto

Para uma opinião


O que farei da minha vida?

A ferida tão aberta

Faz perder outras metas

Que não sejam fechar

As malas e as maletas

Pra de novo viajar

Entre a ida e a vinda

Se vai ou se fica

E mesmo parado

Poder tropeçar


Pra onde irem os passos?

O que faço da minha vida?

Não se resolve com laços

Na berlinda, o fracasso

Um talagaço

Para cada noite vinda


Para cada noite finda

O dia vem no cansaço

O que faço da minha vida?

Pra onde irem os passos?

Moscas em Círculos

Agora não quero escrever

Sobre todas as coisas

Como uma mosca

Só uma a me perturbar


Agora me vicia a caneta

A careta na face

Como se não importasse

O resto do planeta


Não quero escrever

Mesmo que eu esteja a ver

Sobre o que quer que seja

Só maneja a caneta

Uma faceta de assunto


Eu escrevo o assunto

O assunto me escreve

Um breve despejo

Leva a lejos y lejos

De qualquer lugar


Uma mosca em círculos

O voo no cubículo

A ideia e o instinto

E o sentimento faminto


A mosca na janela fechada

Sem saída, sem escadas

A fome nada sacia

Sem ser fatias desse assunto

O decisivo presunto

No papel que aceita tudo

Até o inaceitável

01/05/2022

Caminhando para a morte

Caminhando para a morte

Alguma hora me vou

Não sei se falta de sorte

Eu já perdi o norte

Para saber onde vou


Caminhando já fui forte

Do corpo fraco estou

Os órgãos vão reduzindo 

A marcha e o acelerador

Ponto morto parou


Caminhei para morte 

Às vezes sem saber 

Errando GPS

A gente até esquece 

Como chegou aqui


Depara a perdição

Cercado de uma floresta 

É como a grande festa

Da destruição


Um sentimento confuso 

Facão erguido em punho

Para cortar matagais

Exige força, insistência

Mas por experiência

Só sei que vem mais e mais


Caminhando para a morte

Alguma hora me vou

Não sei se falta de sorte

Eu já perdi o norte

Para saber onde vou


30/04/2022

A dívida

Foi encontrado o corpo na rua, no centro de uma pequena cidade interiorana. Calcularam que ali caiu pela noite, mesmo sem precisar o horário. A temperatura e demais características corporais indicavam isso. Talvez alguma câmera de vigilância possa demonstrar o momento exato. Cena forte se forem exibir em algum noticiário. Mas ele não era importante o suficiente para sua morte aparecer assim em horário comercial na televisão. Morreu quase no anonimato. Quase, pois estava com as comprovações de identificação na carteira.

Descobriram sua filiação e que seus pais já haviam morrido há alguns anos. O tiveram quando já eram velhos para ter filhos. Buscaram mais algumas identificações. Não exercia a profissão de biólogo, mas possuía a carteirinha do Conselho Regional de Biologia. Uma dúvida que pairava é se o infarto fulminante o levara tranquilo ou preocupado. Muitos jovens até sonham com essa morte. Quem sabe morrer dormindo? Afogado ou consumido por incêndios ninguém quer nessa loteria. Apesar do infarto, que, quanto mais jovem, mais acomete, ele possuía uma expressão dolorosa na face. Se o conhecessem mesmo como o conheci, saberiam que essa expressão havia se desenvolvido em sua face já havia dois pares de anos.

O legista era jovem também. Na profissão. Se formou em medicina aos 32. Aos 34 assumia no hospital esse cargo havia apenas dois meses. Nunca tinha visto cadáver tão jovem. Achou algo de familiar naquele corpo que agora essa companhia naquela madrugada de maio, mais fria do que o habitual para época. O legista se chamava Pablo. Seria possível que seus pais nem soubessem da origem hispânica do nome, mas Pablo era Pablo e não Paulo porque sua mãe era argentina. Da fronteira, mas era.

Pablo pediu ao plano de saúde, vencido há cinco meses por falta de pagamento, informações sobre o biólogo não praticante. Queria saber porque aquele jovem era vítima do infarto que o aquietou para eternidade. Não poderia ser vítima de mero acaso na roleta das sortes. Ou poderia.

Se constituíssemos os passos do jovem biólogo (não-biólogo) de 26 anos, descobriríamos que desceu de seu apartamento (menos inadimplente do que o plano de saúde, mas também em atraso) e se arrastava pelas ruas noturnas e desertas daquele pacato município. Tinha como uma de suas filosofias não fazer barulho, então talvez os vizinhos do apartamento praiano pensassem se tratar de alguma emergência canina para usar o jardim, ou de algum dos vizinhos necessitados de exercitar na praia, espairecer a mente, etc. Mas ele tentava contato para algum motorista socorrê-lo. Não conseguiu. Na verdade havia apenas três vizinhos no prédio naquela noite, sendo um casal. Se dava bem com nenhum deles. Os demais haviam voltado para suas cidades natais ou alguma visita a familiares. A garagem estava deserta naquele pátio que, tomado pela escuridão, em aspectos lembrava um frigorífico.

Para sair pelo portãozinho que rangia já se arrastava. Pelo arrastar da passagem metálica os poucos ouvintes poderiam imaginar que se tratava de um passeante com cachorro ou corredor fitness. Nada disso. Ele se arrastava. Pé ante pé sem saber qual seria seu último passo. Presenciava a calçada de forma turva e repleto de flashbacks.

O legista não poderia saber disso. Mas queria entender o que acometia aquele jovem desafortunado, mais jovem do que ele. Mais jovem do que qualquer cadáver que havia lhe parado nas mãos. Ele se acostumando a mandar para funerária os aposentados que curtiam mais ou menos tempo de recursos repassados pelo governo.

Pablo lembrou de um problema que o havia buscado e encontrado aos 25 anos. Portanto, nove anos atrás. Isto antes dele completar o terceiro período de Direito. Antes de ver a vida com outros olhos. Os mesmos, evidentemente, mas sejamos licenciados poeticamente. Com esses outros olhos, sentiu-se salvo e quis salvar mais gente. Procurou outra possibilidade que a família bem abastada financeiramente concordaria: a Medicina.

Tomado pela decisão de agradecer pela nova oportunidade que lhe fora dada, estudou mais um pouco e voltou ao frenético (cada vez mais) ritmo dos vestibulares. Passou em Medicina em uma modesta posição que não ocupava destaque nem inveja entre os companheiros e companheiras. Mas assim conduzia sua jornada de remissão e ao mesmo tempo agradava a exigente família, tanto do lado brasileiro quanto do lado argentino.

Ao trabalho solitário daquela noite em que as lâmpadas falhavam, Pablo fez uma incisão em uma parte íntima do corpo do jovem biólogo. Fez outra incisão. Ensandecido, fez mais outra. Fez o quarto riscado e congelou seus olhos, aqueles mesmos mas diferentes olhos dos tempos de Direito. Olhou direito. Observou por outro ângulo. Olhou medicina. Levou um susto. Não queria crer na coincidência. Aquela verdade que ele relembrava, que o atormentava em noites sudoríparas, mas que já, à essa altura enquanto legista, salvando ninguém, defrontando-se só com mortos, ele queria esquecer.

Largou o bisturi ensanguentado. Viu mais do que supunha ou deveria. Mas ao mesmo tempo era tomado, desde antes do decisivo corte, daquele remate em direção à verdade, ao mesmo tempo era tomado pela adrenalina do reencontro com a pior fase de sua vida.

O jovem médico legista, ex-estudante de Direito sofria neurologicamente a partir do nervo pudendo. Sempre que pesquisava, ainda enquanto aspirante a advogado, se deparava que o problema era mais comum em mulheres. Mas ele tinha urgência em descobertas. Rodou médicos até a confirmação de seu diagnóstico. Entre as primeiras dores da lesão até a sentença e a fisioterapia que lhe salvou a vida (ele não entendia como) passaram-se meses de apreensão e soterramento de seus estudos presenciais na Faculdade de Direito. Jurou que se escapasse dessa faria Medicina para ajudar pessoas nessa específica e rara situação. Nessa e em outras derrocadas.

