11/01/2020

e mais nada

despenca a bateria de meu celular
vai voltar amanhã quando eu carregar
estará carregada e mais nada
a noite obscurece tudo
e logo a madrugada trará a manhã
repito: são ciclos e mais nada
titãs com ou sem paulo miklos
trânsito em transe
calmo ou com seus picos
palavras se vão sem alguém copiar
o que eu havia dito
mas as situações voltarão
claro que sim
uns ousam que não
repito: são ciclos e mais nada

o inverno e a lufada de ar frio
o borrifar das nuvens
o correr dos rios
tu não sei se vens
apostaria que sim
uns ousam que não
repito: são ciclos e mais nada

o êxodo que é rural
canal do século passado
gente em cana em canal televisionado
o carnaval canibal
e os herbívoros da marijuana
a espera compulsória dos finais
de semana
a alegria todavia não sei
quem vendia
naquela esquina, beco ou
quitanda 
tu vens a mim
será que sim
será que não
espirro em ebulição
aaaa
aaaa
atchim


e mais nada

perfil

Ela havia terminado com ele. As fotos na internet eram sempre deles juntos. Eram poucas fotos, é bem verdade, mas as existentes eram em dupla. O casal em aniversários, um ou outro casamento, em passeios dominicais ou até antes das atividades que praticavam clandestinamente pela cidade. Apesar dela ter tomado a iniciativa, sentiu o duro golpe da separação. Algum fio de cabelo ou perfume em roupa de inverno sempre ficam de heranças remotas.

Mesmo algum escrito ou principalmente nas redes sociais, essas metamorfoses ambulatórias e compulsivas. Tentou apagar o máximo possível. Como se fosse retroceder os passos e passasse um delicado pincel ou escovinha sobre as pegadas desenhadas. Serviço demorado, que no computador soa mais rápido em um alerta de mensagem se deseja mesmo excluir e mandos para a cada vez mais abarrotada lixeira. Mentalmente ainda estava distante de se livrar, mas os traços eram apagados para os demais por meio dos cliques.

Só que havia a dúvida de qual foto repor, ao menos no perfil principal de troca de mensagens, entre amigos e quem sabe alguma futura criatura para desenvolverem-se a dois. Ela não sabia qual colocar. Namorou as fotos dela própria em vestidos negros ou vermelhos. Arrumações, maquiagens e penteados que não eram habituais. Sentiu tudo muito aquém ou além do que ela realmente era, flor complexa. Mesmo os mais estudiosos não nomeariam tantos detalhes físicos e psicológicos daquela espécie. Não sentia confiança de se separar oficialmente, no que se referia àquelas imagens. Não se via só muito bem nas fotos e permaneceu ainda mais solitária não tendo sequer sua imagem de solteira resgatada. Tentou se fotografar com webcam, celular, câmera digital e nada satisfazia. Nem ângulos, nem sorrisos, nem roupas, nem cabelo para um lado, nem para o outro.

Resolveu deixar a foto para o outro dia. E do dia seguinte adiava para o posterior. E do posterior para mais adiante. E assim sucessivamente. Foi deixando passar e logo não notou diferença, era ela ali em carne e osso a falar, mandar mensagens, nada havia mudado. As amigas e amigos haviam, sim estranhado, sentiam falta de algo mais humano a conversar do outro lado da tela. Afinal, aquela ausência de foto representava uma figura neutra e automática da rede social. Um contorno de semblante, sem penteado, sem cabelos específicos, sem diretrizes de nariz e olhos, sem a boca, sem pintas no rosto, sem um tamanho de orelhas, sem o abrir de um sorriso ou a expressão pensativa de uma testa franzida.

Aquela era ela, ao menos nas redes. Um perfil inexpressivo, ainda alimentando sonhos, pensamentos, opiniões, criando piadas, respondendo de bom ou mau humor, a variar da noite para as cansativas manhãs, mas ela não tinha face por ali. Foi de uma atividade notívaga bem humorada que desligou o notebook e deitou-se, escorando delicadamente a cabeça ao travesseiro. Virou-se de lado e encontrou o mundo irreal dos sonhos. Ao acordar, repetiu os hábitos e foi ao banheiro onde se deparou com o espelho estranhando-o. Podia ser por recém ter acordado, mas achou seu cabelo mais reduzido em relação ao jeito que ela gostava. Quando foi maquiar-se, sentiu o nariz menor, apalpou-o e, como fazia em relação a ausência de foto, deixou para lá.

No café com as amigas, elas quase não a viram chegar. A moça logo notou que elas haviam notado algo também. Mas todas deixaram para lá. Ao menos ali. Se fofocaram depois, ela, obviamente, não ficaria sabendo. Naquela noite, ao finalizar as conversas nas redes, outra vez olhou para sua foto de perfil vazia e inexistente. Talvez amanhã preencheria.

Acordou no outro dia com calor. E foi a única coisa que sentia. Nem sono, nem fome. Estranhou. Foi ao espelho para os hábitos de higiene, como escovar os dentes. Pensou em prender o cabelo para encarar o dia caliente, mas ao tentar segurá-lo para tal armação, notou que o cabelo estava muito curto. Estaria perdendo? Seria fruto do estresse da separação? Do trabalho, dos últimos dias? Do que seria? Foi até o travesseiro e nenhum sinal. De repente estava alucinando, estava imaginando coisas, talvez com a terapeuta podia ver o que seria melhor para reorganizar as ideias.

A consulta era mesmo naquele dia, pensou com alívio. Se dirigiu para lá e aguardou por alguns minutos na salinha de espera até o seu horário. Viu o seu rosto de relance no retrovisor enquanto transitava para lá e, na sala, conferiu de relance no galão de água que refletia sua expressão cada vez mais atônita e preocupada no reflexo trêmulo do plástico e do que ela beberia. Não se reconhecia, de fato.

