17/01/2022

A invisibilidade descoberta

Me incomodam algumas palavras femininas que se tornam apenas apêndice do significado inicial destinado aos homens. As condessas apenas descendem dos condes. As abadessas apenas descendem dos abades. As baronesas após os barões. Assim posso pensar diversos exemplos. 

A deusa acrescenta letra ao já existente deus. Eu gostaria que mais palavras fossem originárias às mulheres. Conforme mulher e homem são palavras tão distintas. Agrada o zangão ser o intruso na colmeia em relação à abelha. Outros animais são originariamente fêmeas. As lentas tartarugas, mas as rápidas onças. As altas girafas. As camufladas zebras. As trabalhadoras formigas. As graciosas baleias. As primaveris borboletas. Da humanidade, o representante ainda é o homem. É ele quem sobe ao palco para responder por conta. É ele quem ainda comete os feminicídios.

É ele quem organiza a política, as armas de fogo e as guerras. A palavra enfermeira, para amenizações ou tentativas de eventuais consertos, nos soa mais natural no feminino. É o homem quem aniquila anonimamente outro na guerra. Soldados são apenas números. Suas vítimas são apenas outros números. Mas algumas vítimas - palavra feminina - nem números são.

É o homem que exclui sobrenomes nas certidões. Aqui ou nos países hispanohablantes. É ele quem invisibiliza e nega direitos. É quem juiz superior julga em âmbito fora de suas competências. É quem trancafia mulheres no Oriente Médio, mas ainda nega oportunidades e igualdades salariais por todo o mundo. É quem causa o medo em motoristas mulheres que atendem passageiros. É quem assedia sem o pudor, o desprestígio, a punição que a situação mereceria. É quem também, mesmo sem a farda da toga, julga do alto nas relações de poder. É quem julga em relações sociedade afora ou entre as paredes das casas, em relações domésticas.

A voz das mulheres é silenciada no Afeganistão nos julgamentos. Se ela é estuprada ainda será vista como impura e acusada de adultério. E vista como impura e acusada dessa forma, ela envergonha a família. E, ao envergonhar e envergonhar-se, talvez ela se mate. Ou seja morta. E "que seja", muitos dirão no Afeganistão. Mas aqui também.

E o que fazemos pelas mulheres vítimas? E o que fazemos para que não sejam vítimas, para antecipar, para prevenir, para preservar, para que não sofram? E como a relação de poder entre pessoas que conhecemos pode moldar tudo isso? Qual o nosso papel nesse tabuleiro? Quando o 'amigo' age errado. Quando um pai assume posturas que não deveria. Quando as relações de poder, trabalho e capital estão gerindo os movimentos de abusadores marionetes. Abusadores marionetes - propositalmente no masculino.

Quando a invisibilidade - palavra feminina - está no trabalho. Está no esporte. Está nas ruas. Está sob as burcas. Está na internet. Está em processos de autoras, de atrizes, de atletas famosas em busca de reconhecimento, ou de respeito, ou de punição a seus algozes. Está no anonimato da prostituição a cada dia ou a cada noite. A invisibilidade nos passa despercebida, como o próprio nome diz. Mas ela toca a muitas. E se isso, na descoberta, no descobrir da capa, na aparição do que era invisível, se isso não nos toca de volta, quer dizer muito sobre nós mesmos.

Eu tenho o privilégio de descobrir essa invisibilidade por meio de livros, de depoimentos, de mulheres que, para mim, ou para alguém contaram ao longo da história.  Eu tenho o privilégio de descobrir essa invisibilidade assim. Para elas, quase sempre a descoberta é na pele. Na prática. Consigo mesmas. No susto. No trauma. Na experiência. É consigo mesmas, ou com a mãe, com a amiga, com a vizinha. É a descoberta da invisibilidade na prática. É tentar reagir e sufocar. É tentar ser ouvida e não ter voz. É tentar sair e ser aprisionada. É muitas vezes não ter para onde correr. Muitas vezes é tarde demais.

E o texto é por todas que não tiveram tempo ou modo como saírem dessas capas. Mas é também pelas que ainda podem estar gritando ou querendo e ainda há tempo. Tempo do que era invisível nos saltar aos olhos.

16/01/2022

12/01/2022

O Esmo Nunca é o Mesmo

Estava pelas ruas escuras de nossa noite. Identifiquei uma das praças centrais, embora ela estivesse mais reta do que qualquer lembrança. As árvores passavam total aspecto de escuridão e sombreamento. Para tentar me situar no meio daquele tabuleiro, contornei a praça em busca de uma direção. Completei o perímetro ainda perdido. Saí para o lado que considerei conveniente, com o coração ofegante de quem criou alguma expectativa, nem que fosse a preparação para enfrentar o medo de circular errante por ali, sem uma garantia de segurança. Conforme eu avançava meus passos, a obscuridade do findar do dia me perseguia e a penumbra era como uma capa que agora vestia toda cidade. Consegui em linha reta prosseguir e desafogar-me de um pesadelo em outro. Dessa vez eu sabia onde estava, no meio de nossa avenida principal. A copa das árvores era mais alta do que a praça da primeira parte de minha perdição. Porém, saber onde estava em nada significava segurança. O lampejo da familiaridade proposta pelo conhecimento deu lugar no segundo seguinte à consciência de estar em uma zona perigosa. Naquela avenida, precisamente naquelas quadras qualquer gangue poderia encontrar-me. Qualquer dupla mal intencionada poderia derrubar-me e levar-me os pertences, ou mesmo surrar-me pela mais pura adrenalina e diversão. Aqueles jovens de ambições confusas e violentas. Eu procurava seguir passeando como se estivesse confiante, de destino certeiro. Ou será que era melhor transparecer o espírito vagabundo que cobria àqueles jovens? Me misturar no recinto a céu aberto? A luminosidade dos postes não prestava cócegas à tamanha escuridão. Afundei minhas mãos nos bolsos da jaqueta. A bem da verdade era uma noite também de calor. Um cassino, ou melhor, um fliperama concentrava a atração maior. Além de ajuntar mais gente, também correspondia ao maior acúmulo de luz elétrica e, não por acaso, iluminação. As luzes praticamente cegavam aos desavisados. Menos àqueles jovens que estavam prontos para qualquer desafio. Ou ao menos assim aparentava, enquanto meu pobre coração voltava a subir marchas em disparada. Nem caminhar rápido demais para atestar medo, nem devagar demais para possibilitar uma maior ação deles todos suspeitos. Assim flutuam as ideias paranoicas que em nossas desventuras encontram porto. Por mais que colocar pessoas inocentes sob suspeita represente um preconceito que deveríamos combater, o modo de defesa naquele caminho falava mais alto. Consegui sair da avenida na esquina do posto de gasolina mais movimentado. Os motoqueiros arrancaram em ronco ensurdecedor. Os frentistas terminavam cada abastecimento com a cabeça baixa de quem não gostaria de visualizar alguém nos olhos. A resignação do trabalhador naquela zona de possível estopim de conflito. Era possível que a qualquer instante algo pesado e tremendo ocorresse. A atmosfera do ar dificultava a respiração fluente. Ou seriam somente os efeitos de meu medo iminente?

Pois consegui sair da avenida aquela pela rua do posto que fundia, na calçada oposta, com a maior igreja por aquelas bandas. Uma envidraçada em formato de enorme caixa, com vidros espelhados que faziam-nos deparar com nossos próprios vultos naquele limiar noturno. Deixei também a igreja para trás e as próximas referências eram somente os pontos de ônibus. Para minha surpresa a luminosidade voltava a orquestrar meus passos. Pisava com maior precisão, com maior certeza. Olhei pelos arredores para uma cidade de pouca movimentação. A loucura daquele barril de pólvora parecia ter passado. O céu tomava uma coloração acinzentada, como uma lata de tinta misturada entre azul, cinza e branco. A precipitação de chuva parecia evidente. Me atingiria a qualquer instante. Pude passar por uma feirinha em formato de camelódromo, onde algumas bancas estavam abertas, mais pessoas caminhavam, barulhentas, a conversar alto. Algumas delas estavam fantasiadas. Era como um grande festival, mas eu não possuía objetivo concreto. Procurei por alguns vídeo games que há anos não jogava. Estranhei o formato das bancas de jogos que estavam bastantes vazias, esquivas de opções relevantes. Só fariam com que eu comprasse algo por muito ato de engambelar. Preferi agradecer da ajuda que uns tentaram prestar e seguir adiante, tomando meu rumo. Subi pelas entranhas novamente do centro, com a impressão de que agora prosseguia novamente para a região do início sombrio de minha jornada. Caminhava eu em círculos? Passei pela rua de muitos ônibus, aquela que retirava as pessoas do centro rumo ao chamado bairro-cidade. Em uma linda fachada de prédio, que agora bem me recordo, sempre me chamou a atenção, havia o anúncio e a promessa de uma grande festa com apresentações musicais de qualidade duvidosa. Mas consultei o relógio e percebi que ela só começaria mais tarde. Ou seja, o jeito era gastar sapatos mais tempo por aquele espaço de pouca margem para erros. Consultei o relógio mais duas vezes para certificar que nada poderia ser feito. Maldita encenação e matação de tempo. Por que não caminho de volta àquela praça sombria, onde tudo de tão mal começou? Ora essa, foi exatamente o que fiz. Mãos novamente enterradas no bolso e pernas adiante. Quando saí daquela zona mais conturbada do centro, peguei um trajeto de rara elevação em nosso município. Uma chamada lomba, como diriam os porto-alegrenses. Relativa colina, subida pouco íngreme, mas não ignorável. O contorno era ao lado do maior hospital regional. Ao menos acredito eu que seja. Escrevo este relato alucinado e ébrio de meu próprio sono. Qual não foi a minha surpresa quando entrei na rua com nome de almirante e percebi a presença de um pedinte. Ele me perseguiu apressando os passos até alcançar-me. Foi logo falando em linguagem acelerada.

- Uma moedinha, meu amigo, por favor, sabe eu, não pense mal, você me conhece. Passei por você várias vezes. Sei qual é a sua. Saiba também qual é a minha. Não sou ladrão, veja bem. Meu aspecto pode confundir mas

Ele seguiria nesse ritmo e nessa ladainha por quadras, após vencermos a presença de todas as repetitivas pet shops daquela rua. Eis que ainda monossilábico e louco para livrar-me de tal intrusivo personagem, fui perdendo o raio da paciência quando o mesmo, após estar totalmente virado em minha direção, acabou não percebendo a chegada de um carro, que o colidiu com tudo. De imediato, surpreso e quase em estado de choque, pensei que a batida poderia até vitimar de forma definitiva o rapaz.