Durante aqueles meses todos, imaginou pelo quê havia passado o jovem biólogo. Dores na região pubiana. Perdas alternadas na sensibilidade dos testículos e do pênis. Diferença da pressão anal. Sensações nervosas alteradas pela medula. Sensação de dormência e formigamento dos nervos trigêmeos, do rosto. Sensação de flacidez nos músculos. Perda e alteração de massa corpórea. Alteração na sensação cutânea por todo o organismo. Hiperativação das glândulas responsáveis pelo suor. Irritabilidade. Má absorção de vitaminas. Fraqueza nos membros inferiores, mas também nos posteriores. Dificuldades sexuais. Hiperaudição. Tilintar nos dentes. Sensação do corpo tornando-se borracha. Confusão mental à primeira cerveja. Depressão por esta salada de sintomas. Talvez mais alguns sintomas que perderam-se no curadouro do tempo, que o afastava da época mais nefasta de sua vida.

Eram sintomas que poderiam estar esquecidos, guardados a sete chaves até aquela hora, mas voltariam em formato de pesadelos em alguma desavisada noite. Voltaram no corpo do biólogo de 26 anos, pairado inerte na maca à sua frente. Ele juntou o bisturi e tentou desligar os pensamentos naquela câmara frigorífica. Ele engoliu em seco e olhou nos olhos sem vida do companheiro de raro acaso, temido ou inimaginável problema. Lembrou os longos meses em que nada sabiam sobre seu adoecimento. Engoliu novamente em seco. Piscou profundamente os olhos. Ao voltar a abri-los, notou que era ele quem estava sobre a maca.

O companheiro de turno já havia ido para casa. Nem conhecera o famoso biólogo daquela madrugada. Ele olhou ao redor em vão. Havia mais ninguém com ele num raio de muitos e muitos metros. O equivalente à mais de quadra se somarmos os degraus todos até aquele setor isolado. Ele voltou os olhos incrédulos para sua própria imagem nove anos mais jovens.

Os olhos sem vida do rapaz, agora os seus próprios olhos castanhos, tomaram alguma expressão. Pareciam mais escuros, com alguma reação, mas pouco vívidos. Pareciam vindos do além. Os olhos responderam à inspeção antes feita somente por Pablo. Ele deparou-se com aquele impossível enigma. Era como se tivessem colocado um espelho abaixo dele. A diferença estava na nudez de seu cadavérico corpo nove anos mais moço. Ele que havia juntado o bisturi deixou-o cair novamente. Toda essa narração passando-se em sutis instantes.

- Você tem uma dívida. Vim lhe buscar. - Disse o Pablo de 25 anos.

Fazendo as malas

Sinto agora que me aproximo de minha morte. E é tão triste percorrer esse trajeto, que ameaçava ser de forma voluntária, pela maneira involuntária que buscam as vítimas.

Antes de mim ainda irão alguns. Mas creio que a fila diminuiu bastante. Não sei se volto para trazer mais notícias. Qualquer publicação desse espaço maldito que gere algum ganho financeiro (risos), gostaria que este fosse encaminhado a meus pais ou a instituições de acolhimento de crianças ou idosos.

Ou para salvar algum enxerto de natureza. É para lá que eu vou. Se é que vamos a mais algum lugar. Câmbio e desligo.

27/04/2022

Março

Chegaram

As águas de março

E o que eu faço?

Fumar um março

Um março 

Para uma fêmea 

Ou um março 

Para um macho

Um março

Na nossa história

Março as pessoas

Se for preciso


Março

Fugir para o março

Longe das pessoas

Perto dos bichos

Há março

E jogo no lixo

Março em frente

Caminho distante


Há março

E jogo fora

Já não esquento 

Já não dou bola

Março ainda esquenta

Águas de março

Antes de abrir

Abril

22/04/2022

Santa Catarina - Fotos 2022

Há muito tempo sem publicar fotos aqui


Imaruí (SC) - Fotos: Henrique König

Imaruí (SC) - Fotos: Henrique König

Imaruí (SC) - Fotos: Henrique König

Imaruí (SC) - Fotos: Henrique König

Imaruí (SC) - Fotos: Henrique König

Imaruí (SC) - Fotos: Henrique König

Imaruí (SC) - Fotos: Henrique König

Imaruí (SC) - Fotos: Henrique König

Imaruí (SC) - Fotos: Henrique König

Imaruí (SC) - Fotos: Henrique König

Imaruí (SC) - Fotos: Henrique König



#### PRIMEIROS RASCUNHOS ##### 2015



Um abraço aos involuntários da pátria, que poucos lembram.



Paraíso é subjetivo. Subjetivo é para isso.



Tenho alguns algo a mais, mas não tenho o básico.



Cotações Selvagens

Antes de ser o último álbum (a que tenho conhecimento) do Wander Wildner, Coração Selvagem, com design muito semelhante, foi filme do polêmico e ousado diretor estadunidense David Lynch.

Muitas vezes me pego pensando nas relações estabelecidas no mundo e no mundo da arte, especificamente. Quem inspira quem? De onde saem tais referências? Me sinto muito inteligente quando capto, embora muitas vezes seja apenas questão de ter acesso. Nada a ver com a capacidade de estabelecer a conexão. Quando desconheço ou quando desconhecia, me sinto limitado. Somos duros demais com nós mesmos.

Me pego pensando também que muitas vezes as referências são mais óbvias. Eu, por exemplo, gosto muito do filme Forrest Gump (1994). Fiz até trabalho da faculdade sobre. Aliás, quando me debruço sobre assuntos recorrentes a mim, me sinto trapaceando, o que é errado. No fundo, parece correto explorarmos temas de nosso conhecimento prévio. É importante. Claro, sem perder de vista que podemos nos aventurar em novos temas, desafios mais distantes.

"Para alimentar o seu coração selvagem.

Para alimentar o seu coração selvagem."

Meu coração selvagem procura filmes e livros fora dos mais vistos e dos mais vendidos. Faz parte da sede por descobrimentos. Por explorar algo que os demais não tenham acesso. Sou muito movido dessa forma. Reconheço que seguidamente é solitário, pela falta de com quem debater. No meu blog é comum eu trazer referência a livros de traduções mais raras ou do cinema latino-americano ou do leste europeu. De certa forma, ponho para fora as reflexões que desejo estabelecer sobre essas obras apreciadas e procuro fomentar a vontade dos leitores em buscar casos semelhantes. Ao me pedirem dicas de filmes ou livros, não hesito em deixá -las.

Minto. Sempre hesito, porque assisto a tantas obras que minha primeira reação sempre é de parar e tentar trazer da memória o melhor que tenho visto. Orgulhosamente os temas também são muito variados. As pessoas são distintas. Há temáticas de ação desenfreada, roteiros vencidos e requentados que não me chamam atenção. Ao passo que as missões estritamente filosóficas, as aproximações com a vida real que muito me saciam podem aporrinhar a opinião alheia. Aí eu sinto muito.

Gosto de explorar os processos antropológicos, os limites da mente humana, os desafios da vida real nas páginas dos livros e nas telas em filmes. Quem procura por ficções que muitas vezes fogem do meu interesse pode se decepcionar com minhas dicas. Mas busco ser bastante autêntico, honesto e reflexivo, a cada análise e a cada conselho. Disso espero não reclamarem. Assim me justifico.

De alimentar o Coração Selvagem que me coçava a começar esse texto, lembro aqui do documentário Super Size Me, popularmente conhecido como A Dieta do Palhaço - em alusão ao Ronald McDonald. Vejam bem, aqui está um exemplo dos próprios Estados Unidos. Bom para vocês? Pois este documentário tenta, no início do presente século, detonar com a abastada fama das lanchonetes, em especial o McDonalds. O personagem principal e diretor propõe a si mesmo o desafio de comer somente na lanchonete mais famosa do mundo durante um mês. Os resultados contra sua saúde são alarmantes, embora não o suficiente para desmanchar o hábito do fast food, que só cresce pelo planeta.

Me chamaram a atenção alguns dados, como na época haver 58 restaurantes McDonalds em Nova York. Ao passo que não me deixou de surpreender o dado de que os nova iorquinos caminham, em média, uma boa quantidade de quilômetros por dia. Menos mau nisso tudo. Enfim, sobre o documentário, vi algumas análises negativas em sites 'especializados' em criticar. Por outro lado, eu procuro ser bastante defensor dos documentários, porque entendo suas limitações de orçamento, principamente quando criticam os verdadeiros endinheirados orçamentários, e também entendo a importância dos temas trazidos à tona. A luz que procuram jogar sobre os cegos olhares da sociedade.

Dessa maneira, defendo o Super Size Me, por questionar a chamada epidemia de obesidade nos Estados Unidos, criticar a indústria cruel da propaganda e, de certa forma, se preocupar com a saúde daquela e das próximas gerações. O autor procurou entrevistas com autoridades, buscou saber dados das lanchonetes, expor a indústria comandada pelos lobistas, a indústria da publicidade desvairada e incontrolável e o impacto nas escolas e na saúde dos jovens. Tudo isso intercalado com a sua proposta de, a cada dia, tentar somente se alimentar com os lanches nada ou pouquíssimo nutritivos desse verdadeiro e avassalador conglomerado.