A psicóloga chamou por seu nome e a própria mulher, poço de sensatez e calmaria durante os dois anos em que se consultavam, tomou um senhor susto. Não a reconhecia. Tentou manter a compostura e perguntou o que ela havia feito no cabelo, mesmo notando que não era apenas isso que mudara. A jovem sorriu torto e tentou explicar também mentindo. Ao voltar para casa, vinha pensando que nunca mentia à psicóloga, mas estava tão forânea que não viu mal agir assim. Percebeu que a própria profissional, figura de sua absoluta confiança anteriormente, agia diferente com ela. Ela havia mudado ou fora o mundo todo?

Nisso tudo, inclusive tinha compromisso com as amigas, mas lembrava e remoía a expressão delas, como se a não conhecessem e resolveu não ir. Se trancafiava em casa. Só faltou jogar a chave fora. Quando o próprio cachorro, que ela alimentava sempre antes de sair de casa, não obedecia seus chamados, viu que a gravidade era sem precedentes. Não aguentaria esse ritmo. Teve vontade de dormir o máximo possível. Dormir até ter sua vida de volta, como era, com ela sabendo quem era e com os outros a tratando como sempre a trataram.

No outro dia, ao acordar, entrou em pleno pânico. Não tinha mais cabelo, era uma careca à sua volta, mas, após a percepção inicial pelo tato das mãos contra o agora inexistente couro cabeludo, a surpresa maior, o fatality veio diante do espelho. Aquele reflexo do banheiro contínuo ao quarto que quase sempre a iluminava, deixava radiante e preparada para encarar a vida do lado de fora, agora mostrava o equivalente ao nada: o nada que esperava tradução na música de Humberto Gessinger era a ausência de perfil nela. Nem olhos, nem boca, nem nariz, nem volume como maçãs do rosto. Ela nunca havia presenciado algo semelhante e o que era pior: se tratava dela própria.

Naquilo tudo, ainda teve tempo para pensar que não sabia como continuava enxergando, pela ausência de olhos na sua face. Apenas uma silhueta que dava indícios de que ali se formava uma cabeça e nela deveria haver um rosto. O rosto ela não sabia onde estava. A voz, ao chamar o cachorro, percebeu que estava no lugar. Parecia mais uma escassez de sanidade psicológica do que qualquer outro tormento.

Tentou tomar remédios, mesmo engolindo junto e podendo ter uma overdose. Curiosa pela experiência macabra que estava a seguir, tomou pelas mãos os comprimidos com água e, bem diante do espelho, levou-os ao que antes era sua boca. Conseguia engolir, sim e a imagem transpassada no espelho era apenas do sumiço dos comprimidos e daquela água. Nada daquilo parecia possível ou que alguém iria crer, caso contasse. Pensou para quem contar, mas quem haveria de querer saber e lhe dar crédito? A psicóloga que tão estranho agia, as amigas tão vagas e que davam a impressão de abandoná-la...

Tratou de manter fechadas todas as janelas da casa, em total reclusão daquele dia. Ligaram do trabalho e não atendeu. Deixou cair para as caixas de mensagem e enfrentava uma verdadeira resistência dela mesma com a internet. Não sabia se saía para espantar o mundo e ser internada ou fundia mais alguns comprimidos e esperava a ação que só poderia ser uma: a morte.

Mas com o passar das horas e nada mudando, antes da decisão final, resolveu, naquela sequência que parecia inacabável e que a afastava incluso de sua própria memória, anexar uma foto, qualquer que fosse, dela mesma no computador.

Que ao menos então os amigos, a psicóloga, os ex, quem quer que fosse, lembrasse dela, de forma póstuma, com uma imagem digna. Ela que se considerava bonita, ela que antes não tinha problemas de confiança, ela que tinha dificuldades, mas passava por cima de muita coisa. Ela filha, ela mulher, ela irmã, ela amiga, ela profissional, ela estudiosa, ela batalhadora, ela tal qual era. Sacou uma foto sem muita demora e anexou. Anexou na rede de conversas, na rede de posts, na rede de fotos. Morreria, mas morreria com essa última dignidade, porque não havia passado a senha para nenhuma amizade e talvez demorassem tempos e mais tempos a excluir aquelas contas. Assim se despedia.

Em um ato com tons de espetáculo macabro, ela gostou de tomar o comprimido na boca inexistente em frente ao espelho. Separou mais alguns, mas quando parou diante da estrutura de vidro, a surpresa. O cabelo estava voltando, os olhos ao menos tinham formato e já se fazia sentido em poder enxergar, o que antes não acontecia. A boca estava novamente carnuda, os dentes em seus lugares, o sentir o gosto, o respirar aquele cheiro mais de limpeza do que de banheiro. Tudo estava voltando. Levou a mão às faces e as acariciou. E se sentiu. E desafogou as mágoas que fechavam sua garganta. Largou os comprimidos, deixou-os cair. E que caíssem para longe, não importando se no ralo. Ela havia voltado.

Prometeu que lembraria desse momento e não se deixaria abater dessa mesma insegurança. Sairia para respirar melhor, saindo do aperto daquela tresloucada passagem e para testar a sua sobrevivência. Não perderia seu perfil. Ela, através das fotos, dos escritos e de tudo o que sabia já ter passado, não se esqueceria de quem era.