Perplexo, tentei prosseguir minha caminhada em busca de tempo ou do que fosse, mas logo mais e mais gente foi parando para tratar do assunto, se informar do assunto, na mais legítima legião da fofoca. Meu amigo de infância Igor parou com seu skate. Parecia um dos mais exaltados na rua. Talvez tenha me chamado. Uma comitiva agora me acompanhava como se eu fosse o culpado pelo fatídico acidente. Não o bastante, um policial veio direto em minha direção e me solicitando o par de pulsos para a convidativa colocação de algemas. Um querido. Novamente não bastasse a minha prisão baseada em não fazia ideia do quê, Igor Oliveira também acabou sendo levado. Parece que a polícia por ali recebia por quantidade de apreensões. E nós jovens suspeitos em lugar errado e em hora errada. Lamento informar-lhes minha desinformação quanto ao estado de saúde do pedinte tagarela. Se escapou dessa, uma das lições seria de olhar mais por onde anda. Talvez eu devesse torná-la para mim. Após tanta caminhada sem rumo, a esmo, como se diz. Quanto ao motorista culpado da performance, também não sei afirmar o que houve. Talvez tenha pago propina e sido liberado. Só não passaria totalmente impune pois as marcas da colisão com certeza se fazem presentes na lataria de seu veículo. Mas isto é apenas eu supondo.

Chegamos à prisão encaminhados por bem humorado policial. Ele estava neste estado de espírito contemplado pela promoção ou gratificação que iria receber por encaminhar tão perigosos jovens desordeiros. Se tomassem nossas acusações baseados em ficha criminal ao longo da vida, talvez jamais houvéssemos passado do consumo de maconha.

11/01/2022

A travessa noite

Atravesso a noite em monumental silêncio

Se alguns meus poemas parecem mais idiotas

É porque os pensei ritmados em músicas

Que provavelmente jamais serão conhecidas

Assim o monumental silêncio que acompanha a leitura 

Lhe dará impressão de incompleta criatura

Que assim sobreviverá muito menos viva

Com seus traços errantes de criatura única

Que jamais deveria ter deixado a toca 

Atravessa(s) a noite em capenga experiência

10/01/2022

Peço desculpas

Às vezes escrevo ébrio em minhas próprias tristezas. É urgente mas pode ser irrelevante ou, no mínimo, mal canalizado.

O mundo está sempre entre o otimismo do sempre e o pessimismo do nunca. Maioria dos meus textos e dos meus dias começa com 'às vezes".

Gerúndios e crisântemos

Há muita coisa bonita para ser escrita

Há muita coisa bonita para ser vivida 

Há muita coisa infinita na extensão dos gerúndios

O universo é o gerúndio em expansão 

07/01/2022

A despedida de ontem (1966)

Para quem acompanha dessas linhas o esboço ou formato verossimilhante a um diário, tenho passado as últimas horas em forte contato com o cinema. Assisti a grandes filmes que concorreram ao Oscar de melhor película internacional. Destaque para Mar Adentro (2004), cujo eu talvez lance linhas sobre. Mesma situação de A Ponte da Desilusão (1959).

Mas término aqui um filme que eu havia começado a assistir em 2021. A Despedida do Ontem. E só agora me dou por conta de que é uma forma também de me despedir do meu ontem, do meu ano passado, 2021.

Enfim, o filme trata de um tipo de narrativa comum na Nouvelle Vague francesa dos anos 1960. Embora este de Kluge seja alemão, de 1966. A jovem Anita com ficha criminal e perseguida pelas autoridades. Estava na onda criticar os governos e seus aparatos de repressão. Ocorre que, pelo que consta, nazistas também estavam envolvidos pois perseguiram os pais da jovem Anita. Ela acaba solitária vagando pela Alemanha da época. Saindo do leste para o oeste, onde não se encontra. Críticas bem humoradas e passagens sobre a arte e a filosofia vigentes abrilhantam este filme, conforme os franceses também sabiam fazer com maestria.

Fiquei pensativo quanto ao título: Despedida de Ontem. Como é difícil muitas vezes nos despedirmos do ontem. Creio que principalmente quando assim precisamos. Quando não há tamanha necessidade, quando é indiferente, parece ser uma tarefa mais fácil. Para Anita, a despedida de ontem seria recomeçar, uma nova vida, ter para onde ir, ter com quem contar, após a ausência de sua sumida família.

Para muitos de nós a Despedida de Ontem pode ser um emprego, um caso amoroso, uma nova cidade. É o rompimento de laços, é o avançar para novos portos. É saber conviver com o passado, sabendo que ele até pode ser evocado,  mas em geral muito mais coisa é descartada ou fica a apanhar pó no porão. As despedidas de ontem em geral são menos dramáticas que a vida incessante e ofegante de Anita. Mas elas estão por aí e todos estão, em algum momento e de alguma forma, se despedindo de seus ontens. 

Ou tens ou tens: todo mundo possui folhas de calendário acumuladas por se despedir.

Jovem Anita, personagem principal da Despedida de Ontem, filme que acompanha suas travessias errantes pela Alemanha da época.


05/01/2022

Nota

Um traço que gosto muito no autismo é nossa capacidade de formular um mundo mais idealizado dentro da cabeça, o que pode nos proteger pra realidade de fora, em uma fórmula com fantasia e ilusão. Isso sempre fez parte da minha vida e creio que o desmanche dessas barreiras seguras, o rompimento do dique com a realidade acaba causando o naufrágio. Mas os traços do mundo conforme imaginamos são uma coisa fantástica e dificilmente descritível para quem está de fora (ou seja, todo mundo).

04/01/2022

02/01/2022

Reflexões sobre Jorge Amado

Leio sobre vida e obra de Jorge Amado, descobrindo uma intensidade nele presente. Dela eu não fazia ideia. O processo da escrita é curioso realmente. Pode surgir de uma pessoa comunicativa e bem aventurada como ele foi, no convívio de conflitos por terras na Bahia e no Sergipe, no frequentar casas de cabarés, no frequentar e fugir de internatos. Sua ida ao Rio de Janeiro, sua participação efetiva em diversos jornais, sua militância no PCB. Sua vida afetiva e a amizade com alguns dos principais nomes ocidentais do século 20. A escrita está repleta de exemplos sobre os personagens com quem ele cruzou pelo caminho. Mas a escrita também pode surgir de nós mais introspectivos. Observadores mais distantes, curiosos interessados em vários temas, criadores a partir das leituras que armazenamos ou urgentemente fazemos - como essa - em minha cabeça.

Concordei a pleno com uma citação de Jorge Amado de que os personagens não podem ser reféns da história. A história deve ser refém dos personagens, se assim for. O que isso quer dizer? Não devemos planejar a história já com seu final, obrigando a diferentes e complexos personagens mundanos a encarar o que seria um verdadeiro circuito rumo ao desfecho. Não. Os personagens têm características próprias, agem quase que por conta própria, podendo-nos inclusive arrancar esse quase. Eles caminham com as próprias pernas. Dão seus jeitos. Alçar um roteiro, uma história pré-programada seria limitá-los, restringi-los. Melhor que os personagens, a partir, através de suas características nos mostrem aonde querem ir. Nosso lápis, nossas ideias os acompanharão.

Sublinhado isto, adiante Jorge Amado confessa nessa entrevista de 1981 que acabo 40 anos depois por ler, que devemos amar essa nossa terra. Esse nosso Brasil. Contextualizado, ele que vem de pais semeadores, ligados às terras e aos campos, que viajou por todo o país, na política e nas cassações - viajava mesmo "preso - ele aprendeu muito do valor de nossas diferentes e continentais terras e sobretudo sobre o povo aguerrido que nelas procura colher. O povo Jorge Amado definiria como a síntese de suas obras. O contato com o povo, com o qual ele tanto aprendeu. Pessoas sofridas e personagens para os quais muitos da nossa média burguesia torcem os narizes: trabalhadores, prostitutas e beberrões. Nesta enfatização, acompanho Jorge pela significação majoritária desses grupos, como ele diz, constituintes de nossa nação, presentes em relatos dele que procuram contar a realidade e o cotidiano, e deles não podemos fugir nessa transfiguração. Além da composição realística, minha admissão aqui é de que esses grupos possuem força expressiva, mistérios, curiosidades, trilhas a percorrer. Influências psicológicas, emaranhado de escolhas que os levam aonde forem. Como traçar um caminho pré-programado se o magnetismo dessas figuras pode nos surpreender em suas nuances de vidas próprias?

Comecei a escrever pensando no sentimento brasileiro despertado, porque fui assaltado aos ouvidos com músicas na vizinhança, elas devida e pomposamente nacionais, como Metamorfose Ambulante de Raul Seixas, Que País é Este? de Legião Urbana e a minha favorita das três: Malandragem da Cassia Eller. Obrigado a ouvir as três, procurei um significado, uma união, um laço entre elas. Três músicas hoje antigas que atravessam décadas até serem ouvidas aqui no litoral em pleno arrancar do 2022. Raul me causou dúvida porque já gostie mais. Influente amigo meu o desgosta. Mas penso que Raul teve o que dizer, a quem dizer em sua época. Talvez minha releitura negativa só chegaria pelo viés da repetição: ouvimos muito dele, numa quantidade limitada de canções que nos são repetidas. Situação semelhante ao Legião Urbana. Quanto mais tive paciência de aprofundar meus ouvidos para dentro dos discos de Legião, descobri ritmo semelhante a algo mais latino-americano, assim me referindo para fora dos limítrofes do país, mas dentro dos limites da América Latina. Legião tem muito do seu valor desconhecido pela repetição das mesmas músicas. Quem gosta dos pequenos trechos da banda comandada por Renato Russo, ou mesmo quem não goste, poderia dar uma chance a mais em uma profundidade mais austera.

Enfim, o foco da discussão é Jorge Amado, um amador no sentido de muito amor para dar. Inclusive em um tópico cobraria um maior profissionalismo no desenvolvimento da escrita - e das críticas - no país. Mas um apaixonado. Degustou da vida e muito dela registrou. Se inspirou e passou sua palavra adiante. Repleto de experiências, tinha muito de onde beber, de onde colher relatos para engrandecer seus livros, para retratar um realismo que muito estava em voga. Nesta vida terei em relação a ele muito menos experiências pessoais e muito menos sucesso. É impossível comparar. Porém fraternalmente, como ele estendeu o braço para muitas pessoas, incluso as que pensavam politicamente divergentes dele, caminho um pouco ao lado de Jorge, de Jorge Amado. Presto atenção em suas citações no que primeiro encaro a conhecida história dos Capitães da Areia de Salvador, mostra que reconheço do cinema brasileiro. Dali observamos um Brasil real que muitos relutam por não ver, ou pior ainda, julgam sem conhecer. Não conhecem as raízes, a falta delas, os motivos, a falta de recursos, de assistência, de oportunidades. Acompanhando o final do romance, crio uma imagem, uma ideia de perpetuação. Apesar do desfecho distinto dos personagens da trama, os capitães da areia mudam de posto ou vão para cova e o mundo segue, em uma formação entre a organização e a desorganização, em uma hierarquia que poderia parecer infantil, mas é séria em suas complexas matizes.