Alguns procuraram diminuir o filme por uma ou outra colocação que fugiria do considerado bom padrão do politicamente correto. Acredito que algum deslize que venha a ocorrer nessa questão não diminua o tamanho e a importância do documentário. Uma exposição que certamente preocupou, mesmo que por limitado espaço de tempo, os donos da barganha, das mentes e dos corpos, dos Estados Unidos e de seus mais ou menos controlados quintais. Concluo após assistir a essas assustadoras exposições que, novamente, fica a impressão da tal liberdade defendida nos Estados Unidos suterrar a saúde de seu próprio povo. Além de, é claro, influenciar em uma derrocada dos seus "ali(en)ados" países.

Me refiro assim porque é recorrente pensar na destruição do povo dos Estados Unidos através das epidemias de drogas, como heroína, que matam dezenas de milhares de pessoas por ano, além de outras drogas, regularizadas ou não, à venda em farmácias ou não, além do conhecido álcool, bem acessível a nós brasileiros, e além obviamente das milhares de mortes anuais por armas de fogo, de homicídios a suicídios. Embora aqui eu não traga imediatamente dados dessas mortes todas, todos esses números são facilmente acessíveis na internet. Mortes por heroína, embriagados na direção ou armas de fogo que disparam e sepultam.

Soma-se a esses problemas crônicos na sociedade dos EUA, a quantidade absurda de sódio e gordura trans e outras consumidas pelas pessoas diariamente. Silenciosamente agindo em seus corpos. Modificando-os, interna ou externamente. Riscos à saúde. O barato que sai caro. A comida rápida que vagarosamente os leva aos mais diversos problemas. Diabetes, safenas, cálculos renais. Muita coisa acumulada no organismo.

Enfim, acredito que os homens à frente de seus tempos, David Lynch e Wander Wildner dimensionem que muito além dos corações selvagens está o capitalismo selvagem dessa maneira algoz e matreira, agindo na autodestruição da nossa espécie. Ah, certamente eles sabem disso. E quem mais lucra com isso também sabe.

21/04/2022

Aqui jaz a juventude

Eu achei que duravam mais

os tais vinte e poucos

Veja bem, eu imaginava

Mas a verdade é o que te conto


Crises de saúde, exames lombares

Hospitais e sufocos

Injeções de vitamina

No futuro insulina

Ou outros farmacológicos


Eu achei que duravam mais

os tais vinte e poucos

Veja bem, eu imaginava

Mas a verdade é o que te conto


Eu me sinto velho 

Quando me tiram a saúde

Eu me sinto estéril 

A caminho do ataúde

Nenhum grito, nenhum berro

Pra fazer com que isso mude


A idade já diziam ser mera convenção

Número para controles burgueses

Através da certidão 

Muitos dirão "mas você é novo"

Cagando opinião

Mas eu me sinto velho

Quando me tiram a saúde

A cama de hospital, o sono, o soro 

Aqui jaz a juventude


Eu achei que duravam mais

os tais vinte e poucos

Veja bem, eu imaginava

Mas a verdade é o que te conto



19/04/2022

18/04/2022

Nesses dias cinzas

Um pássaro esgravota no telhado vizinho. Não sei o que ele procura, mas ele encontra. Ele é mais bem preparado do que eu.

Me tornei um adulto frágil. Tão frágil quanto meu guarda-chuva pelas esquinas de ventos imponentes da rua 15 de Novembro. Ele enverga, se dobra todo. Eu ando corcunda, tentando passar despercebido pelo mundo.

O pássaro consegue o que procura e voa para outro telhado ou para seu ninho, para onde deve ir. Eu não sei o que procuro, não sei se consigo e continuo a vagar envergado, dobrado pela umidade e chuviscos da rua 15 de Novembro, desviando das pessoas protegidas pelas marquises, recolhendo meu guarda-chuva no espaço estreito entre as paredes e os postes. Cuidando os novos sinais de trânsito que indicam quantos segundos nós temos. Sem saber quanto tempo temos nesses dias cinzas.

06/04/2022

Jogo Jogado

O Carpe Diem contra o Cadavérico.


Vamos sorrir pelas vitórias de hoje porque há o conformismo de suas finitudes. É até empírico que o outro lado vencerá no final.


01/04/2022

Até a Hora de Parar

O tempo passa

Como qualquer um sabe

Como qualquer indivíduo percebe

Cedo ou tarde

Longe ou perto de sua sede

Por fatos que comprovam 

Mais fácil ou mais difícil o que se mede

Mas percebe


Que o tempo passa

O caminho retrospectivo da memória 

Se torna mais longo 

A bagunça é maior 

Demoramos um pouco 

O que estava ao redor 

Agora é só um ponto 

Distante talvez oculto 

Outro mundo

Inalcançável porque - já passou


E o tempo segue a passar

O trem apita na madrugada

Faróis na estrada - luz alta

Logo passa na devolução 

Da escuridão que se alastra

Por todos os lados até a alvorada

A luz que penteia o relvado

E diagnostica sem sombra

De dúvida 


Que o tempo passa

Que os bois que pastavam agora são

Carcaças; que quem os governava 

Já não ameaça mais o mundo 

Porque se fundiu com a terra 

Partiu - sem assinar acordos em Genebra

Sem combinar com os demais habitantes

Microscópicos nos submundos utópicos 

Que não enxergamos e mesmo assim

São nosso destino - a todos humanos

Entra ano e sai ano em calendários 

Gregorianos nas paredes e nas telas 

De smartphones e alofones que pronunciamos

Sem saber as regras da morfo ou da fono

Logia - magia que as cordas de movimentos vocais 

Pronunciam; e anunciam 

Enquanto tenho lenha para queimar

E vocabulário a gastar: poesia



O Trem Partiu

Trem,

O Nicolau Fico é tua casa

Por onde tantos jogadores

Tanta gente passa

E és eterno


Acompanhaste o Farroupilha

A cada verão, a cada inverno

Contigo a bandeira de três cores

E a paixão por onde fores


Trem,

Construíste os teus próprios trilhos

Pelo futebol gaúcho, um andarilho

Tua estrela guia é o Farroupilha

Teu amor por ele o mais lindo filho


Pelo Nicolau ficas na história

Na memória do campeão por 100 anos

Pela paixão, pássaro ufano

Mais vale um amor do que 100 glórias



22/03/2022

Noite de pesadelo zumbi

Nos protegíamos minha família e eu pela casa dos avós de um antigo amigo. A casa era simplesmente a maior da praia. Ocupava o centro de uma quadra, mas o seu tamanho era de uma quadra inteira para trás. As casas costumam ter os fundos voltados para os fundos de outra. Esta não. Havia pátio na frente e pátio atrás. Enorme. A pintura dos muros era salmão e as grades altas bordô.

Começamos apenas minha vó, minha mãe, meu pai e minha irmã. Procurávamos armas com as quais nos proteger. De quarto em quarto, subindo e descendo escadas nessa missão. Havia longa sala, como um saguão na parte de baixo. Este ligava a cozinha. Mas também quartos no interior. E obviamente os quartos - e escritório - e salão de jogos no superior.

Uma família relativamente pequena a minha para aquele palacete. Mas onde estariam os donos originais? Era de se pensar. Só que não havia tempo. Os zumbis iniciaram o cerco, aglutinando-se nas grades, na parte aberta do extenso muro salmão, que se estendia sobretudo como muralha pelas laterais da casa. Estávamos armados, mas era questão de tempo para eles transporem as barreiras e, movediços e escorregadios do jeito que estavam, nos alcançarem pelo lado de dentro. 

Talvez a melhor recomendação fosse não criar mais ruídos, mas eu gritava por meus familiares. Precisaríamos de um plano de fuga conjunto. Ni una a menos. O palacete seria o sonho de vivência para outros tempos, mas não naquela noite cerrada, demorada, arrastada como se não soubéssemos se haveria dia após esta madrugada.

O cordão de zumbis invasores mostrou o caminho por entre o ornamento trabalhado em determinado espaço da grade. Eles haviam entrado. A maioria não corria, mas alguns eram capazes. Esses diminuíram a margem de nossas reações. De pronto nossas armas pareciam inúteis àquela quantidade crescente exponencialmente de invasores. O rolo de massa poderia acertar o primeiro sim. A potente vara de pesca (?) poderia decapitar outro? Claro. Mas logo para enfrentar três e a esmagadora arma de deitar a massa de pão parecia inútil. A não ser que tivéssemos sobrenaturais habilidades de kung fu, mas não era o caso.