06/01/2020

capitães e marujos

subindo em barcas
com sons de naufrágio
não adianta ser ágil
se não souber onde pisar

(não quero pisar em alguém)

pisar pelas cascas
escorregadia de banana
frágil é a de ovo
a gente tenta e se engana
se engana e se engana
de novo

subindo em barcos
mais uns passos nesse estágio
trajetórias que formam arcos
indesejáveis
invejáveis
de longe
e de perto na pele
indesejáveis

pisar pelos cascos
nos ascos desses navios
o pavio em contato
o barco todo por um fio
explosões
bombas colocadas
nos porões
trombas d'água
tempestades e clarões
que cegam
que recolham as velas
e deixem passar as chuvas
que extraiam dela
as lições
dessas águas turvas
desse céu escuro
antes dos paredões
e muros
no futuro serem um céu
de aquarela

vão passar
as ordens dos capitães
cujos papagaios até fugiram
capitães de leilões
com marujos desprotegidos
e inseguros
justos inimigos desses capitães
sem os pães de cada dia
sem os pagos, com atrasos
e sem juros
atrasam salários
salafrários e são duros
nas ordens que lhes convém
e os marujos
sobre as palavras e o chão
tão sujos
a improvisar palavrões
e impropérios apropriados
contra os capitães desgraçados
moídos como guisados
nos motins mentais
sob o sol, sobre os sais
daquela água marítima
e que ritma para lá e pra cá
até o ancoradouro dos cais
esses abatedouros mortais
que um dia
um dia menos navios
de castro alves
mais gente a salvo
mais gente com a chave
menos gente alvo
e o alvejante sob o sol ardente
os capitães na prancha
até ficar rente
se não com a vingança
ao menos com a justiça

03/01/2020

o lapso duradouro

Deixava para as últimas horas para resolver o que iria fazer. Ninguém mudava esse seu jeito. Nem os pais, nem os amigos, nem as com quem conviveu, nem a com quem viveu. A noite do 31 de dezembro estava mais fria do que supõe o verão em andamento. Dentro dele também. Não combinou maiores eventos, com a família já longe e facilmente desistindo da insistência nas ligações para ele dar um pulo até lá, que dariam jeito nas passagens e que podia aproveitar esse recesso. Nada disso.

Conferiu os cigarros no bolso da jaqueta mais fina que vestiu por cima e saiu para as ruas. Não gostava desde jovem daquele ambiente de virada de ano pelas ruas que ele tanto apreciava. Eram muitos motoristas imprudentes e maníacos aproveitando a data para suas pirotecnias desvairadas. Mas, a pé, em uma falsa sensação de segurança que resolveu experimentar, sentia-se bem. Caminhadas solitárias apeteciam seu espírito e não ligou para ser um momento em que a maioria passaria em família do jeito que se esforçavam por estreitar relações e ignorar as inúmeras diferenças em cada casa. Ao invés de branco, também vestia preto com a jaqueta jeans por cima. Quando deu-se por conta disso, abriu um de seus raros sorrisos naquela noite.

Observava que a cidade tinha prédios amarelos demais. Notou que havia lixo de menos. Os grandes produtores disso em larga escala haviam se deslocado ao litoral, obviamente. Educação e consciência ambiental é que não seriam a bola da vez por ali. Na maioria das quadras pelas quais caminhou sentiu falta daquela bola de feno ou seja lá o que fosse que rodava pelos faroestes dos desenhos animados e nos filmes de bang bang. Seus pais gostavam muito de bang bang e desatinando, desenrolando o novelo de lã dos pensamentos lembrou-se deles distantes. Foi o mais perto de vibrar trêmulo o lábio e segurar lágrimas naquela noite.

Passou pelas casas e apartamentos de uma ou outra e lembrou da canção el viejo, dos uruguaios da la vela puerca, a banda amiga que aguantaba el corazón, que de fato estava com ele, tenha ou não razão. Pensou nas que foram da cidade e nas que ainda estavam, mas já não estavam e não conseguiu decidir qual situação era mais triste.

Pensou nos churrascos e reuniões que ele não tinha saco para. O próprio gosto musical excêntrico e pouco acompanhado e o tédio que lhe consumia a alma pautavam a desistência e a resistência a tais convites, às vezes cedendo, em um sentimento de obrigação, como quem leva o lixo para a calçada com o intuito do recolhimento e da renovação dos cestos, nas segundas, quartas ou sextas. Além dessas tarefas ainda socializava o multitarefas em questão.

As pessoas não estavam naquela zona antiquada e decrépita da cidade, mas isso não impediu que ele formulasse como elas se apossavam das ruas cada vez menos. As ruas que ele tanto gostava. Os paralelepípedos tão velhos no calçar das travessias que faziam ele exercitar os conhecimentos, ou a falta deles, em História para imaginar se aqueles tinham resistido às patas galopantes das cavalarias ou já seriam dos bondes em diante, renovados ou apenas assentados quando pareciam muito deslocados. E pensou que ele talvez fosse uma daquelas pedras que havia saído do lugar e substituída. Questionou se aquilo era natural e comum e quantos poderiam se sentir assim.

Sabia que aquela época do ano era complicada para muita gente, mas ele estava anestesiado. Gostava muito do termo anestesia. E pensou que poderia estar fantasiado como um tresloucado e ninguém daria bola na solidão daquelas ruas, as ruas que ele tanto gozava. E fez trocadilhos e brincou com essas informações todas. Os trocadilhos que ele tanto criava.

Cruzou pelos poucos posseiros daquelas calçadas, esticados em suas cadeiras de praia, pés para fora dos sapatos, celulares em mãos, desatenção constante ao que acontecia em volta e foco no que as redes sociais ou qualquer outra diversão online ofereciam. Estavam a milhas e milhas daquilo tudo, querendo ou não. Saudosos de banhos de mar nos litorais, ou de pessoas que para lá foram ou apenas passatempo melhor do que conversar com aquela tia ou com mesmo com os familiares mais próximos que já haviam esgotado os assuntos durante o café da tarde e a janta era exigência extenuante àquele frágil conector.