O chamado de Jorge, o Amado é para prestarmos atenção no Brasil. Um Brasil que ele viveu intensamente, mesmo depois fora dele, pelas lembranças que nem tentando abandonamos. Fortes, sustentadas, afincadas. Afinadas em nosso catalisador da memória. Dele recebo, presente tardio, histórias de um Brasil que não vivi, não viveria e não viverei, nem tenho como. Agradeço como uma oportunidade a mais para seguir adiante, observando detalhes que ele chamou a atenção. Perscrutando política onde é necessário adicionar mais do tempero da política, pois que sentido nos pode haver na vida, nós iniciados, sem o ideal por mudanças que consideramos necessárias? Sejam em nós, sejam pelo bem dos outros?

30/12/2021

Notas sobre o Luto - pós leitura de Chimamanda

Terminava a leitura de Notas sobre o Luto, de Chimamanda Ngozi Adichie, autora nigeriana, das mais influentes africanas da contemporaneidade. Neste livro ela aborda a experiência marcante, o fio abruptamente cortado com o luto da morte de seu pai, pessoa pela qual ela mais nutria bons sentimentos. A autora feminista comenta a experiência vivenciando o inesperado luto, ao passo que antes do ocorrido não saberia defini-lo. Enxergava essa questão crucial, que cerceia a vida, sempre nos outros, mas nunca dentro de seu próprio seio familiar.

O término dessa leitura que eu havia iniciado no mês anterior me deixou bastante reflexivo também pelo contexto. Como é de praxe de minha conduta, acabo por desenvolver a teia da empatia em direção aos escribas que me conferem seus trabalhos. Procuro imaginar todo o contexto de suas experiências, assim como por esses dias lembrava eu das passadas formaturas que eu pude acompanhar, sempre pronto para entrar em pranto, imaginando a caminhada árdua daquele ou daquela estudante. Pessoas desconhecidas mas com temas comuns como a distância familiar, física, geograficamente ou mesmo no distanciamento por contar com menos tempo, em função dos eloquentes estudos. Pessoas ocupadas, pessoas sedentas por progresso, pela promessa de tempos melhores aos estudiosos. Pessoas que não viram o tempo passar. E logo se deparam de frente para o povo pois foi chegada a formatura.

Diferente dos brindes aos formandos e seus fiéis escudeiros acompanhantes, em Notas sobre o Luto, Chimamanda Ngozi Adichie aborda um outro extremo da vida. O pesar, o véu do óbito por sobre a face da pessoa amada que ficou para posteriori. Passo a passo, a dificuldade de assimilar o que já não tem mais volta. Os lindos e eternizados momentos na memória, mas que não irão mais voltar. A ficha que bamboleia, faz seu traçado errôneo de mesa de pinball até despencar. O movimento pendular das ideias entre o negacionismo e a aceitação. Em meio a tudo isso, o disfarce necessário na sociedade que lhe exige seguir a vida. Superar. Caminhar. Ir adiante. Família para cuidar, emprego após o luto. O semáforo segue funcionando no trânsito. A chuva cai, molha e o piso seca na sucessão das estações. As faixas de pedestre recebem encontros e desencontros de quem possivelmente jamais iremos rever ou, mesmo que reveja, não percebemos. Nossa mente está em outro local. O luto é o canal de televisão exclusivo que toma conta da nossa grade de programação. Estamos gradeados, envoltos ainda à experiência mórbida.

Para a Chimamanda, a necessidade de manter a educação e o avançar dos passos da filha, oitava neta de seu falecido avô, com quem pouco acabou convivendo mas sem dúvida muito irá ouvir sobre. Inclusive nos registros carinhosos desse livro dedicatório. É um livro de memórias, de registros familiares e um convite a partilhar o Luto. A procurar entendê-lo. Seus processos, suas tomadas e retomadas, sua presença intrometida. Seu estado de expansionismo e inquietação. O luto não fica guardado em uma caixinha preta, esperando nossa intromissão em prol da palavra portuguesa saudade. O luto, ele percorre nosso corpo, bloqueia a ação de nossas mãos e o fluxo de nossa mente.

Escrevo após o término da leitura enquanto minha mãe próxima de mim sofre com uma indisposição. Pode ser algo que comeu ou a chuva que apanhamos juntos pela manhã. Mais uma vez percebo que ela não tem idade para isso. As trilhas por pedras íngremes e que tornam nossa postura a cada passo vacilante e insegura. A chuva que cai de forma surpreendente (ou nem tanto) e que interrompe num desplugue nosso ideal passeio. A volta para casa com as roupas molhadas do corpo mesmo em manhã de verão. O perigo que nos cerca quando a idade avança. Penso nela deitada indisposta sobre o sofá. Penso no pai da escritora Chimamanda, professor universitário da nobre matemática. Neste grande homem presente agora somente nas lembranças de extensa e carinhosa família ainda passante a beber colheiradas de luto. Penso em minha mãe e minha responsabilidade diante de sua inevitável velhice.

O pai de Chimamanda se foi passados os 80, se não me engano direcionado aos 90 anos. Minha mãe ainda não tem 70, mas num piscar de olhos poderá ter. Ou o pior: não ter. Devemos estar preparados. É o curso natural da vida, como diversos autores já abordaram no canto de seus acanhados improvisados diários ou nas páginas mais folhadas dos best-sellers. 

É com primazia que penso em mim mesmo, mas é com constância que olho para os lados, que observo, respeito e sinto os outros. Obviamente com destaque para os que estão ao meu redor. Penso demais. E com a minha mãe, tão próxima, por ora em estado de crescente delicadeza, após a leitura bem traçada, subjetiva e biográfica das notas enlutadas de Chimamanda Ngozi Adichie, torna-se para mim impossível não reproduzir adjacente paralelo. Faço votos ao final para os que aqui chegaram para cuidarem dos seus. Que façamos, para quem conosco está, um gesto a mais, um desejo realizado a mais. Uma bondade, uma cortesia, uma bem intencionada manifestação. Espalhar os bons gestuais e as boas palavras para melhor lembrarmos de que a parte foi feita nesse caminho transitório, inconstante e surpreendente que é a vida. Estendamos a mão àqueles que tanto nos estenderam e não se pouparam em suas aceitadas missões. Notas sobre o Luto é sobre a morte, como sugere o nome, mas é sobre a vida, nossas ligações afetivas e o desejo de conservá-las, no duro aprendizado de quando perdê-las. Nos desafios racionais perante as cachoeiras da emoção. Nos percalços da vida em armazenarmos momentos que considerávamos eternos.

29/12/2021

Limiar da vida

No limiar da vida

Vou caminhar 

Sobre as feridas

Rumo a um altar


No limiar da vida

Não vou me importar

Com outras brigas 

Nem com as dívidas

Que sei

Não vão me pagar


No limiar da vida

Que foi

Foi tão ardida

Íngreme a subida 

Rápida descida

Que resultou

No que restou:

O limiar da vida

28/12/2021

Abatimentos e Fomes

Como faz para não se matar um sujeito que está insatisfeito com todas as vertentes da vida? Permanece vivo com alguma luz distante que uns chamariam esperança - mesmo que entendam que para ele está totalmente opaca, ofuscada - ou será que mantém o corpo firme somente pela experiência de encarar tantas marteladas de frente, na reta da marreta, defronte para a pancada? Quer se manter longe das estatísticas dos mortos jovens, pois soube que na sua família o mais novo de todos parece que foi-se aos 36 ou talvez 38. Nenhum registro de morte infantil, apenas alguns registros de concepções que não vingaram, de missões abortadas ainda no ventre. Tenta encarar de frente. Sabe que quase metade do país vive inseguranças, como a mais grave, a insegurança alimentar, mas está de pé como reza o dito de que a América Latina não tem pernas pero camina. Sabe que milhares, mirem-se milhões de trabalhadores ainda não desistiram. Tenta entender na cabeça deles o porquê. Já imaginou o suicídio como protesto, como causa, como algo chique, manifestante contra o sistema, algo planejado, teatral até diria. Mas leu e viu exemplos de que a morte às vezes é somente crua. Debaixo do sol de algum meio-dia, no meio de uma rua que poderia ser deserta ou recoberta pela sombra diminuta dos transeuntes. Pode ser do alto de um prédio rumo ao choque com a calçada, pode ser o envenenamento, pode ser a arma de fogo ou mesmo uma arma caseira na base de esguia coragem, pode ser. Pode ser somente a fome batendo incessantemente à porta até o entre da exaustão, a hora exata da derrocada, da pedra final em composto labirinto. A fome que atazana, ronda, derrota milhares. À fome que cerceia, seca a boca, domina o sistema nervoso de paladares sedentos. A fome é implacável e por ora, somente por ora, ameniza minhas notas suicidas. Chego a sentir-me culpado de elaborá-las em tal situação, mas volto ao ponto de que gostaria de aprender a ter paciência, de que minha experiência para algo servisse em minha própria ajuda, em meu próprio socorro. Temo pela minha saúde, mas principalmente pelas de quem mais amo. Me sinto culpado em não domar esse meu instinto autodestrutivo que reage tão mal às pressões mentais que diariamente sofro quando os revés surgem. Ao invés de melhor me preparar para o que sei estar por vir eu apenas me sinto mais enchiqueirado, desconcertado, abatido, reduzido, quase abduzido de minhas faculdades combativas para enfrentar o que há por vir. Quando meu cérebro se situa no mar das imprecisões, cercado pelo mundo opressivo, tenho alguma vontade de gritar, mas muito maior é minha vontade de sumir. É isso o que sinto. Mas sobrevivo. Provavelmente não terei como ajudar muitos exemplos necessitados do combate à primeira fome, a estomacal, ou as milhares de vítimas dos alagamentos e deslizamentos na Bahia. Provavelmente não terei, mas jamais por falta de vontade ou empatia por esses grupos. Mais uma vez produzo sem saltar parágrafo, mas mais uma vez concluo dessa vez sem pular na frente de algum bonde. E por ora, ao estado calamitoso que me encontro, isso deve bastar.