Conseguimos não se sabe como conduzir a vó para o carro, e a família acionou o estranho furgão que daria orgulho ao Fred, não só ao Flintstone que nunca havia visto uma engenhoca tecnológica daquelas, mas principalmente ao Fred da turma do Scooby Doo. Sem direito a um cachorro falante ou maconha que nos ajudasse a enxergar saída daquele pesadelo, procuramos acionar o controle elétrico da garagem. Por obra positiva do destino a energia elétrica ainda não havia sido cortada no bairro, porque nenhum daqueles mentecaptos havia tropeçado nos cabos de energia ou tentado subir num poste, admirados pelas luzes. As luzes os chamavam atenção.

O controle da garagem abriu vagarosamente o portão da garagem. Dos fundos, é importante dizer. A parte da rua da frente estava ainda mais lotada, abarrotada de zumbis como se fosse a recepção da torcida xavante. Então saímos por esse vagaroso, relutante e teimoso portão dos fundos, aquele que respondeu ao chamado eletrônico com uma inclinação lenta e preguiçosa. Ele ia aos poucos, travava e seguia a angulação rumo aos 90 graus. A cada travadinha que ameaçava não passar a altura suficiente àquele furgão de cachorro-quente, nosso coração também parava junto. Eis que meu pai perdeu a paciência e arremessou o furgãozinho com tudo naquele portão. Foi uma má escolha, porque arrancou, ou melhor contando, abriu um certo rombo no teto do veículo. O mais sensato no momento era pensar que saímos daquele inferno. Saímos munidos de algumas armas de mão para os futuros combates corpo a corpo e com duas pistolas as quais tínhamos dificuldade de decidir quem manejaria. 

Minha irmã a bem da verdade era a especialista pelo seu conhecimento advindo de jogos de tiro. Eu muito pouco permanecia com um facão que seria mais útil para acertar um vivo do que um daqueles mortos. Junto à nossa família já se juntavam outras três pessoas. Um homem que parecia uma reprodução clássica de um guerrilheiro dos Panteras Negras. Uma mulher de idade semelhante e um terceiro esquisito que em algo me lembrava o don Ramón (seu Madruga) ou a outro mexicano de bigodes proeminentes e rosto sugado pelo passar dos anos e pelos absurdos sustos que convivíamos nessa epidemia zumbi.

Chegávamos às proximidades de um porto quando minha avó, temendo a aproximação de tantas daquelas figuras, numa reação súbita de um plano suicida, declarou que já estava muito velha e só atrasaria jornadas. Conseguiu com o que lhe restava de força nas mãos, que com destreza construíram retalhos, bordados, roupinhas, pastéis, massas, arroz, carreteiros, assados, os mais diversos almoços, com força conseguiu abrir a porta de correr daquele maldito furgão e pulou para um tombo violento para qualquer idade, tanto mais a dela. Mas a dor de impactar-se com o asfalto ou com as pedras não demorou, porque, como ela estava certa, os zumbis logo a atacaram para devorar em minutos, talvez mesmo em segundos. Cena brutal que não sei porque cargas d'água tentei direcionar meu olhar para os vidros retrovisores do furgão. Eles aproveitaram a rara iluminação dos postes dali para mostrar o aglomerado de criaturas por sobre o que há instantes era minha avó.

Chocado com a cena, precisávamos ainda ser resilientes. Logo nem todos precisariam demonstrar ganas de coragem porque nosso furgão tombaria em uma rua de calçamento bastante acidentado. Ele conseguiria se manter de pé, mas aí o motor já não funcionava. O pior é que, independente do motor, a bateria estava engasgando, indo para o saco e teríamos nada para substituí-lo. Abandonamos o furgãozinho na rua. Mas mal os metidos a mecânico haviam descido de plantão (o mexicano e o pantera negra) e o exército de zumbis também dava as caras como plantonista contra nossa missão de sobrevivência.

Meu pai ficou para trás naquele episódio, isto eu consegui visualizar. E talvez fosse melhor que não vi o paradeiro de minha mãe. Embora assim ainda me reste alguma esperança de que esteja viva. Sobravam comigo o grupo de forasteiros, os incapazes de consertar um furgão de bateria desgastada em tempo recorde. Também em nossa corrida inicial para fugir daquelas coisas, minha irmã e o pantera negra em posse das armas, não valeria gastar um tiro que fosse na direção daquelas criaturas. A necessidade de acertar na cabeça com a luz oscilante dos falhados postes dariam grande chance de desperdício. Além do mais, a velha descoberta. Mandar bala dali só serviria para atrair mais daquelas errantes criaturas. O que precisávamos de fato era de um novo carro para tomar distância em busca de uma estrada segura, algo que nem aquela praia nem o porto podiam oferecer.

18/03/2022

Acordo

Deixo as ideias correrem livres na madrugada e acordo preso a esse corpo e à situação sócio-financeira desse país. 

Sonho em percorrer grandes caminhos e acordo cercado por quem pede esmola.

Sonho por grandes caminhos e acordo amarrado a um destino mais breve.

Sonho repetir o passado e ele parece mais distante do que qualquer futuro.

Sonho construir um futuro e o presente me abomina.

Sonho deixar realidades para trás e elas me gotejam a camisa, escorrem da testa ao lombo. 

Sonho superar as dificuldades e elas me cercam tentaculosas. 

Sonho terminar melhor esse curto texto e ele já chegou ao fim.

Desculpe por não escrever

Desculpe por não escrever sobre nós 

Tanto quanto eu deveria

Só estou acostumado a escrever

Sobre o que seria 

E quando é 

Eu só vivia


Eu só vivia

Eu só sorria ao seu lado

Eu só sorri ao seu lado

Eu só sorria ao seu lado


Nos outros lados eu mentia

Nos outros lados eu morria

Eu só sorria ao seu lado

Eu só sorri ao seu lado

Eu só sorria ao seu lado 

17/03/2022

Caminhada

O fim do verão se aproxima. Os salva-vidas já não repõem as bandeiras com as condições do mar. Aprendi eu mesmo a diferenciar o estado para bandeira vermelha ou para amarela. Considero que anda bem mais para vermelha. Mas hoje o mar estava quente. Costumo caminhar com os pés e às vezes as panturrilhas para dentro d'água. E o mar subiu bastante nos últimos dias. Não ameaça as dunas, mas cobre a areia, que fica com uma cor mais morena e com aspecto mais mole a cada pegada que lhe impomos.

A praia já não era das mais cheias, agora convive com poucas pessoas. Gosto de caminhar assim, com a extensão de areia para mim, com raros guarda-sóis, raros transeuntes que se apresentam. Acho melhor dessa forma, sem a possível obrigação repentina de cumprimentar alguém que conheço ou deveria conhecer, talvez algum vizinho da mesma quadra, porque em cidades pequenas as pessoas são acolhedoras e se conhecem. Caminho com menor dúvida dessa necessidade com o rosto parcialmente exposto por detrás de meus óculos escuros.

Observo a sucessão de ondas marítimas, hoje bastante envolvedoras, uma atrás da outra, elas mal esperando a respectiva vez de desaguar a espuma esbranquiçada. Direciono o olhar para o outro lado, com as dunas ora mais altas, ora mais baixas, obstruindo a visão das casas ou dos raros prédios, ou ora os permitindo uma visão mais completa e panorâmica. Observo as manchas que a água insiste em manter sobre as areias. Lagoinhas formadas que só serão desmanchadas quando o mar novamente avançar à noite. Permanecerão ali, sem passar do líquido para o gasoso na atmosfera, sem evaporar. Pequenas reservas de água salgada nos caminhos que encontram-se entre a imensidão do mar e as dunas, naturais barreiras, retenções de sua força.

Essas poças formadas, as lagoinhas, elas proporcionaram um aspecto de abandono para a cidade que se desenhava tímida por trás das dunas. Era como se alguém não tivesse feito o trabalho de recolhimento daquela água. Besteira, ilusão criada minha porque o processo é todo comandado pela natureza. Agora pela natureza, mas sem intervenção humana onde costumava haver é o crescimento do mato na descida da guarita dos salva-vidas. A grama cresce mais sem ser pisoteada pelos banhistas que subiam e desciam a estradinha. O mato avança e cobre as dunas, sem adversário na ação humana. Isto é recém março. Como estará o trabalho de poda em maio ou junho? O aspecto sombrio da cidade mais esverdeada de mato crescendo, de água salgada parada sobre as areias, de menos fluxo de humanos. Um paraíso turbilhante entre radiante ou esquecido. Entre maravilhoso e assustador.