Cumprimentou àquelas pessoas que retribuíram um olhar certeiro. Lembrou-se de sua crescente miopia, ou seria astigmatismo? Não entendi muito dessas coisas e faltavam-lhe experiências anteriores para confirmar a resposta. Enfim, turvava-se em visão reconhecer rostos ou mesmo reconhecer o que aqueles rostos representavam, se amistosos, notando-lhe amigavelmente ou nada disso. Saía com a impressão de saudar menos pessoas do que poderia e tentava se livrar desse pensamento, entre tantos outros, por no fundo não ligar para essas opiniões passageiras como sacolas plásticas ao vento. Ou no fundo é que ligaria? Diabos, era como naquele jogo que viu em alguns filmes, que os jogadores de beisebol eram tarados. Agarravam o taco do jogo e quem ficasse com a mão no topo vencia. Era um Pernalonga versus Patolino se ligava para aquilo ou nem. Se ligava para o que ligassem, se é que ligavam.

Pensou na distância da sacola plástica que migrava ao sabor dos ventos daquela noite fria. Friorenta para o padrão da estação. E era pouco lixo que circundava aquela região semi-portuária. "Apenas eu à deriva", e sacou o penúltimo sorriso. Ou antepenúltimo, porque a cena das ruas limpas, as ruas que ele tanto gostava, lhe enchiam o tórax em sentimento positivo. Irrigava as ideias com a ilusão de um menor consumo na sociedade e de uma maior consciência ambiental. Depois prontamente ocultou o sorriso, posicionou uma cancela de trem, alterando os cantos da boca para a mesma tradicional expressão séria, porque lembrava que aqueles moradores filhos da puta apenas estavam no litoral. Sujariam o mar, o que é o tanto quanto pior. Gostava das tartarugas, se sentimentalizava com elas rumando vagarosas nas areias. E os peixes tão toscos, sempre fisgados e o maldito ministro que falou que eles desviavam do óleo nos oceanos. O animal da vez era o jumento, sem dúvida. Devia ser o ano novo do horóscopo dos chineses, o ano dos jumentos, dos jegues, se é que chineses sabiam bem que animais eram aqueles. Desejou que não soubesse. Ao menos nem conhecessem mediante as relações diplomáticas entre os países de economias emergentes. Ao menos a da China era, a do Brasil vá saber que bicho ia dar com tantos jumentos.

Naquelas cenas de poucos resíduos pelos meios fios e cantos e esquinas e embaixo das luzes dos vacilantes postes da região semi-portuária, viu alguns catadores. Aqueles sim se multiplicavam ao longo do ano. Ou já seria um biênio? Tri, se contar após a meia-noite, que se aproximava. O tempo passa. A vida era difícil. Não descartava acabar assim. Ou acabar recolhido por algum caminhão ou catador de carrinho, lixo que poeticamente se sentiu. Não pensava que era um lixo, mas pensou que estava na moda entre os jovens se imaginarem assim, em sacos plásticos impermeáveis, à espera do serviço público urbano para os homens de uniformes fluorescentes para não serem atropelados ou esquecidos pelo camioneiro responsável por dirigir aquele trambolho. Ele já nem tão jovem. Nem tão apto fisicamente para apostar corrida com aqueles heróis do dia a dia que não usavam capas, mas alaranjados trajes.

Quando achou que nada mais tinha para ver e que voltaria pela casa igual e sem renovações para o ano que vinha, apareceu um velho amigo. O Seu Flávio.
Flávio era também um catador de recicláveis, mas muito além disso, tinha grande coração e sabedoria e experiências e conhecimentos ao todo. Estava longe por quase duas quadras, mas sua visão ficou bastante nítida, como em um milagre ainda natalino, como se voltasse ao tempo que enxergava sem qualquer necessidade de lentes, mas além disso a esperança e o otimismo a olho nu. Flávio, apesar daquele serviço desgastante em que inclusive deveria estar se dedicando até aquele fechamento, estava em postura bastante ereta da coluna e demonstrava vigor físico. Devia ter uns 50 anos.

Aquilo o reanimou. O brilho de cds velhos ou plásticos ou alumínios refletiu pela esquina antes de Flávio dobrar, provavelmente rumo à sua casa, no fim daquele nostálgico e pesaroso bairro. A luz formulada por aqueles materiais irradiou-o, chocou-o em cheio, atingiu-o certeiro. Foi como um feroz sorriso. Ou, ao contrário de feroz, era como o mais amigável convite para continuar. Pensou em visitar Flávio outro dia, o quanto antes naquele ano que se iniciava com a meia-noite. Mudou rapidamente de ideia e correu as quadras que faltavam. Correu como não havia corrido naquela noite. Correu como planejava ser necessário apenas se viessem para assaltá-lo sob aquele luar tímido entre as nuvens, o que não ocorreu. Correu jovem e esperançoso e otimista e cheio de si para passar mensagens positivas ao velho lobo do mar Flávio sabe-se-lá o sobrenome.

Ao chegar na derradeira esquina, não mais o viu. Fuçou olhares, não fixou, ficou como um átomo gasoso em desespero, no seu processo de ionização não achou Flávio. Onde se escondera? Teve vontade de gritar, mas achou que estava imaginando coisas. As alucinações auditivas viraram visuais. Nem enxerga mais tão bem para ver Flávio e seu saco de trabalho tão nítidos a tamanha distância. Delírios. Mas gostou e mentalizou aquilo como um sonho acordado dos mais belos, apesar da contestável aparência do velho herói. Não ligava para isso. O coração dele fazia valer. Decidiu que o procuraria no próximo ano e cumpriria promessas. Eram absolutamente necessárias.

Como um cão de rua, refez seus passos em direção à proteção contra os fogos de artifício. O mais luminoso e duradouro estava de novo com ele.