27/12/2021

Percebi que reprovo a vista do mar

Percebi que reprovo a vista do mar. Para sairmos de um prédio barulhento entre móveis arrastados e conversas de vizinhos em plena madrugada, viemos para outro prédio nessas condições, principalmente na questão dos móveis. Eu já havia sinalizado: apartamento só na cobertura, mas não fui atendido. O canto da sereia foi mais alto. A sedução de uma linda vista defronte o mar. E estou inclusive reprovando-a, como bem anuncia o título do texto. Digito isso sobre uma cama de molas desreguladas e manifestantes, para ampliar minha aflição. Mas explico porque a reprovo. No momento me posiciono contra essa vista porque ela se faz presente em uma facilidade absoluta, a hora em que eu quiser. Posso ver como está o céu ao longe no horizonte, como estão as ondas no mar. Posso ver o movimento dos caminhantes, o ir e vir de centenas de desconhecidos. Posso observar quem estaciona o carro e vai-se embora, para curtir a areia sob (e entre) os pés ou subir para academia ou bares ao redor. Posso inclusive, contra princípios mais honestos, observar um pouco da movimentação de prédios ou casas vizinhos mais próximos. Várias possibilidades, como podem ver. Porém essa vista torna-me mais preguiçoso. Ao ter a contemplação do mar tão facilmente perde-me o encanto de ir ter com ele. O contato absoluto, definitivo. A vontade de sair de casa com a gana de ouvi-lo, vê-lo e senti-lo, o mar, velho companheiro desde minhas primeiras viagens infantis. No alto da maturidade que me avança, estou perdendo aos poucos. A menor vocação para encarar a água mais fria no choque térmico, a menor diferença que faça o contato dele com minha pele. A repetição de tudo que já vivi em uma redução de significado, ao invés da ampliação.

Além do mais, já traduzi o sentimento dos últimos dias em Santa Catarina. Me sinto como em um condomínio igualitário, que, em geral, em geral me é funcional e confortável, mas não me revela o âmbito da surpresa, da caoticidade criativa que tanto aprovo em minha cidade natal. Ao deparar com um trânsito mais tranquilo, melhores condições estruturais e sociais da população e por conseguinte um menor índice de violência, também não consigo fugir da sensação de paraíso artificial. Questionar, como na reflexão anterior, meu próprio mérito. Lamentar por aqueles que aqui não chegam. Olhar para esse mar que ao nem tão longe me provoca, propaga sua sedutora energia e me questionar o porquê de estar aqui. Tentei traduzir esse sentimento de funcionalidade e determinado tédio - mesmo aqui há poucos dias - no episódio do desenho Bob Esponja, em que Lula Molusco migra de sua habitual casa para um condomínio onde todas as casas são iguais e todos os moradores possuem os mesmos hábitos que ele. Tocam clarinete, aspiram folhas com sugadores para limpar a grama, apreciam corais e fazem danças. Ao passo que os dias se repetem, Molusco sente falta dos antigos amigos, das imprevisibilidades, das confusões cotidianas. Posso me sentir um pouco assim nesse espaço. Carente de uma sociabilidade que hoje só tenho no meu bem estruturado, baseado e construído convívio, com seletos amigos e alguns ambiente profissional. Em SC eu teria que construir praticamente do zero sem saber por onde perambular essa prática, principalmente porque, como vem cedo ou tarde à tona, a pandemia de covid segue a toda, impedindo diversas atividades. O convívio social é limitado. E posso apontar isso de duas formas: pelas imposições da pandemia e também pela minha própria inabilidade, ineficiência social ou mesmo desinteresse, que posso ter criado em função das primeiras? Posso. Ao passo que também o jeito que as pessoas são assim me causam o desinteresse.

No flagelo de meu quarto, com o mar equidistante no dia a dia, em muitos desses dias, manterei alguma rotina de trabalho. Entre o conforto e o desconforto. Alguns me criticarão por talvez não desfrutar dessa experiência litorânea como deveria. Com otimismo e sossego. Alguns poucos me entenderão. Tal qual como as ondas que percorrem incessantemente o oceano, posso fazer nada.

26/12/2021

Breve reflexão defronte o mar

Eu que sempre desejo o melhor para meus pais, eles que sempre se dedicam com exatidão, retidão e perseverança em praticar o bom convívio comunitário. Mas, do alto de um apartamento de frente para a bela e melhor vista do mar, me sinto também culpado em dispor desse alívio. Observo as famílias que vêm, estacionam seus carros e mais tarde vão-se embora. Seja lá onde moram. As tantas pessoas evidentemente gostariam da vista que tenho. E não as posso oferecer. Agradeço por meus pais que ora têm. Lamento por tantos não a terem. Lutamos sempre contra a intranquilidade. Quando pareço atingi-la, logo me percorre novo desassossego. É a constância no fluxo da vida.

25/12/2021

Reflexões de Hermann Hesse #1

Nós vamos e iremos

Do grande Jardim Divino

Num dia de sol a pino

Em noite de lua cheia

Um poema de Hermann Hesse

Por ora é que me clareia


Nós vamos e partiremos

Do grande Jardim Divino

O canto do pássaro no hino

A aranha a tecer teia

A areia da ampulheta 

Escorre

Como as vagonetas do destino

Reflexão após Balzac e Hermann Hesse

Somos a natureza mesmo quando a destruímos. Somos a natureza mesmo ao passo que a destruímos.

17/12/2021

Sinto como num filme de Fassbinder

Eu me sinto como num filme de Fassbinder 

Um filme que ele não faz pra vender

Eu me sinto como numa canção de Wander Wildner

Uma canção na voz de Wander


Eu me sinto como numa foz na fronteira

Sem saber as trincheiras que irão suceder

Eu me sinto como uma voz na clareira da noite

Hoje a noite vai encontrar o amanhecer


Eu me sinto como num filme de Fassbinder 

Note que o Sr. M. vai enlouquecer 

Eu me sinto como num poema do grande Baal 

Pronto para enlouquecer geral


Eu me sinto como nas lições de Bertolt Brecht

Que geral se lembra e depois se esquece 

Eu me sinto ao sol como um fim de frete 

Dinheiro suado no bolso e a testa derrete


Eu me sinto como num filme de Fassbinder

Algo nisso tudo atende os meus anseios

Alemanha dividida nos orientes

Feridas abertas não surpreende

Feridas abertas não surpreende 

Feridas abertas não surpreende

15/12/2021

Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre

Este filme me coçou os dedos para escrever sobre ele na primeira vista. Mas na segunda aparição dele na minha tela vocês não conseguiram fugir. 'Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre' - começo destacando a peculiaridade, a sensibilidade da escolha do título para esta obra que já nasce clássica. Nasce em demonstração, em acolhimento a todas as meninas, a todas as mulheres que precisam passar pelo que a personagem principal precisa: o aborto. É preciso dizer que este filme norte-americano supera várias barreiras que o cinema característico do país acaba deixando a desejar, por exemplo, a sensibilidade na direção. Nada de efeitos especiais ou cenas forçadas com trilha sonora e cortes rápidos. O filme é propositalmente deixado a correr, para sentirmo-nos mais e mais na pele de Autumm (Sidney Flanigan), a menina que conduz o filme com brilhantismo em sua atuação.

Não por acaso o nome dela é Outono, na tradução. Autumm passa o filme inteiro com a cara amarrada, o semblante fechado, e não é por menos. Desde a primeira cena, o ritmo do filme está ditado. Autumm se apresenta em uma espécie de show de talentos da escola, canta e toca violão, mas não é bem recebida pelo público. Logo saberemos que a bronca que os meninos têm com ela, ou o que poderia ser encarado como bronca de Autumm com os meninos, não é por acaso. Ela está de relacionamento finalizado, está em processo do começo de gravidez e tem pouquíssimas pessoas com quem contar nessa missão de evitar um nascimento nada desejado. Autumm logo percebe que não pode contar com o apoio familiar, como tantas e tantas meninas também não podem pelo mundo inteiro, seja por costumes, seja por legislação, crenças, religiões, ou conduções sociais que minimizam a opinião e a escolha da mulher sobre seu próprio corpo. Assim, em plenos Estados Unidos, Autumm, uma adolescente da Pensilvânia, recorre a outro ponto muito em comum e que talvez tenha aguçado minha atenção em relação ao filme como um todo: a viagem do interior do país para uma capital, para uma cidade de porte onde poderia realizar o procedimento, o aborto. 

Esta também é uma situação comum a muitas jovens, a muitos jovens, pessoas aí independente da idade que necessitam de consultas médicas com especialistas mais renomados ou experientes, e a partir disso se deslocam em viagens às vezes longas, com dificuldades financeiras para enfrentar ônibus ou aviões. Para Autumm, havia o agravante de que não queria ficar marcada, identificada em sua pequena localidade como a menina do aborto. Para além do preconceito que poderia sofrer comunitariamente, os próprios médicos às vezes não autorizam o tipo de procedimento, polêmico como é um aborto. São situações que às vezes fogem da alçada dos clínicos, profissionais, cirurgiões, e passam pelo crivo severo da lei que proíbe o aborto. Enfim, Autumm passa por dificuldades a nível social e legislativo, podendo sofrer as sanções do julgamento pelas demais pessoas ou perante mesmo um júri. Complicada a missão da moça, que precisa recorrer então para essa ideia em uma clínica da grande Nova York, uma das maiores cidades do mundo.

O filme se desdobra recheado de cenas de agonia ou angústia, ao menos. Gosto de imaginar esse tipo de filme, conforme um de meus diretores favoritos Alfonso Cuarón - ou mesmo o polonês Krzystof Kieslowski, trabalha com a consecutividade das angústias, parto de uma metáfora de que são como as sucessivas ondas do mar em movimento. Ao vencermos uma, logo nos deparemos com a próxima que pode nos sucumbir, nos afogar. Precisamos vencer todas, sairmos invictos ou de nada adianta, nada feito. E Autumm é uma guerreira durante todos os rolos de filme. Com sua postura reservada, de quem não tem muito em quem confiar, ela permanece calculista, introspectiva, guiando suas sensações através de uma atuação que - volto a dizer - beira o impecável em suas reações. Conseguimos senti-la, identificar-nos em suas atitudes mais retraídas e misteriosas. Como não pensar o que se passa na mente de uma jovem nessa situação delicadíssima?

A amiga de Autumm a acompanha até Nova York. No ônibus a caminho da cidade grande, um rapaz se interessa pela amiga e, insistindo, puxando assunto, consegue o número do telefone dela. Eles voltariam a se encontrar mais tarde. É interessante observar o desenvolver desse relacionamento paralelo ao drama de Autumm. A amiga vai cedendo aos movimentos aos poucos, também ambientada pela natural desconfiança em relação ao rapaz desconhecido. Sobre o rapaz, a gente consegue até dar uma chance para possíveis boas intenções, mas a impressão que sempre nos percorre é de um interesseiro, um autoconfiante, um aproveitador das meninas que vêm do interior, um suposto especialista em cidade grande que oferece ajuda e alguma diversão. Fato é que estamos tomados pela atmosfera introspectiva de Autumm e até o 'simples' (?) desenrolar de um romance paralelo àquela altura tensa nos soa como um desrespeito ao real objetivo da jornada, pois a tensão é constante enquanto Autumm não consegue resolver a situação. Terá saúde para aguentar o procedimento? Terá dinheiro e modos de sobreviver na cidade grande, entre hospedagem e alimentação? A viagem, a ida e a volta, darão certo? A preocupação da família enquanto ela está ausente? São muitas perguntas e muitas angústias que trilham esse caminho acidentado da vida da jovem.