Caminhei a passos firmes e determinados, para avançar alguma etapa em minha recuperação de saúde, para mostrar que é possível ou para simplesmente desopilar mais um pouco. Tinha quase como promessa a chegada à próxima praia, um bairro bem mais residencial do que o meu. E notei que as pessoas para lá são mais praieiras. Aproveitaram o dia nada nublado, perfeito de sol para abrirem guarda-sóis, reunirem a família e porem as crianças a brincar.

Um menino aguarda que sua irmã chute a bola. Ela ameaça duas vezes, finge que vai chutar, mas erra de propósito e recomeça a corrida lá de trás novamente em direção à bola. O menino está ansioso, não aguenta mais a demora da irmã. Na terceira vez ela chuta, bastante fraco, é verdade, avisa para mãe que já jogou, já jogou, e corre em direção ao mar. O menino espera a bola vagarosamente descer a pequena rampa de areia e chegar para seu domínio. Ele a envolve, quica e faz embaixadinhas, demonstra bom controle. Talvez sua mãe o obrigue a brincar com a irmã mais nova. É possível. Algumas mulheres e alguns homens dominam os raios solares em suas peles expostas sobre as areias. Noto que aqui os homens também gostam de tomar banho de sol e há nenhum problema nisto. Apenas que mais para o Extremo Sul deste vasto Brasil considerava eu que essa atividade era mais feminina. Podem ser novos tempos também, porque andei ausente das praias pelos últimos anos, principalmente pela vinda da surpreendente pandemia.

Digo que as pessoas do outro bairro são mais praieiras porque demonstraram boa concentração de interessados pelo desfrutar do dia nas areias, mas é somente na baixadinha daquele pequeno conjunto de ruas. Ruas que serviam para boa prática de um outro esporte: o skate. Vi alguns meninos andarem assim em outras expedições que fiz. Me refiro a esse como o 'outro' esporte, porque o primeiro nessas condições de praia seria o surf. Noto que com o avançar da retirada do verão, as ondas parecem mais propícias aos surfistas, ou ao menos assim eu considero. A praia catarinense começa a apropriar-se melhor do apelido de capital do surf, embora acho que este rótulo no desempate pertença à Garopaba.

Nenhuma nuvem interrompeu meu contato com o sol. Tomei cuidado para não me cansar em demasiado, porque ainda me recupero das maiores fraquezas, do meu naufrágio pessoal. Levei comigo além das chaves do apartamento, no bolso oposto uma garrafa d'água, que desfrutei já no caminho de volta. A caminhada foi muito positiva para o meu bem estar. Passei sim por alguns pescadores, como de costume, mais idosos do que jovens, alguns acenares de cabeça, mas nenhum boa tarde arrancado de minhas cordas vocais. Algumas pessoas realizam também a atividade física, algumas de tênis pela altura maior das areias, eu no patamar mais baixo da suposta rampa que afirmei sobre a trajetória da bola do menino. Eu molhando os pés e retardando meus movimentos quando este me alcançava até altura maior das pernas. Os passos ficam mais vagarosos e tenho de cuidar para a água que levanto com os pés não molhar as chaves, com dispositivo eletrônico, dentro de meu próprio bolso.

Me surpreendeu a temperatura elevada da água, porque nos últimos dias até moletom eu tive de usar pelas noites. Tomaria um banho, sem dúvida alguma. Durante a caminhada, identifico alguns pontos de referência. Os prédios os quais minha mãe afirma que um apartamento deles pertence a um corretor imobiliário que os ajudou nessa mudança de moradia. Antes desses prédios, o topo do morro mais alto, com uma antena de sinal que com certeza não pertence à minha infrutífera operadora, sem sinal na praia. Antes do topo do morro, uma simples arvorezinha, onde quase sempre há algum morador que organiza seus pertences, cadeira de praia, toalha, roupas, à sombra da mesma. Antes disso tudo o hotel maior, que dispõe cadeiras e espreguiçadeiras brancas raramente ocupadas pelos seus cada vez mais escassos hóspedes. Antes disso o restaurante maior que fica encravado entre as dunas, onde não se deve poder mais construir. Antes disso um pequeno centro de eventos para apresentações musicais, alguma prática esportiva, como o vôlei de praia ou o frescobol, que eles gostam muito. E antes disso a guarita de salva-vidas, onde costumo subir e descer pela praia, ficando bem próxima ao nosso prédio esverdeado. 

Deixei que minha mente divagasse por essa caminhada, uma das últimas que farei nesse verão, seja pelo fim cronológico da estação, seja pelo fim de minha estada nessas terras, embora por enquanto. Voltarei em outro momento? Não sei quando nem por quanto tempo. Gostei bastante dessa cidade que eu consideraria uma cidade de brinquedo, nomenclatura que talvez eu melhor desenvolva em outro texto. De brinquedo por suas dimensões reduzidas, por sua organização bem plausível, por suas acomodações até eficientes e aconchegantes. Uma cidade planejada como um brinquedo ou algo muito sério... uma estrutura de maquete escolar ou universitária sobre uma planície de isopores.

Lembrei do que já passamos, do que estamos passando, mesmo longe, e do que ainda iremos passar. Conectei-me a esse fim de verão, a esse fim de tarde antes do meu exercício diário da escrita jornalística - ou algo próximo a isso - com a certeza de que o tempo passa. Se as coisas vão melhorar, é uma grande dúvida. Tive a certeza do respaldo de ter sido uma boa tarde. Torço para que mais gente consiga atingir esse objetivo. Não sei quantas vezes mais irei atingir, por minhas condições clínicas (dramático) ou simplesmente porque a vida nos surpreende em eliminações inesperadas. Quantos irão antes de mim mesmo que meu quadro clínico piore? Sem dúvida muitos, porque não cessam as guerras na Ucrânia, no Afeganistão ou na Síria, ou na Palestina, ou os surtos de Covid-19 que voltam a ameaçar a China, a Coréia do Sul, setores da Europa e jamais abandonou o Brasil, embora a revogação do uso de máscaras.

E é sem máscara (ou com alguma subjetiva?) que desfilo esses passos com no rosto nem um semblante emburrado nem um sorriso forçado, mas uma expressão até satisfatória. Satisfeito pela volta que dei à tarde, por ter cumprido a promessa feita a mim mesmo de atingir até a outra praia de distância, pela superação hoje de meus múltiplos problemas médicos, pela conclusão inconclusa de mais um verão, de estar morando na praia, embora enfrentando essas adversidades surpreendentemente advindas em meu corpo. Chego ao fim da praia e retorno, chego ao fim do verão e quero mais verões, chego ao fim de um bom dia e desejo mais alguns.


13/03/2022

Imortalidade

Creio que muitas vezes os escritores são apenas temerosos em perder suas lembranças ou suas histórias e portanto as registram. Mais por orgulho a eles próprios do que pela importância que as histórias possam ter. Ao invés de sepultar memórias junto com seus corpos em túmulos, dedicam ao papel a tentativa de imortalidade que a saúde indica muito menor probabilidade.

10/03/2022

Ao invés de reclamar do que falta, valorizar o que ainda se tem.

Repetir mil vezes para ver se funciona.

05/03/2022

Crítico de Praia Famosa

A começar que o acesso para essa praia me deixa tremendamente claustrofóbico. Ok, entendo que seu isolamento impossibilite outros acessos, faz parte da preservação ambiental inclusive. Porém a estrada que liga o caminho é composta por carros, carros e mais carros. A mata é cerrada por ambos os lados. São poucas casas desde o trevo de acesso. Notei o abandono de algumas. As demais mantém estilos mais simples até carregarem-se com o esnobismo quanto mais próximas das areias.

Após a hora de condução por essa estrada, na fileira de carros, uma pista de mão dupla, finalmente chega-se ao mar. Antes do mar, melhor recordando, passamos por lojas de biquínis, de vestidos, bijouterias e muitos restaurantes. Lancherias também existem aos montes. Impossível que alguém com opção financeira fique sem o que comer. A mistura de molhos e cheiros me deixa meio zonzo. Não reparem tanto, meu estômago sempre foi fraco. Cachorros quentes, prensados, restaurantes de frutos do mar, bares especializados nas misturas. Em algumas travessas para dentro do mato observo cachorros. Esses também devem ganhar boa recompensa de sobras a cada noite. São realmente muitos restaurantes. Quando certa vez há quase uma década fomos procurar o restaurante de um parente, percebemos que jamais encontraríamos sem a pista do nome. Só tínhamos o nome dele, fato quenem todos, ou mesmo poucos, deveriam saber.