01/01/2020

afundaram a ilha

- E como está a ilha, muito cheia?
- Mas bah! Nem imagina. Argentinos, uruguaios... só não vêm os chilenos porque ficam mais longe. Mas paulistas, gaúchos... sabe como é!
- Sei...

E trocaram algumas palavras as primas antes de se despedirem. Precisava agora era pegar a estrada e tentar chegar lá com algum tempo de sobra. O necessário ao menos para descarregar as compras, tomar uma ducha, acertar-se com o vestido e partir para a orla da praia para ver o artifício dos fogos. Subiram na 4x4 e começaram a comer o chão que o diabo asfaltou. Bom trecho duplicado quando partia de sua cidade rumo à famosa ilha. Até aconchegar-se lá era um trânsito dos mais estressantes. À medida que se aproximavam do destino final, um afunilamento que trancafiava os carros todos. Uns poucos caminhões que nada de férias neste ano novo, umas duas ou às vezes três fileiras de motociclistas que iam sincronizados tirando finosas dos espelhos retrovisores dos carros de abestalhados motoristas. No balé das motos havia um avanço, mesmo devagar, enquanto a camionete permanecia quieta, na vontade que dava de desligar o motor e manter a mão impaciente no queixo, na pura expressão que designa e define o tédio.

Barbaridade... Soubesse que era tanta a demora tinha saído um dia antes, dois dias antes ou quem sabe nem vinha, se deslocava para a piscina do parente, bebia uma champanhe meia-boca e deu para os doces. Mas não, queria porque queria passar a virada de ano com a companheira na ilha. Elas estavam juntas havia alguns anos e se complementavam, principalmente em renda, que era importante, mas também nas chatas tarefas, ao menos ambas consideravam, de faxina, tirar o pó dos cantos, arredar os móveis e por de volta e fazer almoço. Nenhuma muito dedicada aos serviços domésticos, mas na hora de dormir junto ou passar a tarde a prosear com chimarrão em mãos valia a pena. E queriam o relacionamento que era difícil medir as contas bancárias e birutices da mente sem uma acompanhante. Assim iam ano após ano e naquele passariam porque passariam a entrada da década no litoral. Não só na faixa continental, mas extracurricular, na ilha das ilhas. E suspiros e haja saco para aguentar a serpente retardada daquele trânsito. Fulminou e lançou pragas contra todos aqueles malditos semelhantes de mesma ideia para passar a droga da troca de calendário. Não tinham algo melhor para fazer? Outro lugar ou uma piscina do parente ou a champanhe meia-boca ou? E esticava o olho no exercício da distração de olhar para os carros vizinhos e imaginar quem ia, no que trabalhavam, o quão chatas eram as crianças, que ela não aguentava mais, pois labutou a vida percorrendo de escola em escola, secretarias, bibliotecas e crianças, sim, sempre muitas crianças, das mais diversas, dentes faltando, brigas bobas, invenções, piadas, bobagens de idade, piolhos, ranhos, lancheiras perdidas.

Gostava ela de olhar as placas dos carros e ver de onde eram, isso até facilitava encontrar ou desencontrar, fingir que não viu algum conhecido da mesma cidade dela do sul do sul, mas agora o novo regramento era com as placas que apenas indicavam Brasil, e outros eram Argentina e ainda uns poucos de Uruguay, com Y, o que a irritava. E pensou que muita coisa a irritava, no dia a dia e inclusive ali na véspera do feriado. O sol que ora aparecia, ora sumia. O mormaço, tá calor para caramba e surgem os oportunistas, idiotas, nada melhor para fazer no quadro social do que vender panos de prato e guardanapos de cozinha e toalhas na beira da estrada? E em seguida esse pensamento era desmentido, ressentido, amassado y jugado al basurero. Se envergonhava de pensar isso, logo ela, que sempre militou mesmo quando não sabia muito disso. Não havia lido autoras feministas, mas assim já praticava. E na verdade ao longo da vida de colégios, secretarias, bibliotecas, crianças (muitas crianças) sempre cumpriu com a parte dela dessa educação para empoderar as mulheres. E no seu próprio estilo, que começou cortando e cortando cada vez mais os cabelos até ficarem bem curtos e as roupas conforme ela queria usar, no jeans, mais calças do que vestidos, embora fosse nessa virada usar um vestido, sabe-se lá, para variar um pouco. Usava o que quisesse, não é mesmo?

E se envergonhou tanto do pensamento anterior que inclusive resolveu comprar, 3 por 10, maravilha, vão enfeitar a cozinha, talvez ficasse de presente para avó dela, ainda viva, tão velhinha, últimos presentes em vida e, vejam só, um pano de cozinha, sim, desses para secar a louça. Podia ser coisa melhor. Na ilha haveria de ter. Contou dinheiro para ir, mas na ilha sempre tem. E lá há outros vendedores ambulantes e cercam os guarda-sóis. Como que escreve guarda-sol? Isto, em plural? Tanto faz, a fila voltou a andar e ela num passe de mágica, como em uma história em quadrinhos rompeu aquela imaginação distante e posicionou a marcha para uns galopes à frente com a camionete. Havia tirado a carteira de motorista havia poucos anos, na verdade incluso depois de conhecer a companheira. E até gostava daquilo, ela que não se apetecia pelos serviços domésticos, das poucas tarefas não artísticas que lhe alegrava cumprir estava segurar no volante, passar as marchas, pedalar do freio ao acelerador.

Jamais esqueceria a primeira vez em que pegou estrada, mas nada tinha a ver aquela sensação de liberdade e exploração com a exploração do pedágio logo adiante e da demora de todos aqueles motoristas enrolados. Gostava da prontidão das coisas, assim resolvia as questões de sua vida. Seu relacionamento foi de primeira, jamais esqueceria como se conheceram. Se quisesse obras em casa, fazia. Fazia ela própria que de ferramentas ela manjava e as paredes viviam em queijo suíço de tantos furos. E na pressa no combo da ansiedade, controlada ultimamente por mais um de seus tantos remédios, queria chegar logo na ilha.