O filme é um convite ao desconforto, à angústia, à realidade de milhares de jovens anualmente, não só pelos Estados Unidos ou para nossa realidade brasileira, mas pelo mundo todo. Umas com maior liberdade para resolver o conflito, outras com menos. Todas com algum nível de tensão que uma gravidez, uma mudança brusca no organismo pode causar. A incerteza de "com quem contar?", a incerteza de "o que virá depois?". A incerteza na mente de que "o que estou fazendo é correto?" e "mas e quanto ao que fizeram comigo?", finalmente para o ponto crucial: "sou eu a errada? ou as circunstâncias permitem?". A atuação impera nesse conjunto da obra, das dúvidas, da aflição, das hesitações de uma jovem em apuros.

Dividimos em um filme bastante cru - para os padrões estadunidenses ou nova-iorquinos - as aflições da jovem Autumm. Sua necessidade de ir superando uma gama de acontecimentos em que nenhuma mente está preparada para enfrentar, independente da idade. Recapitulando: o fim de um relacionamento, a descoberta da gravidez, a inaceitação da sociedade, a não-possibilidade de contar com a família, com a medicina de sua localidade, os riscos de uma viagem distante, os riscos de enfrentar Nova York, a companhia da única amiga, mais fiel do que sensata, a aparição de um jovem totalmente desncecessário para seu contexto de angústias, as perguntas feitas para realizar o procedimento invasivo do aborto. A necessidade de confiar em estranhos, entre a pessoalidade e a impessoalidade do procedimento em uma clínica especializada em receber jovens de diferentes partes dos Estados Unidos.

Por conta disso tudo, a recomendação de "Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre", um filme que já nasce clássico, na alusão da luta de tantas jovens que não querem, não estão prontas, fazem a escolha por não serem mães, no ainda ou no jamais, por dignidade, por decisão financeira, por planejamento familiar, por qualquer motivo que não deveria ser levado em consideração por mim, por nós, quando a decisão é na verdade dela. Um filme de suspense, de sobretudo drama, angustiante como tantas vezes convoca o uso dessa palavra - angústia - aqui na resenha sobre. Nunca. Raramente. Às vezes. Sempre. Inesquecível a voz da interrogadora nessa cena: as pausas, o drama, o vazio tentando ser povoado, tentando ser preenchido, pelas névoas da angústia.

Atuação da estreante Sidney Flanigan está à altura da grande proposta do filme

Amizade entre as protagonistas nessa jornada que exigia muitas forças
Imagens: Reprodução do filme Never Rarely Sometimes Always (2020)

13/12/2021

Papéis no Mundo

Queria ser uma pessoa que não gostasse tanto de estatística, embora às vezes elas sejam apenas estatísticas descontextualizadas. Para quem está lendo este texto pelo meu blog, percebo orgulhosamente que é a postagem de número 900, sendo que temos pelo menos 45 rascunhos em uma lista de espera que lembra muito os concursos públicos em que o pessoal passa e jamais sabe quando será chamado para compor a vaga pela qual teria direito. Enfim, mas vim aqui para falar que gostaria muito de ser uma pessoa que focasse em apenas uma boa ação e a executasse com fluidez, com perseverança, com entusiasmo e êxito. Mas não é meu caso.

Balanço pelas ações pendulares da vida, sempre lendo, sempre observando, sempre querendo conhecer mais e mais, mas considero que pouco me aprofundo. Mesmo o futebol, o esporte em geral, que hoje me designa um emprego, não me descem tão a fundo. Faço pouco mais do que o necessário - talvez até menos do que o necessário às vezes. Se está muito vaga ainda a ideia deste texto, deixe-me exemplificar. Uma pessoa que se proponha a ajudar idosos e monte um pequeno centro, um centrinho para atender uma dúzia de idosos, esta pessoa está prestando um serviço essencial, glamouroso, fundamental para pelo menos essa dúzia de idosos para os quais os serviços são destinados e, ainda mais, está ajudando as famílias deles, se é que as possuem. São cuidados necessários, básicos, a alimentação, a saúde, o mínimo de satisfação e de, quem sabe, entretenimento. Todos precisamos. Alguém que destine muitas de suas 24 horas por dia para esses serviços está alinhavado com os melhores princípios cristãos de existência sobre essa Terra. Ou estou errado?

Mas até o presente momento não me entendo assim. Eu já trabalhei por um tempo com lar de idosos e outro pequeno tempo também com crianças em vulnerabilidade social. Minhas dificuldades presentes na neurodivergência (ou neurodivergências) que possuo acabam limitando minhas ações para com essas campanhas, locais, auxílios. Em resumo, tenho muito boa intenção, mas pouca execução. Enfim, poderia ajudar em campanhas textuais - não têxteis, visto que nem a costura me seria uma possibilidade - em divulgações, em conversas, em um poder de persuasão e convencimento que ora me aflora. Às vezes um político. Poderia ser este meu papel no mundo? Visto que, para além de idosos e crianças, acho importante ressaltar minha compaixão, minhas sinceras condolências por cães e gatos de rua, animais selvagens, florestas e outras vegetações devastadas pelo bicho homem, moradores de rua, pessoas em geral em vulnerabilidade alimentar, órfãos, doentes terminais, pessoas que necessitam de tratamentos de urgência ou de preço não-condizente com suas realidades financeiras. É muita gente, é muita ajuda que o mundo urge, pede, grita por socorro. São os avanços na medicina e na saúde que ao mesmo tempo nos sugerem uma imagem de tão perto tão longe. O que isso quer dizer? Que muitas vezes parece possível um dado tratamento específico, especializado, mas o preço que se paga, este às vezes é alto demais. Os esforços. O deslocamento de pessoas do interior para capital. E da capital de volta para o interior. E, vejam bem, outra segunda-feira e outra vez do interior para capital. E da capital para o interior. Acompanhantes que sacrificam suas vidas por familiares ou como voluntários, como anjos, em seus entre aspas tempo livre. Pessoas que batalham severamente, turno a turno, dia a dia, no turno inverso do trabalho que as remunera. Cuidadores, tratadores, acompanhantes, dos bebês ao anciões de 90 anos.

Todos esses exemplos citados creio que enumeram possibilidades de estarmos quites com os encargos da consciência, com as metas a serem estabelecidas e cumpridas sobre a Terra, nos princípios cristãos ou seja lá quais forem os seus princípios. Há muitas formas de ajudar: mas qual é a minha? Eu que, por piedade, poderia me encontrar em qualquer um desses ramos, desses nichos, mas que, por atuação efetiva, me vejo distante do auxílio fundamental, apegado, aguerrido, dos esforços hercúleos nessa batalha constante pela sobrevivência, pela dignidade, pelo mínimo, pelo básico, ou por aquele algo a mais que pode estar em um presente de Natal, em uma campanha de Páscoa, em um aniversário especial para uma pessoa ou para uma instituição - que atenda pessoas. Doações para campanhas, doações para cumprir a meta de uma cirurgia, doações para ajudar os voluntários a combater chamas, donativos para familiares que acompanham um doente terminal em um hospital de onde não é sua cidade. Onde me encontro nisso tudo?

Será que tenho responsabilidade sobre tudo isso? Qual o meu salário? Quem me ajuda? Como me ajudo? Mesmo neurodivergente, tenho saúde o suficiente? Por ter ainda dois braços e duas pernas, estou de aparência saudável para todas as ajudas e encargos? Qual o meu papel nisso tudo? O que os donos de grandes corporações e empresas estão fazendo? Patrocínios para quem? Investimentos onde? Para onde estamos caminhando, para um mundo associativo, de combate à miséria e à fome, ou para o aumento dela, em níveis totais e talvez também percentuais. Em níveis de desigualdade, de quem tem, tem muito e quem não tem, o que faz? Como sobrevive? Como se ajuda? Como essa pessoa será ajudada? Como eu posso ajudar? O que farei, ao final deste texto? Enquanto posso me dar ao luxo de pensar, refletir, filosofar sobre, mas a pessoa em si, que necessita minha ajuda, tem pressa, tem fome, tem, talvez, escondida em algum bolso se não rasgado, a esperança. O fluído do tempo nos pressiona. A consciência permanece incauta em nosso encalço. Eu, por ora, preciso cumprir minha página diária. As últimas do esporte. Em "Piano Bar" dos Engenheiros do Hawaii, Gessinger sugeriria ainda a "hora certa, os crimes e a religião". E disso tudo que fiz, de tentar explicar, que permaneci indignado comigo mesmo, será de tudo isso que ainda o meu "nada" é uma palavra esperando tradução?

Enfim, como resumo, gostaria de me sentir mais útil em uma única função de resultados efetivos, ao invés de vagar e vagar sem sentir essa construção toda. Mas também sei, oh, sei bem, que não me sentiria bem restrito a um único ofício, enquanto minha cabeça vagueia imaginando diversas e mais diversas possibilidades. Assim tento me manter em movimento, surfando essas ondas, saboreando o vento e tentando não me desanimar por completo, entre a busca por uma 'utilidade' em um todo que ainda me soa inútil.

Lutemos - em um só parágrafo

Tenho caminhado pelas ruas e visto coisas. Tenho vergonha de carregar o isopor de meu almoço quando há pessoas procurando comida nas lixeiras. Tenho vergonha da minha proteção de protetor solar e boné quando há pessoas com mais ou com menos melanina no sol a sol no lixo a lixo. Vi uma pichação de Fora Comunistas e Fora Esquerda em frente a um bar onde só bebem idosos. Vi um descendente de japonês, achei que ele entraria na fruteira Sato, mas seguiu em frente até seu carro. Me driblou. Um rapazinho de bigode ralo e cabelos crespos em camisa verde diz que não é ladrão, já se alimentou do lixo, mas não rouba, só quer uns trocos. Algumas máscaras de proteção contra covid 19 são esquecidas pelas ruas, abandonadas sobre as calçadas. Sempre que cruzo a avenida Bento Gonçalves de madrugada enquanto passageiro de uber não sei o que vamos encontrar. De sinal aberto ou fechado. Tanto faz. É imprevisível. Algumas ruas com movimento demais. Outras vazias e olvidadas. Imóveis vazios pela alta dos preços e do aluguel. Moradores de rua improvisam colchões e escassos pertences nas fachadas de bancos. Algumas pessoas até roupa colocam em seus cachorros quando está frio mas não juntam o cocô deles. Motoristas de uber imitam taxistas com os carros encostados à espera de corridas, de passageiros que só conhecerão depois de toparem, não ao contrário. Em viagens de ônibus nunca sabemos quem sentará ao nosso lado, a não ser que o atrasado seja a gente. Nas viagens de ônibus todos compram a poltrona da janela. Às vezes compro do lado errado da melhor visão para a entrada de Porto Alegre. Às vezes o aplicativo de música acerta sem querer a que queríamos ouvir. Hora exata da encruzilhada. Achei que tinha visto um amigo no Mercado Central a beber cerveja e contar causos. Quando lhe perguntei depois se era ele, nem era, estava em Gramado. Esse mico de ter confundido eu pagaria e só por detalhe não o fui cumprimentar. Flashs de uma semana improvisando comida e vivendo sozinho. Sem saber até quando nem o que virá depois. Há uns meses, nem sabia que era possível, mas amo minha namorada fortemente enquanto aqui escrevo. Quero fazer durar todo o tempo que a nós foi reservado nessa estrada confusa da vida. Saio de nossos encontros renovado e me abate depois a desconfiança do destino, sem saber o que fazer e para onde vou. Convivo com as incertezas a cada refeição sobre a mesa. Serei acordado pela manhã por minha gata Melissa. Ela mia entre as 7 e as 9h30 da manhã. A depender da luminosidade e da fome que a atormente. Ela me atormenta assim por tabela, mas ela só sabe ser assim e é muito querida. Dentro em pouco me incomodará de novo e assim são o ciclo dos dias. Aos leitores de aqui, desejo uma sincera boa semana. Lutemos.