Soube nessa ida descrita agora que eles nem estão mais com o restaurante. Se mudaram e se especializaram em bebidas medicinais. Uma loucura. Loucura é o que posso imaginar para vida noturna desse paraíso estranho. Paraíso a gosto de muitos, visto a lotação. Mas que, às primeiras impressões, não me apetece. Mas enquanto escrevo percebo minha curiosidade com ambiente tão diferenciado. Experiência antropológica é o mínimo que posso imaginar nesse cenário. Percebo um clima esnobe. Como se as classes mais altas quisessem não só o contato, mas o extenso domínio sobre a natureza. Como se as tatuagens tribais ganhassem novo sentido nesse espaço. Como se as camionetes de ostentação fossem pró-natureza. Como se não fossem necessárias as tantas placas de aviso para recolhimento de lixo. O ser humano quando se ajunta costuma aprontar.

Noto os muitos carros parados na incessante disputa por espaços. Cada vaga pode ser comemorada como se fosse a para Copa Libertadores. As pessoas param para observar o mar, para observar umas às outras, como costumam fazer nas praias. Alguma disputa é sonora por música. Eles escolhem o ritmo, você não, obviamente. Entre a encosta dos morros e a areia não há tamanha distribuição de espaço. É uma praia disputada como um ingresso vip, muito celebrado com selfies em stories. É o objetivo de muita gente.

Chegar até lá exige um bom tempo de deslocamento de carro. Quem quiser algo mais alternativo pode tentar a sorte de uma carona no caminho. Para encarar a trilha de subidas e descidas a pé ou de bicicleta, é preciso um esforço épico e uma pré-disposição atlética.

A ambientação sugere a conquista de lugares rústicos e alternativos. São decorações que a muitos atrai. A mim mais afugenta. Mas é possível que eu encare, embora me sinta ameaçado pela proximidade das casas de alimentação e entretenimento. Tudo isso me faz pensar em um ambiente tumultuado e badalado demais para uma calma refeição. À noite mesmo, quando o objetivo das pessoas for exclusivamente o entretenimento, talvez tenha seu valor.

Além das tantas casas nessas ousadas, ou tentativas de ousar simples, casas de espetáculos, é preciso frisar a quantidade de placas para pousadas e hostéis. Como não há disponibilidade para construção de prédios (mas bom), o predomínio são dessas modalidades de hospedagem. Nada de hotéis. Apenas pousadas e hostéis. Hostéis ou hostels? Que me perdoem a grafia correta. Neles também está a presença forte do capitalismo na disputa de fachadas e decorações. Me parece um ponto importante. É para transparecer uma conexão sagrada com a natureza, mas são lugares onde só os mais abastados com camionetes costumam chegar, onde o preço da comida não é convidativo e onde os estabelecimentos seguem a mais pura cartilha do capital, na lei da concorrência por seus clientes. Não parece muito com alguma edição do programa Largados e Pelados, tirando o predomínio da natureza em volta.

Pois no predomínio de pessoas querendo se conectar à natureza, observa-se a tentativa de variação em relação à espécie humana urbana, mas bem notamos que quase todos ali são urbanos na amplitude do ano. Em uma rápida pesquisa, a estimativa é que a população praiana dessa localidade não ultrapasse 4 mil pessoas durante o percorrer do calendário. Sendo assim, são realmente poucos os privilegiados que podem se considerar moradores fixos. Imagino a desolação do espaço no inverno, quando aí sim pode adquirir um tom mais cabível com a proposta.

Esse ambiente de boas vibrações criado durante a estação do verão, quando o dinheiro circula, é facilitado para pessoas em que as dificuldades latentes do país ainda não fazem cócegas, o que também explica um percentual de votação em certos políticos. Em resumo, é muito fácil buscar saciar a fome espiritual, quanso a barriga está tranquila. Quando alterações trabalhistas não lhes competem, quando os atrasos sem precedentes no país chegaram e não lhes aborrecem a vista marítima e o digno período de férias.

Pode ser que tudo isso se some à minha descrente apreciação, crescente depreciação e curiosidade. Isto mesmo. Conforme critiquei também me vi curioso por explorar essa fauna tão diferenciada de minhas ambientações costumeiras. Seria eu um infiltrado, um espião, um anotador a lápis de minhas voláteis ideias. Na pior experiência possível, caberia ao menos uma melhor exploração antropológica dessa situação toda. Assim sendo, posso confirmar ou depor meus pontos, ratificar ou retificar. Façam suas futuras apostas.

03/03/2022

Misturas

As cores da natureza

O cinza das cidades

Se misturam 

É a realidade 


As cores que já existem

As cores que o homem cria

Animais confusos 

Cruzam muros

Todos os dias


Pássaros improvisam ninhos 

E caminhos por onde voar

Voam para fugir da chuva

Nos avisam melhor que o celular


Bichos que cruzam a estrada

Testam a sorte sempre ao cruzar

Cruzam e se reproduzem

E induzem outros ao lado de lá 


Bichos humanos procuram motivos

E abrigos para descansar

Vivem a violência das ruas

Ratos, baratas e seus semelhantes

Adivinhe qual vai te atacar 


Bichos humanos procuram sentido

E motivos para levantar

A fome de comida já não basta 

Mas não passa em outro a esperar




Movendo desertos

Estar deitado contigo te vendo revirar os olhos. Por tudo ou por nada. Sentir o arrepio da pele de suas coxas. Sua vagina irrigar-se. Constatar como um estudioso elaborando um relatório. Chegar ao auge da evolução humana em um movimento ao mesmo tempo neandertal.

Gosto muito de passar o tempo deitado preguiçosamente. Contigo então é exemplo de certeza de não ver o tempo passar. Colecionamos assunto em uma coleção sem esforços. Passaria dias inteiros assim não fossem as necessidades fisiológicas e financeiras. Não fosse minha deficiência constatada em vitamina b12 e aproveitaríamos mais. Não fosse linha urgente em apontar esses problemas desnecessários e seria um texto mais bonito. Seriam só aspectos positivos, mas a vida jamais será assim. Idealizações não são a vida e a vida passa longe das idealizações.

Por isso me levanto longe de ti e sigo tarefas as quais não queria me decupar o tempo. Mas são a única alternativa para seguir, com a mente distante entre o que é lembrança e o que é expectativa. E o que é você, passado, na mente o presente e o futuro... futuro do presente ou do pretérito. Meu mais que perfeito que mais nada conjuga nos verbos, mais que perfeito que só serve em nossas pobres e pretensiosas analogias.

Me estendi demais quando só queria estar estendido ao teu lado. Mirando nossas pernas, sua ampla vantagem. Contente apenas pelo simples verbo de ligação estar. Estar contigo, estar em finito mundo e momento que nos englobam infinito. Esquecer qualquer outro resquício de tempo. Torneira fechada para qualquer outra substância mundana que não seja do nosso mundo. É como uma bolha, uma redoma. Um isolamento dos problemas e não o problema que geralmente é um isolamento. É estar contigo, seus cabelos a enredarem-se e desfiarem-se com graciosidade. É a boca em suspenso à espera do próximo gesto. É o segundo que congela como uma fotografia que logo em seguida já será lembrança. É o sorriso de canto imperceptível à distância. É a distância que inexiste quando estamos assim juntos. Sintonizados em mente e corpo. E às vezes mais corpo, às vezes mais mente.

Nós. De pernas, braços e pronome. Nós, como o ato de atar ou nós primeira pessoal do plural. Us arrancados em inglês ou Nosotros na extensão prodigiosa do espanhol. Queria estar estendido ao teu lado, atravessado desertos de sóis escaldantes para terminar assim e ter enxergado no congelamento de um segundo que tudo isso, que toda travessia valeu a pena.

24/02/2022

Posso ir mais longe

Agora eu volto

Por onde eu vim

Capaz que eu fique tonto 

Olhando minha sombra

Távola não é redonda

Nas fábulas

As maçãs comem anacondas


Agora eu volto

Por onde eu vim

Capaz que eu fique tonto

Vendo minha própria sombra

Posso ir mais longe

Que as sondas lunares

Bombas nucleares 

Conversas de bares

Incidente em Antares 

Gabriel García, o Márquez

O mais alto dos andares

O nomadismo e os lares

Posso ir 

A muitos lugares


As ondas do mar

Fazem a mente viajar

Por aí pelos ares

A te conectares 

A se conectar 

22/02/2022

O que me dirá essa canção

Que nada me dizia?