Queria tanto e criara tanta expectativa que estava assustada. Como a ilha suportaria tanta gente, tanto sotaque castelhano, tanto gaúcho com bombas e ervas, naquela piada do pampeano no aeroporto, anedota que ela tanto gostava? Quantos hotéis e quanto lucro! e aqueles pobres coitados vendendo panos de prato e de cozinha com essas figuras risonhas, ao menos alguém nesse ambiente todo, fora os donos de hotéis. Sorrisos de corujas, de cavalos marinhos e estrelas do mar. Estrela é que não era muito bem-vinda naquele estado havia algumas eleições. Outra vez política, guria? Te sossega.

E ela se sossegava e a companheira, atrapalhada que era, ia ao fundo da bolsa para catar as moedas e facilitar o troco do pedágio. Eram dedicadas as duas. E se entendiam. E assim estava bom. Ao menos estava melhor, não é mesmo? Escolheu a fileira errada e o pac man da ampulheta comeu mais uns 10 minutos naquela quadra do pedágio. Transcorrido isso, faltava pouco ao destino final: a ilha.

Havia inauguração da nova velha ponte. A travessia desativada em novas atrações e fogos de artifício para ver desde o continente. A visão privilegiada obviamente era na ilha, do contrário não haveria motivo de cruzar a outra ponte para chegar até o hotel, do banho, do trocar de roupa, só pensava nisso. Tanto esforço para isso, será que valeria a pena? Mas também desde que via as sobras de lixo à beira do Guaíba em Porto Alegre não quis mais saber de passar a virada na capital gaúcha. Dizia que de gente mal educada já estava farta na própria cidade e queria gente mais instruída nesse momento sublime. Daí desbancava a pensar se novamente estava sendo elitista?

Naquela maçante troca de marchas às paradas de total ponto morto, avistaram a tal da ilha. Tudo eram luzes e sorrisos. A mente avistou aquela cena que talvez fosse alucinação auditiva a percepção de buzinas de comemoração. Fogos é que ainda não eram, tão cedo se tratava. Galgavam naquela procissão antes fúnebre em marcha lenta para uma maior animação, todavia na lentidão mantenedora. Era muita gente. Na memória, fixava o comboio desordenado de carros argentinos, ora em uma fileira ora em outra, com suas fitas amarradas que uma vez ela tenha ouvido falar que se trata das proteções a olho gordo. Para ela, mais uma daquela mania de argentinos.

Se na rodovia quase tudo parava para depois seguir, na cidade, nas sinaleiras que desafiavam sua miopia ao entrar da derradeira noite, seguia o baile. Até ver o mar a noite já estava cerrada e o sol prometia voltar só no ano que vem, com a garantia do cantor Renato Russo. Escuridão havia bem piores, de fato, porque a cidade estava tomada de fachadas e anúncios iluminados, entre as esperanças do recomeço em janeiro e os resquícios natalinos. Os hotéis pareciam uns com os outros e elas checavam o endereço a todo o instante para não passar do ponto na avenida principal daquela praia. Se dirigiam ao norte da ilha e depois voltariam para o definitivo ponto entre as pontes, a que cruzaram e a que estava sendo reinaugurada na ocasião, onde haveria a exibição dos fogos todos.

Mãos ao céu em agradecimento: encontraram o hotel. Era baixo para o padrão de outros prédios por ali. Tinha quatro andares. A partir disso, expectativa em alta pelo momento que as levava lá, a virada de ano. Realizaram o check-in no automático, mal sabendo que não haveria check-out. Nenhuma desconfiança disso. Malas pesadas escada acima, cama de casal em posicionamento estranho. Nenhum móvel de cabeceira para colocar óculos, carteira ou outros pequenos itens que são bons manter próximos sempre. Chuveiro meio ruim de regular a temperatura, mas podiam tomar na temperatura fria dele desligado, bastando un poquito de coragem.

E coragem pensava ela nos argentinos que vinham de longe por praias mais belas, é bem verdade, mas por águas mais quentes para banho de mar e protegidos com suas fitas amarradas contra os olhos gordos que sabe-se lá de onde vinham. E alguma coisa pesou naquela noite, para além da gordura descabida dos olhares de cobiça.

Após a dificuldade do apronto em chegar ao hotel, dos pormenores dentro do quarto na arrumação, descarrego de malas, banhos frios e trocas de roupas, puderam se dirigir, depois de deixar a chave do quarto na portaria pela última vez, rumo ao réveillon, palavra francesa que ela demorara a assimilar como escrevia. E roía as unhas quando não sabia.

Mas agora roía as unhas por não sabe quanto tempo demoraria até chegarem ao evento da virada de ano. O trânsito da ida, após as pessoas se acomodarem em suas pousadas e hotéis, transformou-se no trânsito da volta. Enquanto elas chegavam na lentidão pelos trechos das avenidas, a pista oposta estava vazia. Agora que voltavam em direção à ponte, na vagarosa e controlada marcha, a pista anterior delas é que se esvaziava. Senhor deboche comum a tantos motoristas escravos do ritmo.

Desafivelar os cintos, cadeira de praia sob o braço, chimarrão na outra mão e bolsa a tira colo. Cataram um lugar estreito, a cotoveladas, em busca de posicionarem as cadeiras onde os joelhos roçariam e a mateira será que teria espaço para ser estacionada? Missão das brabas, gente por todos os lados. Desodorantes vencidos ou não renovados na correrias. Gente, gente suada, altos, baixos, gordas, magras, folgados de se darem ao luxo de sentarem em cadeiras de praia com abertura de pernas em ângulo obtuso entre elas: mas a malvada da audácia! Crianças, crianças às quais ela estava tão acostumada e não mais suportava e se corriam e se mexiam e se empurravam e brincavam de pique e pique-esconde, entre pernas de adultos e uma ou outra árvore naquele terrenão inacabável. E cabia mais ninguém, mas continuavam a chegar.