Pessoas

Quanto mais velhas as pessoas, mais elas se parecem por fora, mas mais distintas são por dentro, por tantas histórias e memórias diferentes que as formam.

07/12/2021

Only Lonely

Eu não sinto fome
De viver
Eu estou sozinho
Num terreno nocivo

E não há mulher
E não há homem
Que torne essa vida
Menos alone

I'm a Lonely Boy
I'm a Lonely Boy
I'm a Lonely Boy
Que se auto-destrói 

Na vida adulta
Nas rimas do Supla
Na terra do nunca
No terreno fértil
Eu me sinto sozinho
Nessa espelunca
Eu me sinto um réptil
Dentro de uma gruta

Eu não sinto fome
- De viver -
Eu estou sozinho
Num terreno nocivo

Y no hay otra vida
Ya no hay canciones
Songs that turn on the lights
Por eses rincones

I'm a Lonely Boy
I'm a Lonely Boy
I'm a Lonely Boy
Que se auto-destrói 

Nos improvisos
Nos sobreavisos
Nas placas de perigo
Nos conselhos amigos

I'm a Lonely Boy
I'm a Lonely Boy
I'm a Lonely Boy
Que se auto-destrói 

02/12/2021

Clube dos 27

Estou bem

Com a mesma idade de Kurt Cobain 

Quando partiu o tiro

Que lhe convém


Estou bem

Com a idade de Amy Wine

House

Ou outras estrelas

Da terra de Mickey Mouse


Bem

Como Jim Morrison

Sem

Absorver o som 

E os tons de tanto gim 


Estou bem

Como um Jimi Hendrix 

Sem saber

Fui lá e fiz 

Melhor do que qualquer aprendiz


Estou bem 

Como Janis Joplin 

Que morreu 

Com a idade de Kurt Cobain 

Com ou sem

coincidência 

Com ou sem

pré-destinos de nascença


Eu estou bem

E sei que ficarei

Estou bem

Isso eu sei

Estou bem

E sei que ficarei 

Isso eu sei

É sobre isso

E tá tudo bem

01/12/2021

Amar as crianças

Acredito que se na minha família houvesse criança, eu amaria mais a vida.

Devemos amar as crianças porque

A) são mais fáceis de serem amadas

B) é delas que pode sair algo que preste pro mundo, então deve valer a tentativa de amá-las

29/11/2021

Análise do Amanhã Nunca Mais (2011)

'Amanhã Nunca Mais' é um filme que me agradou muito mesmo. O desenvolvimento das situações pelas quais Walter passa são uma sucessão de constrangimentos e indelicadezas das quais não estamos livres no cotidiano, sobretudo na profissão dele, que é um médico-anestesista.

Praticamente todo o filme se desenvolve com cenas constrangedoras e Walter torna-se um personagem aprisionado pelo caos dos grandes centros. São situações específicas para o público morador das cidades grandes, mas também problemas que qualquer pessoa pode passar por. Pensei em elencar algumas dessas situações.

O constrangimento de Walter na praia, quando precisa passar protetor solar nas costas de sua sogra. Em seguida, ele também presencia sua esposa em uma foto com o pai de outra criança, quando os pequenos brincavam na areia. Essa situação já dimensiona que o casamento do anestesista não vai bem. O pai de família ainda tem interrompido o seu descanso quando precisa levar a pequena Juju até onde possa fazer cocô. Antes disso, é importante lembrar que Walter não conseguia descansar a mente direito, olhava para o topo de seu guarda-sol, mas enxergava mesmo eram as figuras de seus pacientes sendo sedados, entubados, sangrados, medicados. Por fim, recebe uma ligação de caso de urgência em seu serviço e a família precisa sair da praia mais cedo.

O filme perpassa situações cotidianas do caótico trânsito paulista. Na saída da praia, Walter e família estão na estrada tumultuada com a volta da praia, vários e vários carros cinza em lentidão. Na rodovia de sentido oposto, o trânsito fluía sem problemas, com liberdade para dirigirem. O médico fica preso entre os demais carros em grande parte do desenvolvimento da trama. Outra situação que caracteriza Walter é ser negro em um cargo de anestesista, de médico. Ele precisa seguidamente estar provando a sua competência, ao que pessoas desconhecidas estranham como um negro conseguiu chegar a tal cargo. Isto é provado nas encrencas em que ele acaba se metendo no casamento de uma conhecida, um dos momentos de coincidência exagerada do filme. Ao ficar sem gasolina para buscar o bolo do aniversário da filha, Walter acaba parando o carro em frente à casa dessa conhecida, que nutre uma paixão que estava adormecida pelo personagem principal. Ele acaba se metendo nessa enrascada, pois a mulher o convida para entrar, fugir da repentina chuva que aguça seu azar e, nessa troca de favores, Walter consegue reabastecer seu carro para retomar sua missão de entregar o bolo a tempo da festinha de Juju. Porém, a conhecida não se dá por vencida: ela se embebeda, trazendo a temática do alcoolismo à tona, o constrangimento pela atuação da moça em busca de ser correspondida pelo nosso Walter. Ela acaba armando cenas e mais cenas, sendo uma delas atender o telefone de Walter enquanto ele estava no banheiro, se trocando após ter se sujado na missão de transferir a gasolina entre os carros deles. A mulher atende Solange, a esposa de Walter e é claro que o casamento vai se arruinando mais e mais, afinal de contas, uma desconhecida atende o celular do marido enquanto ele está ausente "no banheiro se trocando", conforme as palavras da doida apaixonada pelo protagonista.

Pois bem, o foco são as pequenas situações que criam o todo, a bola de neve onde está submergido nosso querido Walter, um personagem sobretudo caracterizado por não conseguir dizer não - conforme toca a música de Seu Jorge logo na abertura da película. Todos fazem pouco caso das vontades do pobre Walter. Com a dificuldade de se impor desde casa até o trabalho e mesmo frente a desconhecidos. Para se livrar do bloco-cirúrgico, ele tem uma imensa dificuldade de convencer seu amigo médico durante a prometida "rápida saída" no período, o que, como vimos, acaba se tornando uma tremenda confusão. Walter queria apenas sair por cerca de 1h30 para buscar o bolo e entregar na festinha, cumprimentando à filha e aos convidados, mas nada acontece conforme o planejado. Dentro do hospital Walter também estava predisposto a mais constrangimentos. Esse seu amigo médico é um tremendo fanfarrão, pois é egocêntrico (crítica social aos médicos?) e fica passando cantadas e exageros em pacientes e enfermeiras. Fala de mulheres objetificando-as e constrange Walter com suas frases disparadas sem o menor pudor. Em uma das cenas logo no início, o médico esse pede para que Walter assine um abaixo-assinado requerendo melhorias para o bloco dos médicos, onde eles deixam seus pertences naqueles conhecidos armarinhos. O anestesista estranha que a lista para assinarem ainda está vazia e o médico brinca "não tem problema, eu posso assinar primeiro então", ao que Walter nota que o médico folgado assina na segunda linha, deixando o espaço principal, a cabeça da folha para o protagonista que não sabe dizer não. Constrangido, Walter assina, mesmo em dúvida se aquela apelação por melhorias poderia comprometer a situação empregatícia de ambos - principalmente dele, afinal, fora o primeiro a assinar o texto exigindo as obras.

Outros recortes são bem sutis na proposta do diretor, como uma caminhada na praia entre diferentes pés, diferentes pernas e garrafas e sobras de cascas de frutas na beira do mar, a conhecida crítica social ao bicho homem e suas sujeiras. A cena se repetiria entre o caótico trânsito da capital paulista e também por entre as pernas e macas dos corredores hospitalares. A diferenciação de ritmos, entre a caminhada tranquila com os pés na água e a pressa de Walter em contornar colegas e pacientes dentro do hospital, sempre com pressa. A pressa, o aprisionamento da rotina, os afazares, tudo corroem um Walter que perde a calma em pouquíssimos momentos, fato que faz com que alguns críticos do cinema diminuam a atuação do presente Lázaro Ramos. Pois bem, quando consegue se libertar das amarras dos hospital, não sem antes ouvir poucas e boas dos colegas de serviço, Walter se atrasa no trânsito, no enrosco das ruas e viadutos e avenidas e até na hora de simplesmente pegar o maldito bolo, prato principal do filme, sendo que este já estava inclusive pago pela esposa. Na casa onde a doceira produzia o bolo havia muitos gatos, fazendo-nos duvidar da higiene adequada do local. São filhotes salvos ou adotados, gatos adultos, bichos que não acabam mais. Com seu olhar sempre benevolento, o personagem interpretado por Lázaro Ramos também acaba servindo de alvo das velhas senhoras que o tiram para confessionário, já outras, como as senhoras no casamento onde ele acaba levando a amiga que o ajudou a abastecer a droga do carro ao faltar gasolina, situação em que algumas, ao descobrirem que estavam defronte um médico, começam a pedi-lo para examinar caroços surgidos e dissertar opiniões conceituadas.

Enfim, Walter se mete nas mais diferentes enrascadas. Antes do casamento e desse encontro casual e exagerado com a antiga vizinha, ele já havia atropelado um motoqueiro que furou sinal e - mesmo com sua pressa e não sendo dele o erro, prestou o socorro de chamar-lhe uma ambulância e embutiu uma velha vizinha fofoqueira para que cuidasse do caído enquanto o resgate não chegava para acudi-lo. Walter então dispara, volta ao trânsito caótico e doentio da maior cidade brasileira, mas se perde nos endereços e precisa pedir ajuda num posto de gasolina, onde conhece uma suposta estudante da faculdade de Comunicação, que a pagava da forma como muitas jovens precisam pagar no país: com a prostituição. Ela gosta de Walter, talvez por sabê-lo agora como um médico (sem imaginar que um anestesista?) e propõe brincadeiras que obviamente Walter custa muito para se livrar, afinal de contas, era casado e estava na missão de simplesmente levar um bolo para a festa de aniversário da filha Juju. Mas as pessoas, em seus universos egocêntricos sempre têm dificuldade para entenderem o pobre Walter, que não consegue se impor a cada encontro e a cada cena.