Será que eu mudei?

Será só mais um dia?

Casa em frente ao mar

Uma casa sendo construída em frente ao mar. Ela não está pronta, está sendo erguida. Será um sobrado, o que bloqueia mais a minha vista para o mar naquela direção. Estamos na quadra de trás. Nosso prédio não tem obstáculo imediatamente à frente. À frente está um terreno baldio bastante largo, onde três éguas pastam com uma deliciosa missão de evitar um crescimento desordenado de mato e arbustos. Elas têm se saído bem. Se imediatamente à frente não temos obstáculo que obstrua a visão marítima, para os lados temos a vista de casas erguidas. Erguidas de frente para o mar.

Este sobrado está com o formato pronto. Faltam os acabamentos, como é de se esperar. Do contrário seria só um esqueleto acinzentado. Varios homens estão responsáveis pela obra. O responsável maior, digamos, é um engenheiro de meu sobrenome. Estranha coincidência por estas bandas. Para alguns operários, talvez a maior oportunidade para estar próximo do mar, nesse contato que tantas energias nos despertam. Podem ter vindo de longe, do interior. Podem estar ocupados o suficiente em outras chances, não tendo um fim de semana digno para contemplação, visitação e acolhimento junto às salgadas águas. Uma visão um pouco dramática de minha parte. Porém, não deixo de pensar nesses homens que ouvem, veem, mas estão impedidos de sentir o mar, ali defronte. Trabalham sol a sol, mormaço a mormaço, bronzeiam suas peles, mas não sobre a areia. Remexem o cimento e pavimentam a escada de ligação deste sobrado. Calçadas e concretos.

Do alto de nossa sacada, nem tão alta, segundo andar, os observo sem a definitiva atenção que os pudesse identificá-los ao longe ou ao perto, sem ser o único atrativo, porque realmente mais tempo eu passo olhando diretamente o mar. Mas eles não podem sequer parar muito a obra para apreciar a vista. Precisam cuidar dos materiais, do cimento no ponto certo, da colocação austera. Fico entristecido pelo tão perto tão longe de suas rotinas. Por legislação, parece que nada os impede de terminarem o turno e pularem direto na água, em um fim de tarde/ início de noite. Mas não os vejo nem consigo imaginá-los muito nesse desfecho. Devem direto às casas, direto aos banhos. De chuveiro.

É como se a praia, de construção tão rica, em frente ao mar, fosse restrita aos mais endinheirados. Não sei se é esse o código de conduta. Provavelmente não é. Provavelmente só eu demore tanto tempo a devorar essas questões, que na verdade elas me devoram. Meu pai encerraria esse monólogo todo de uma forma bastante simples.

"Melhor estarem ali trabalhando de frente para o mar do que não estarem trabalhando" - falaria com a experiência de quem já trabalhou e de quem já ficou sem emprego. Com essa frase dele, sem mais delongas, aqui encerro.

18/02/2022

Trabalhos Ocasionais de uma Escrava (1973)

Acabo de assistir ao ótimo filme "Trabalhos Ocasionais de uma Escrava", que começa a se destacar logo na escolha do título. Obra do alemão Alexander Kluge, diretor que empregava sua irmã Alexandra Kluge nos papéis principais. E acertadamente. Neste drama de cunho social como não deixaria de ser no cinema alemão de 1973, várias questões atuais são abordadas mesmo aos pés dos 50 anos depois.

A obra começa a abordar o papel da mulher na família. Casada com um marido despreocupado, egocêntrico e frustrado, a Sra. Bronski precisa se desdobrar entre o papel de mãe, logo cuidadora das crianças, e sustentadora financeira da casa, através de um emprego irregular pela sociedade alemã da época: abortista. Ela era uma espécie de enfermeira ou intermediária também para tomar conhecimento dos casos das mulheres necessitadas, repassando os chamados ora para um médico, ora para uma médica. Como qualquer atividade ilegal, ela possui dificuldades para receber o dinheiro. Várias passagens do filme são elucidativas, nas escolhas minuciosas, detalhistas e sensatas dos Kluge.

Um exemplo sobre o pagamento é o médico abortista dizer que a Sra. Bronski receberia nada na ocasião, pois só estava encaminhando pacientes que nem um tostão tinham para ajudar na clínica. Outra questão da ilegalidade são os subornos e as denúncias de irregularidades. Àquela altura a vida da Sra. Bronski já estava fadada ao ilegal, ao rasgo das leis. Imagens fortes como as de uma operação de aborto abrem o filme para ditar o tom da trama desde o começo.

Chama a atenção o aspecto contraditório de que a Sra. Bronski trabalha em/para clínicas clandestinas de aborto mas possui vários filhos, que, boa casa em que o espeto do marido ferreiro seria de pau, são cuidados pela amiga Sylvia, personagem secundária da trama, amiga fiel que acompanha a Sra. Bronski até onde lhe é possível (saberão ou não porquê).

Eis que com o fechamento desse ramo ilegal de abortos, as contas familiares na Alemanha setentista permanecem a chegar e algo precisa ser feito. O Sr. Bronski se emprega em uma indústria para a qual trabalha em sua especialidade: a química. O eixo do filme, que segue destacando o protagonismo ou a ausência de das mulheres na sociedade, migra para a luta sindical, já que a fábrica para onde trabalha o Sr. Bronski vai se mudar da Alemanha para a mão de obra mais barata e periférica de Portugal. Além de abre aspas expandir negócios, é a forma de contornar leis trabalhistas e as pressões sindicais em voga na Alemanha, representadas na luta austera e incessante da combatente Sra. Bronski, visto que seu marido era, conforme relatado, um verdadeiro frouxo.

Acompanhada de Sylvia, Roswitha Bronski busca mobilizar essa luta sindical, procurando ajuda nos meios de comunicação, onde encontra também dificuldades. Tanto do ponto de vista operário para a luta vigente, quanto de comunicação com os galhofeiros jornalistas dos periódicos. Mas ela não desiste de sua marcha e procura alternativas para driblar essa imposição de fechamento de vagas de emprego, o que prejudicaria rudemente sua família. É interessante analisar que a obra perpassa diferentes movimentos sociais, de algo mais puramente feminista ao movimento operário em si, mas sempre com a ênfase do papel possível atribuído à mulher, personagem principal Roswitha Bronski na película.

Nesse emaranhado proposto, a figura das crianças vai se perdendo e a personagem que inicia mãe preocupada logo está de corpo e alma vestindo seu papel de mobilizadora das massas, através da conversa, de reuniões secretas e produção de panfletos, obviamente contestados pelas autoridades fabris.

Uma grande obra naquele agradável e por vezes descontraído clima crítico das Nouvelle Vagues que ditaram o melhor do cinema europeu na década passada, os anos 1960. É a segunda obra que confiro de Alexander Kluge, ao passo que a primeira, Despedida de Ontem (1966) também emprestava protagonismo à sua irmã no papel de uma andarilha perdida entre vidas, identidades e empregos, em meio à clandestinidade, à burocracia, os preconceitos e as dificuldades de impor-se mulher em uma sociedade onde os homens criam, adulteram e regem as leis. Nessa toada, nos sete anos que separam os dois filmes, vemos um Alexander Kluge sem medo de posicionar sindicalmente, com mensagens abertas da causa socialista e anti-patronal.

17/02/2022

Melhor por escrito

Acho que gosto de escrever também porque, oralmente, nunca gostei de ser interrompido. Pavor de começar a falar e ter de repetir ou começar de novo por interrupções ou porque os outros julgam ter coisas mais importantes para fazer. Assim também sempre detestei terminar algum causo, alguma história e notar o semblante decepcionado ou pouco animado (ou pouco atormentado, dependendo o efeito desejado), indiferente, semblante de pouca relevância ao recém ouvido por meus interlocutores. Dessa maneira, a escrita me parece uma forma mais indireta para tratar com as coisas, mesmo as do cotidiano. Você que está lendo essa divulgação que em seguida irei publicar, não sei se você está interessado ou desinteressado. Não sei se está gostando ou não está. A escrita, em cartas, em blogs, em textos publicados fica assim, mais impessoal. Não sei a reação de quem está do outro lado do texto. Não sei a reação de vocês.

Outra questão muito mais abordada por nós tímidos, por nós antigos ou nós desconfiados, é o poder seletivo, na escolha de palavras para compor um texto escrito, diferente do discurso falado. Também aproveito para confessar que muitas vezes apenas cuspo meus textos, sem um planejamento prévio, sem uma organização anteposta das ideias. É tudo mais interposto. Sendo construído, literalmente, ao gerúndio.