E não aguentava ela mais aquele ruído, massaroca de vozes, vozerio quase físico no contato, que a cutucava, espremia, comprimia e oprimia e desejou enfim que todos e o ano que viesse fossem ao inferno. Uma visita que fosse, para satisfazê-la em total aperto, que nem sentia o chimarrão nas papilas, nem a companhia ao lado, contida da mesma forma, mas aparentemente mais à vontade. Porque ninguém ali pareceu estar menos à vontade do que ela. E ela ardeu em chamas, abriu a caixa de ferramentas nos mais pesados insultos internos, não descarregados pela boca mas todos, dos mais diversos, de prontidão à mente, embalados para a saída, mas segurados por um móvel atravessado que bloqueava a porta, uma costura na boca. Além do mais, muitos seres humanos conseguem disfarçar melhor e também poderiam estar mal com tanta gente em volta.

E ela continuou a correr os olhos para onde fosse, milhares e milhares de pessoas vestidas de branco. Ela detestava aquela combinação dantesca que a lembrava o que de pior havia sob a face da terra, em reuniões das klu klux klan. E observando esse mar de gente próxima ao mar de verdade, com o aproximar da meia-noite e mal tinha trocado palavras com a companheira, que bebericava o chimarrão, roncava a cuia, servia de volta, entregava a ela, que terminava e seguiam nesse ciclo durante os passageiros minutos. No mar de gente, aquele mar branco, enjoativo como um mingau, no bolor de sotaques castelhanos, paulistas, gaudérios, locais e amaldiçoou que aquilo acabasse, que pudesse sair dali o quanto antes, embora nem que quisesse conseguiria se deslocar decentemente em meio à multidão.

Então, instantes antes do foguetório, sentiu o chão começar a ceder. E pareceu-lhe ser a primeira a notar, mas logo o vozerio perceptivo crescente e preocupante, apimentado da histeria. O chão da ilha estava cedendo. Não, não seria possível, mas então o quê, terremoto? Não, não, começou a ver a ponte ficar levemente mais alta, ela tão artística, tão observadora, era real. A ilha começou a ceder, mas ceder o que, minha Deusa, teu Deus, como era possível? Como uma balsa gigante, ancorada e desgovernada rumo ao fundo, as pessoas se apalermaram e não conseguiam conter-se, os das pontas tentando fugir, mas correr para onde se quanto mais se adentraria a ilha, mais longe ficariam da saída? E ao mesmo tempo as pontes bloqueadas, as pessoas longe de seus carros, em estacionamentos, ou vieram de táxi, ou de transportes via aplicativo, ou mesmo caravana de ônibus. O apinhado de gente cedendo junto com a terra, como areia movediça gigantesca, a natureza repondo o que era seu por direito, sem aguentar mais tanta e tanta gente em sua superfície. Um exame criterioso de pele, de epiderme e xô e xô e saiam daqui.

Os foguetórios começaram a meia-noite e deram o toque tragicômico, o gran finale ao espetáculo, enquanto muitos pulavam na água e tentavam nadar contra as correntezas, imaginavam que era uma saída, para quem estava na terra que era segurança, a água parecia calma, mas era violenta, muitos se afogavam, outros perceberam como a água avançava às multidões e foi um caos total. Ela assistia àquilo atônita, perplexa que seu sonhar e seus maldizeres ou ao menos mal-pensares é que causaram a tremenda confusão, a catástrofe impressionante, a tragédia de maior proporção, a cidade praticamente sugada ao oceano, em carros, prédios históricos e novos e os que seriam construídos em anúncios luminosos de outdoors e na internet e em grandes estratosféricos condomínios. Nada mais disso existiria e tampouco elas. Sua companheira tentou puxá-la pelo braço, mas para onde? Voltava a se perguntar ou nem isso fazia, estupefata, entorpecida pela visão do que era inexistente à realidade.

E a cidade a sugou, como engoliu milhares naquela noite. Poucos escaparam, velozes mais do que furiosos pela ponte, com os fogos de artifício ao fundo, em clímax de orgulhar Hollywood e seus fãs. E uns poucos por embarcações próximas, em uma tamanha sorte ou competência de ali pular, ali contar e ali pilotar barcos, em verdadeiros cardumes de refugiados. Tudo isso virou história e aos olhares do mundo só não virou lenda pelos raros registros de sobreviventes via tecnologia, nas imagens do famoso termo "cinegrafista amador" nos telejornais e pela rede mundial. Aquele foi o último dia do último ano da ilha, a ilha que atlanticou e não viu a década seguinte. Foi a primeira das muitas consumidas por esse processo da natureza reparar o desenfreio da humanidade.

falsas roupas brancas

Fortaleza. Virada da década, ao menos em movimentos culturais, porque cronologicamente os historiadores apontam as viradas para o ano 1 de cada década ou século, já que não se iniciou a contagem em ano 0. O hotel era consideravelmente luxuoso e a poucas quadras da orla, de onde o espetáculo, para Debord nenhum colocar defeito, seria de muitos fogos de artifício, este ano com redução no som, em consciência coletiva. Bom indicativo.