Mais um enfim para a coleção deste texto, mas enfim, com uma leitura nada linear e repleta de spoilers, podemos encaminhar o fim dessa análise novamente salientando que a narrativa de Walter pode ser comum a muitos paulistanos e brasileiros perdidos por esse país. O adulto classe média, o negro que precisa provar que é merecedor de estar onde está, o pai de família atrapalhado na rotina, o casamento em destroços, as pessoas que cruzam seu caminho e tentam desvirtuá-lo e tentam tirar vantagem e tentam enlouquecê-lo das mais diversas formas. Os personagens que fazem parte do cotidiano dos grandes centros, os malucos que convivemos em nossos serviços, o médico abusador, que constrange as colegas de serviço e as pacientes, o outro estressado e que trata os demais com submissão, xingando o pobre Walter por cada pequena falha, em cada pequeno atraso. A família desconfiada - talvez racista - desconfiada da capacidade de Walter conseguir cumprir com os acordos. O próprio cidadão tentando lidar com esse mar de gente, com esse caldeirão confuso de alta periculosidade. O estresse do trabalho, a correria do trânsito, o aprisionamento da rotina como gumes centrais dessa bem construída trama. Uma espécie de road movie, de aventura e trapalhadas para humores mais ou humores menos pastelões, mas com toques refinados de crítica social ao bom gosto. Uma transposição de coisas já vistas por outros países mas com uma pegada totalmente brasileira, seja pelo ambiental paulista ou pelas espécies que cruzam o caminho do aturdido anestesista.

Um grande filme, a mim avaliado como um clássico, pois a rotina das grandes cidades não dá trégua aos mais diferentes Walters, negros, brancos, jovens, velhos, motoristas, trabalhadores da área da saúde, pais de família, secretários, negociantes, comerciantes, doceiros, costureiros, officeboys. Pessoas alcoolizadas, judeus do casamento da antiga vizinha de Walter, doceiras fãs de criar gatos, universitárias que precisam se prostituir, entregadores que furam o sinal vermelho, socorristas, vizinhas fofoqueiras, idosas que precisam com quem conversar, uma salada totalmente brasileira em um filme que apresenta lá seus muito valores e precisa de seu revestido reconhecimento embora a nota nos sites especializados não assim se demonstre. Pausa para o fôlego e para a mera indignação: mas que coisa!

Walter preso no elevador na festa de casamento da amiga de sua antiga vizinha, que o convence a levá-la em nome da troca de favores (por ter abastecido o carro dele) e em prol de uma antiga paixão adormecida - ela ainda se serve de uma chantagem, pois roubou o celular de Walter, colocando-o na bolsa

Walter preso no trânsito com a estudante de Comunicação que pagava a faculdade através de serviços de prostituição - era para ser somente uma carona em outra troca de favores, pois o azarado anestesista havia recebido dela a informação sobre onde deveria dobrar


Consigo notar minha sorte dentro dos seus olhos 



E outra hora faço uma canção com esse trecho

27/11/2021

Memórias e público-alvo

Eu, escritor impaciente que quer registrar muitas - quase todas - suas memórias. Pensando o quão narcisista precisa ser para considerar todo esse bloco de anotações confusas relevante. Mas não é somente por considerar relevante. Na verdade parece longe desse ser o ponto principal. Acontece nesse processo o medo do esquecimento. Não de outros não lembrarem mas de eu próprio esquecer. Esquecer pelo que passei e o que pensava à certa altura do campeonato. Porém, se não havia o narcisismo de considerar tudo relevante, há novamente em foco a cultura do eu, por achar que é relevante se lembrar. Lembrança aqui não em seu estado abre aspas "natural" fecha aspas, mas lembrança evocada pelo registro no papel.

Enfim, fico a me questionar se os demais escritores registram suas próprias lembranças por A) considerarem relevantes às demais pessoas ou B) necessitarem de registro para combater o esquecimento. Um esquecimento que, caso não tenha ficado claro, é mais para eu mesmo lembrar do que para terceiros. Embora terceiros podem se servir dessas linhas sempre que assim quiserem, se identificarem, forem escolhidos por elas - fazendo alusão ao lema do Botafogo que escolhia os torcedores e não os torcedores o escolhiam. Talvez essas linhas tenham escolhido a ti, leitor. Não te parece? Pois bem, então não foste escolhido por elas. Talvez nem pelos textos anteriores ou pelos posteriores que eu tenha a publicar. Uma pena. Mas posso fazer nada. Talvez então eu não estivesse pensando em ti quando escrevi. Provavelmente era questão apenas de habitual registro de escrita. Exercício que pratico costumeiramente.

Ausente de me registrar desde a infância, certamente muita coisa se perdeu. Não lamento. Talvez tenham ficado em minha mente os principais pontos e a partir deles me construo. Edifico o que aqui escrevo. É interessante como somente alguma mera passagem pode arborizar um jardim inteiro. Seria uma analogia como a expansão do universo que pode se reproduzir e desdobrar-se muitas vezes o seu próprio tamanho em frações de segundos. Assim são as memórias, assim são os textos em que muitas vezes não planejo mais do que formal introdução. Por ora, finalizo essas transgressões e prometo voltar numa próxima para mais pontualidades. Podendo acertá-lo como uma flecha ou passarem distante do alvo leitor. Assim são muitos textos.

26/11/2021

Alegria no esporte

Hoje recebi no aplicativo mais famoso de conversas um áudio da menina Dóris de Andrade. Ela é uma corredora, paratleta pela sua deficiência visual. Dóris já nasceu com essa limitação de visão, mas isso não a impediu de ser uma excelente atleta. Nesta semana, do final de novembro de 2021, Dóris foi a São Paulo representar o Rio Grande do Sul e, especificamente, a cidade de Pelotas, onde ela representa a Escola Louis Braille e o Colégio Municipal Pelotense.

Aos 14 anos, Dóris somou mais uma medalha de ouro a nível nacional, nas Paralimpíadas Escolares Brasileiras. Ela tinha conseguido o feito em 2019. Voltou ao pódio com o terceiro lugar em uma prova curta, de apenas 75 metros. Mas, na sua especialidade, nos 1.000 metros, ninguém segurou a menina pelotense. Ela que conduziu o guia e não o contrário. O mais tocante é a alegria com que a equipe se trata. Pensamos sempre em esporte de alto rendimento com semblantes fechados, carregados, testas franzidas, esforço sobrenatural. Mas por que não aliar a alegria a tudo isso? Dóris consegue.

Ela e o instrutor Huibner se tratam com muito carinho, com respeito, mas, sobretudo, me chamou a atenção o aspecto da alegria. Comemoram juntos, sorriem juntos, aproveitam o esforço, o suor, a cada passo rumo a mais uma conquista. Talvez às vezes a vitória não venha, mas é necessário entender isso como parte do esporte. E assim, mesmo entre os melhores, as melhores competidoras do Brasil, não perder de foco o lado lúdico do esporte. Hoje, sobretudo no futebol, o dinheiro toma o protagonismo. Não deveria ser assim. E por que será que tratamos tão mal, no futebol, quando se fala em amadorismo? Em tempos remotos dos amadores? Em falta de profissionalização - sempre - com teor negativo? Não serão mais comuns os exemplos de alegria estampada no rosto entre os que praticam o esporte pelo esporte? Provável.

Entre quem se dispõe a esse profissionalismo das cifras e das máquinas, ok, que se busque esse caminho. Mas não deveríamos direcionar um olhar tão reprovador para o que é amador. O amador que é a origem de tudo, antes da profissionalização. Dos tempos mais antigos, dos tempos mais românticos e, onde aqui e ali, em um lado ou outro, muitos tentam manter acesa essa chama. Aquilo mais regado a companheirismo, amizade, confraternização ao final das jornadas, das semanas. Diferente de outros ambientes de competição mais perversa, de tentativas de golpe, de escaladas para chegar ao topo mas por sobre quantos?

Enfim, a história de Dóris me despertou um sentimento muito positivo. Espero que ela alcance seus objetivos. Seja competitiva entre as melhores, mas sem perder de vista as origens, o sorriso no rosto, a alegria infantil de seus avanços a cada passo. Lembrar quem esteve junto consigo, lembrar que fez a alegria de muitos funcionários que a acompanharam. Lembrar que fez, inclusive, a minha alegria, eu que ainda não a conheço. Obrigado por me devolver cédulas de esperança - que valem mais do que dinheiro - nesta sexta-feira.

16/11/2021

Esgotos de Varsóvia

Esgotos poloneses

Por onde ocorre a Segunda Guerra

Por entre as fezes

Por muitos meses


Esgotos de Varsóvia

Dias e noites soterrados

Não sei se faz sol

Ou talvez chova

Preso nos esgotos

De Varsóvia


Esgotos e todo lodo

E tão logo nada se resolve

Falta oxigênio

No meio dos túneis

E ninguém foge

Nem fica imune


Alemães na caça

De tudo que é diferente

De sua 'raça'

Essa desgraça

Nos túneis de Varsóvia

E tudo se desova

No esgoto

Um a um

Outro a outro


Perigo nos túneis da Polônia

Sem ajuda e com a fome

Tombam homens

No reduto dos ratos

Lado a lado

Acossados


A guerra se estende para o leste

Como a peste

Como a fome

A Polônia ocupada

Em sobreviver

Contra as granadas

Os céus e os esgotos

Contra o todo

De uma guerra





09/11/2021

Antes de mais nada

Antes de mais nada

Avisa que é ela

Antes de mais nada

Subo quatro lances de escada

Vou até tua janela

Olho o céu que tu me pedes

Com o olhar que é infinito 

Mas tão logo reflito 

Sei que há nada mais bonito 

Os 160 e poucos que tu medes

Há lares

Você faz com que minha vida às vezes caiba num sofá

Você me deixa com uma do Bidê ou Balde na cabeça

Você me faz perder um filme que realmente não quero ver

Você me faz iniciar versos com você 


Você também leu e não sabia de quem eu falava

Falava de ninguém, agora falo de você

Você me fez sentir o que já não me importava

Bastava nesse tempo todo era te ver


Acho que muito imaginava e dali escrevia

Agora que é de verdade, quem diria?