E muitas vezes não gosto de planejar minhas caminhadas, ou ao menos gosto de mudá-las a gosto, à escolha da hora. Várias são as situações da vida que encaro e procuro resolver dessa forma. Acredito na força dos improvisos, creio na variedade, na fuga das mesmices e engessamentos que todos enfrentamos. Me senti a própria Martha Medeiros ao percorrer essas últimas linhas. No disparo improvisado, obviamente. É que também confesso ter lido materiais, livro dela. São coisas da vida, como o nome da obra sugere.

De minha parte, a escolha das palavras certas quase sempre não é problema. Procuro formular essa teia elaborada com precisão. Agora o efeito que causará no interlocutor, se causará indiferença, decepção ou até irritabilidade, prefiro deixar para o trabalho escrito, porque frente a frente, ao vivo, sobre um palco onde ouvem-se vaias, ou até a internet, palco de feedbacks muitas vezes maldosos, prefiro evitar de absorver. No cotidiano, no trabalho, em atendimentos feitos ou recebidos, onde a possibilidade de nos atrapalharmos e ouvirmos queixas é grande, a crítica negativa faz-me mal. Pelos meus escritos também, e é por isso que prefiro manter certa cautela, certa distância, certa ponderação e preocupação. Seleciono melhor meu público leitor e para quem conto um conto, como pergunta uma canção da banda uruguaia La Vela Puerca.

Ainda não cheguei à (agradável?) idade de não me importar com as críticas e me desligar mais do que pensem. Enquanto isso, procuro interligar e agradar. Espero um dia chegar mais no que vendem ser a arte sutil ou não de arremessar o dane-se. Mas não pretendo ler o livro esse. Enquanto isso, permaneço seletivo.

16/02/2022

Captar

Meus olhos captam

Imagens falsas

Porque eles estão aptos

Para captar

As águas vivas

As águas vivas

Elas são nativas

Do oceaaaanooo

Nós é que não sooomos

Nós é que não sooomos


Caminhar pelo mar

Sempre me deixa desperto

Caminhar pelo mar

O mar sempre inquieto

Caminhar pelo mar

O mar sempre incerto

O mar sempre certo

O mar sempre discreto

Se não prestamo atenção

No volume de água

Naquela imensidão

Naquela e mansidão


As águas vivas

Elas são olgivas

Que nadam graciosas

Que nadam bem altivas

Transparentes e rosas

Pelos fundos do mar

Criaturas esquivas

Tentáculos, ventosas

E as belas águas vivas

E as belas águas vivas



15/02/2022

Crônica sobre os Gabriel

Eram dois Gabriel. Mas eram muito diferentes. Processo amplamente descritivo. Um Gabriel estava sempre asseado, como se diz. Vivia limpo, de prazo cumprido com o banho. O outro Gabriel podia utilizar a mesma camisa vários dias da semana, não se preocupava muito com essa aparência ou imagem.

Um Gabriel não tinha pelos. Nem se pode dizer que era barbeado, porque a barba não lhe brotava em qualquer daqueles anos de ensino médio e mesmo no início da idade adulta. Gabriel apenas olhava e invejava o bigode, a barba que os companheiros tinham a surgir, mesmo aqueles que estavam no seu time, abandonavam o barco e pulavam para o outro lado, nem que fossem penugens, pequenas barbichas que brotavam. O outro Gabriel era o chefe do barco para o qual muitos chegavam. O outro Gabriel era barbudo, barba cerrada, disfarce de boa porcentagem de seu rosto encoberto por pelos grossos.

Um Gabriel era o filhinho da mamãe. Sua mãe estava sempre presente. Para buscar boletins, para conversar com professores, para auxiliar alguma coisa, para preparar um sanduíche, para perguntar como ele estava, para saber com quem andava, para tratar um machucado, físico ou espiritual. A mãe do Gabriel estava sempre lá. O outro Gabriel era o contrário. Um fujão. Chegou a fugir de casa duas vezes. Pulava o muro e ia curtir a noite. Voltava dois ou três dias depois. Os pais cansaram do Gabriel, até porque cansavam rápido. Suas fugas não eram mais acompanhadas de preocupação. Deixa que se divertisse, não perderiam mais noites de sono por ele, que perdia noites de sono nas fanfarras em que se metia. Até que os pais viajaram para não mais voltar e ele se emancipou, mesmo menor de idade. Era referência para os demais, descolando bebidas e cigarros.

Nisso obviamente também se difereciavam. O primeiro Gabriel era totalmente abstêmio. Era inclusive menino de igreja. Sempre bem vestido, predominantemente com roupas claras, com peças brancas. Grupo Jovem da igreja, violão e louvor ao Senhor. Bochechas cumprimentadas por velhinhas. Hóstia em dia a cada domingo. Missas de salmos cantados. O outro Gabriel também era músico. O outro pegava o violão e improvisava algum rock. O primeiro Gabriel até gostava de rock, mas era mais dos antigos brasileiros das décadas de 1980, no máximo respingos dos anos 90. O outro Gabriel também bebia dos clássicos, mas puxava para o satânico. Gostava do punk rock também e gostava de todas as quebras de paradigma, nem que fosse o grupo Queen com Bohemian Rhapsody, burlando com a indústria musical que tinha a toada por músicas curtas, de tamanhos comerciais para programação de rádio.

O primeiro Gabriel ouvia rádio. Comentários políticos, muitas vezes conservadores, pois era rapaz de igreja. Partidos do centro para direita. O outro Gabriel gostava de rádio pirata, de programação com linguagem chula, de palavrões à reviria. Mas também gostava de políticos conservadores. No caso os que aprovavam porte de arma, que este, o 'outro Gabriel' gostava ter consigo para se proteger. O pai esqueceu uma das armas na mudança. Levou uma, deixou outra. O Gabriel tinha ela no armário. Era ouvir barulho estranho - ou mais estranho que o habitual de noite - que o Gabriel já se direcionava para esse armário para ver qual que era. Nunca havia usado, mas exibição aos amigos era constante. Esse era o Gabriel.

O Gabriel da arma tinha mais amigos para mostrar a arma. O primeiro Gabriel era reservado. Andava no máximo com os amigos do Grupo Jovem. E não andava muito. Era tomar um sorvete, uma ida à biblioteca. Uma tarde para comer algum lanche na casa de amigo. Passar alguma tarde quente de sol. O Gabriel armado era mais amado também. Atraía a atenção de algumas gurias, mas na base da insistência, porque bonito não era. Tinha o nariz quebrado de uma briga que se meteu na infância. Cicatriz permanente. O resto do rosto escondido na barba. As camisas de bandas de rock se repetiam. As más influências, ou mesmo era ele próprio que já influenciava os outros. O álcool e depois as primeiras drogas. Da inofensiva maconha à coisas mais pesadas.

O Gabriel abstêmio mantinha-se na dele. Um refrigerante, para ele, já era droga o suficiente. Já estava se passando nos cuidados com o próprio corpo, tão cultuado e citado nas palestras da Igreja. A fortaleza, o campo de resistência, a estrutura pela qual se protegia o bem estar da mente. Enquanto isso o outro Gabriel virava noites, orgnizava festas, cruzava a cidade rumo a outros bairros. Escapava de consertarem-lhe o nariz.

O primeiro Gabriel tinha boas notas. Desde os primeiros anos de escola, sempre se manteve entre os primeiros, inclusive no Instituto Federal, onde ambos haviam passado. Gabriel poderia ser considerado um dos melhores alunos do Instituto, e, por se tratar de uma instituição que acolhia alunos da cidade e da região por conta do bom ensino gratuito, era um dos melhores alunos de toda aquela regionalidade. O outro Gabriel até poderia ter boa cabeça para estudar, mas, para ele, sem os pais em cima, tanto faz. Começou bem, na época em que passou na prova ainda se debruçava por vezes sobre os cadernos, mas foi abandonando este hábito. As notas piorando, a frequência mais ainda do que elas. Sumia do IF por semana. Os professores, assim como os pais dele, desistiam de perguntar.

O primeiro Gabriel passou a gostar um pouco disso, embora não confessasse ou mal tivesse a quem confessar. É porque, apesar de tantas mudanças, de tantas diferenças, de tão pouca semelhança, eles ainda se confundiam quando, vez ou outra, um professor desatento ignorava a presença do sobrenome: Gabriel! - os adultos chamavam - e ambos respondiam: - Eu??