Já não tenho tanto o que escrever

Sobravam fantasias e hoje é sobre você


Você não erra uma na cozinha

Você às vezes ansiosa

Às vezes assombrosa em bruxaria

Mais me admiro que me assusta

Você antes fosse mesmo bruxa 

A caixa dos gatos eu limparia


Eu que te faço dormir mais tarde

Causa em mim na terça alarmes

E no sábado poesia

Mais belo parte assim um dia

Eu perto de ti, enfim, há lares

Querendo

Passei tanto tempo vivendo querendo morrer que não duvido que eu morra logo agora querendo viver. A vida é também a morte.

27/10/2021

Kafka e Kieslowski

O tcheco Franz Kafka teria muito a debater de forma interessada com o diretor polonês Krzysztof Kieslowski.

A Polônia do Século XX era o pesadelo descrito por Franz Kafka desde outrora.

A Polônia nos filmes de Kieslowski é burocrática, cinza, crua, aprisionante, dura, silenciosa, mas por vezes rompida por alguma sinfonia esquecida nos dias de hoje. Ou por alguma cor que nos encha os olhos de vida em um mundo tão automático e fechado. A Polônia de Kieslowski. 🇵🇱🇵🇱🇵🇱

25/10/2021

Sonhos

Às vezes quero ser como todo mundo, às vezes quero ser diferente de todos. A segunda opção sempre é mais fácil, porque de fato sou. No íntimo, no âmago. Me desperta interesse ir descobrindo pontos em comum com as pessoas. Não ser totalmente distinto, embora seja. Enquanto escrevo, penso na máquina de escrever em que não poderia retroceder ao que confesso, nem escapar dos erros ortográficos. Vou adiante.

Penso que meus sonhos sempre são mais belos do que a realidade. Dificilmente a vida os supera, embora já tenha feito. Talvez eu esteja no mundo para sonhar, para a partir dos sonhos criar, não necessariamente para realizá-los. Talvez a realização ofusque parte dos sonhos.

É que depende o sonho. Uma realização por terceiros talvez seja sim a coisa mais bela. Um lar para crianças. Para animais de estimação. Idosos bem alimentados e com os medicamentos que precisem. Vaquinhas virtuais para a realização de cirurgias, transporte de qualidade para quem quer e para quem precisa ir. Isto tudo me parece absoluta e incontestavelmente bonito.

Mas alguns sonhos mais individuais, mais subjetivos podem se perder por esses campos imaginativos. Aí que talvez eu os crie e não os realize. Se existem na minha imaginação existem. Mas serão possíveis? Serão realizáveis? Serão um dia palpáveis? E valem a pena ser ou ficarão suspensos para sempre no incrível e indescritível varal de minha imaginação?

Há sonhos que não serão concretizados. Para além das mortes naturais, do fechamento dos ataúdes, todos os dias, todas as horas sonhos estão sendo ceifados. Caem dos pregadores dos varais dos sonhos. Descem ao chão, sujam-se com o solo das verdades, onde pisamos e onde, sobretudo, a vida nos pisa. Não os realizaremos, embora ainda me seja, por ora, possível lembrá-los, com os filtros amarelados do tempo, com os photoshops que a mente nos fornece, mais belos do que me seria possível.

Novamente termino pensando o quanto sou semelhante aos demais, agora indagado por tudo isso que confesso e escrevo. E também me pergunto onde me distinguo, onde isso tem uma relevância ainda não vista, por minhas ondas, nuances e linhas criativas. Vivemos por esse equilíbrio de associações e distanciamento, concordâncias e discordâncias, procurando nosso melhor lugar ao mundo possível. Onde conseguiremos fechar algumas contas, alargar um pouco a sombra do descanso na aba da sobrevivência e tentando por entre esses estreitos amar. O amor que inaugure e sustente na seiva os jardins. O amor que interrompa o calor sol do meio-dia mas que traga alguma luz nas trevas da meia-noite. O amor que como uma baldada lave as manchas da calçada ou como um rio desinfecciona uma ferida ou arranque histórias de uma roupa.

Onde me aproximo e onde me distancio? Onde me é possível realizar e onde estou restrito ao campo dos sonhos? Arrisco de algumas formas como se escolhesse a próxima pedra onde pôr a mão ou o pé em uma escalada vertical. Experimento e tento entender que errar o movimento não é necessariamente definitivo. Todos vamos, um dia, novamente, recomeçar. Dentro dessa vida há provas de ocorrer isso toda hora. Assim como sonhos são ceifados, outros estão sendo todas as horas abertos. Alguns realizáveis, outros não. Alguns concretizados, outros não. Vivo enquanto crio. Sonhos que não necessariamente realizarei, mas muitas vezes os observo faceiro, como a fotografias em um estúdio de revelação.

Alguns sonhos eu revelo a vocês, outros não. E enquanto conto e não conto, vivo. Marginalizado à vida alheia, central aos temas que, na verdade, só nós sabemos quais são, quanto eles pesam e como os carregamos. Desejo do fundo do coração que saibas lidar com os seus caso tenha chegado até aqui. A caminhada é árida e a água escassa, no solo rachado, abaixo de onde os sonhos ainda se dependuram acima de nossas cabeças, às vezes alcançáveis, às vezes inalcançáveis, mas sempre visíveis. Que assim seja.

13/10/2021

Notas redigidas em regime/noite de urgência

Passado o feriado de 12 de outubro, o qual descobri que os demais países latino-americanos dedicam a uma data de homenagens e reflexões sobre a pluralidade cultural do continente, em especial aos povos originários desta terra - os indígenas. Enfim, passado o dia 12 do 10, me encontro encaminhado à reta final dessa cilada chamada fim da Rua Quinze de Novembro. Neste prédio onde fisgados fomos por um aluguel mais barato mas que muito nos sai caro conviver com barulhentos e notívagos usuários de drogas. Riem, batem portas, derrubam objetos, conversam alto - quando não gritam de forma aterrorizante por cerca deste horário que vos escrevo, pelas 3 horas da madrugada. Assim convivemos dia após dia deste longo e fatídico ano que já vitimou meu avô, então membro mais antigo de nossa família, e que, por vezes, devido à gama de acontecimentos negativos, quase me vitima por suicídio. Mas aqui sigo com uma nova orientação em riste, buscando gerir meu barco a melhores rumos. Se não permanecer na mesma antiquada e deficitária Pelotas, com seus mesmos problemas e pessoas-problema, traço em direção a novas oportunidades e viradas de página em Santa Catarina. Mas, graças a ela, agora tenho bem pensado, talvez graças a ela me encaminho a uma turbulenta permanência, até que nos acomodemos no pequeno furacão de nossas vidas. Tomara consigamos e nos acertemos, mas, sabem como é, nunca nos há terminante garantia.
Entretanto, novamente é importante salientar que os pirraças seguem a chacoalhar a tranquilidade da madrugada com suas peripécias e má educação, elementos que transbordam. Pela primeira vez, de tantos e acumulados problemas com outras vizinhanças, temos a problemática homossexual em pauta. Mas afirmo e reafirmo apenas como curiosidade, porque já tivemos problema em bairro com bares sem alvará de funcionamento e música noturna, vizinhos pobres entre brancos e negros, vizinhos de classe social-econômica mais abastada, família encrenqueira de ex-policial civil corrupto, que nos perturbaram também com drogas e barulho noturno, com conversas durante a semana e festas regadas aos fins, sem horário para encerramento. Já tivemos esses problemas, de modo que a homossexualidade apresentada por este último grupo serve apenas como pequena vírgula, complemento ao perfil, apenas como forma descritiva dos sujeitos. Eles falam alto e gritam pela madrugada, batem portas, riem ou brigam, derrubam objetos de forma barulhenta no chão composto de parquês. Nisso tudo tento me imaginar em outras convivências, tomara mais calmas, seja na companhia dela ainda na cidade ou com minha família em um lugar mais propício e sossegado. Quero muito ajudá-la, mas quero muito me ajudar. Creio que ela consegue-me este referido préstimo e creio que eu consigo também auxiliá-la e isto tudo é de imenso significado, ainda mais quando relato a urgência de nos livrarmos das pestes que ora tumultuam novamente nosso apartamento. Reitero que este é o pior perfil entre qualquer moradia que já ocupei. O problema das noites só não se apresenta de maneira mais drástica porque temos em perspectiva o horizonte que se expande em Santa Catarina. Com urgência, na alvorada da papelada necessária, aguardada pela verificação em cartório catarinense, nós devemos sair daqui o quanto antes. Com urgência redijo essas linhas, ainda sombrias e misteriosas para quem na íntegra não me acompanha. Mas espero sanar dúvidas adiante. E espero no grosso modo de minha memória, não esquecer a importância e a decisiva tomada deste período em minha vida.
Convivo por ora entre meus supremos piores tempos e a dúvida do que virá logo adiante a eles. Mas se desenha um movimento que culmina como uma luz de fim de túnel. Alguma esperança está havendo, ela esperança que algumas pessoas tanto rezaram que me aparecesse. Por enquanto são trevas, adiante a promessa, ao menos, por descuido de tão pesadas nuvens, de obter raios de sol. Eles são importantes para ti, para teu humor e para mim também. Assim como és também para mim, grata surpresa iluminadora de meu 2021 amargo e melancólico. Independente do que seremos, te agradeço desde já.

05/10/2021

percepções

se quiserem posso ser pioneiro de diversas causas. pensamentos inéditos me acompanham, puxam cadeira, bebem café. mas se quiserem posso ser o mais antiquado romântico. nunca me deu trabalho. sempre me deu prazer.

percebi há alguns anos que jamais uma noite seria igual à outra. tentei imitá-las e nunca consegui. sempre porque dependia de outros atores, fosse isso na tentativa de um deja vu em estádio, festa, enfim, qualquer evento.

jamais uma noite é igual à outra. ao menos essas especiais, porque nossas percepções, tendo já vivenciado anteriormente, são alteradas. muito embora o simples (ou complexo) desencadear dos fatos também não se repita. não há como reproduzi-los (os fatos) na íntegra. é necessário aceitar.

se uma noite não se repete em relação à outra, o que dirá de uma vida. agora percebo que minha vida é minha vida. com sua completude através de meus acertos e meus erros, de minhas escolhas, de minhas virtudes e meus defeitos. preciso muitas vezes aceitá-la. aceitar que é melhor assim por mais que doa. minha vida não é nem será igual ao passo a passo, ao ritmo de meus ídolos. situações diferentes, encontros distintos, reflexões diferentes. tudo se alterna nessa dança que foge aos contornos desenhados em algum mapa.

minha vida é minha vida, para melhor ou para pior.

agora, especificamente agridoce com os acontecimentos da vida. mas foi um ano em que convivi semanalmente com a amargura, então por que não experimentar um outro sabor?

02/10/2021

sobre minha irmã

percebi que gostava de viver com minha irmã. nem que fosse para dividir com ela, ou ter uma segunda opinião sobre, as burradas que eu inevitavelmente faço.