Mas o próprio hotel, através de sua área, de seu pátio, até da beirada de uma piscina, exibiria seu próprio evento chique. A música embalaria a trilha sonora do especial momento. Pessoas vestidas de branco, muitas delas, o que ela nunca gostou, mas aceitava e poderia bebericar alguma bebida doce que satisfizesse o paladar e o desejo alcoólico ao mesmo tempo. Além do mais, contava com parte da família e nem sempre era fácil reuni-los. Em uma praia, nos moldes atrativos ao paradisíaco, então, nada mal. Nada mal.

No alto de seus 20 e poucos anos e uma faculdade concluída, seu gosto musical era eclético. Variava dos populares brasileiros da mpb mais erudita ao que se ouvia aos pés e cristas de morros, das favelas elevadas geograficamente no Rio de Janeiro às mais planas de São Paulo e outras capitais. Gostava de desfrutar esse choque cultural, absorver o máximo possível de sotaques e até olhar aos lados em busca de alguém. Sem muita esperança de pesadas buscas, mas desde que a satisfaça no contar de alguns causos passados, delírios presentes e planos futuros, tudo em pequenas doses. Bebe, apenas beberica, na verdade, vai ficar tudo bem. Brindar taças e trocar o número de telefone para envios de algumas mensagens, ainda bem que a internet substitui os sms e torpedos, mas mesmo com esse elemento facilitador não vai entrar em contato contigo mais do que quatro vezes no próximo ano, vai fingir saudades, vai sentir saudades reais, mas nada demais, depois passa e encontrarem-se, salvo alinhamento coincidente dos astros, ano que vem talvez, tal qual uma canção dos paulistas do CPM 22.

Mas nem esse alguém estava lá. E além dele não estar, cavaleiro andante, prometido, príncipe do cavalo, sapo transformado, barba aparada vestido de branco, havia mais coisas erradas em seus sonhos. Quando já achava a festa lotada demais, mas seus pensamentos e a ansiedade futura do ano porvir a fechavam em um engavetamento, havia outros a se desenharem. Procurou despertando do sonho acordado e só encontrou o irmão muito distante. Paladino mais velho, que muitas vezes, antes de se mudar de cidade, por idade, por emprego, mostrava a ela o caminho, agora tentava irromper as pesadas portas cruelmente cerradas. Os consumidores da festa haviam sido trancafiados, sem saídas de segurança, pois os organizadores, com o aval dos donos do hotel, como soube-se depois, só permitiriam a retirada das pessoas pós duas horas, quando já houvessem agastado o considerado suficiente por suas estadias. Tamanho absurdo que nem os hospedados estavam autorizados a ir, que fossem, buscar uma bolsa, algo esquecido em seus quartos prédio acima. Ultrajante.

A revolta se sobressaiu ao clima natalino, cada vez mais naftalino em cheiro e este transformando-se mesmo em pólvora. Multidão em polvorosa que tentava convencer os estaqueados seguranças. Começava em com licença, veja bem e avançava para galopes de uma cavalaria sedenta de romper com as regras pastelonas se não viessem a se tornar trágicas. Com o diz que diz sobre a situação e as pessoas querendo explorar outros banheiros, além das limitadas estruturas da lotada festa, com os convivas sequiosos por tomar um ar fresco rua adiante, mas nada tirava os brutamontes das entradas cadeadas.

Empurra-empurra, portas de vidro, a liberdade logo além, o dj ignorado, uma versão do Dennis ou de algum outro desses, ou seria o injustiçado Rennan da Penha, enfim, qual era a senha para sair dali, para ao menos os primeiros chegados, os apoquentados à beira das portas, estes poderem sair e liberar as passagens, mas eu paguei, faça o favor, maldito, desgraçado, tu vais me agredir, você não sabe com quem está se metendo, meu tio é advogado, sou filho do vereador da cidade a 130 km daqui e

Finalmente o primeiro spray de pimenta quando, antes das portas de vidro em centenas ou talvez milhares de cacos, rasgou-se em pedaços a paciência dos seguranças, que partiram para, após a obediência insensata ao pé da letra das severas ordens, uma violência de cunho fascista. Abuso de autoridade. Abusos dos mais diversos.

Ela viu o irmão sangrar e quando deu por si também sangrava pois arrebentou-se o portão envidraçado como a um dique de uma barragem, mas ao invés da água, a água que até aliviaria os sintomas do gás de pimenta, o que veio foi uma saraivada de vidro, espalhando-se como os resquícios de balas de borracha. Ela sentiu a dor, o ano novo, a vida nova que mal vinha e travestia-se assim esfarrapada em frangalhos. A busca dos atalhos pela manada que atropelava os semelhantes. Todo mundo praticamente vestido de branco, lembrava-se ela depois que até exigência era para acessar o que antes parecia um longo e largo pátio para eventos. E agora aquela gente toda ali, no efeito das bebidas, na neurose crescente, na paranoia coletiva. Alguns mais ou menos sensatos, se é que sensatez era substantivo em questão, celulares em riste, foto aqui e gravação ali enquanto o cartão de memória permitia de haver provas para o tribunal nem tão próximo futuro quanto a meia-noite que bateria ignota nos relógios de pulso e nos telemóveis. Mas haveria de acontecer, certamente que haveria, pois, não lembra? O tio daquele era advogado e, mesmo assim, advogados já estavam por ali e mesmo aquela estudante de direito e aquele calouro.

E aquele calor todo, humano, irracional, dantesco, aos diabos, o inferno em portas abertas para onde tudo aquilo iria dar? Os libertos olhando de fora do tumulto o saldo, famílias separadas, seguranças e convivas feridos, com a certeza de que com a vinda da polícia alguns detidos, bodes expiatórios, laranjas, como estava em moda naquele período. Ela com o ferimento nas costas, o irmão com a dúvida de mexer todos os dedos, a mão que sangrava, o desespero. As sirenes, policiais ou ambulatórios que abriam caminho e prioridade a mulheres, crianças não haviam pela classificação indicativa, mas idosos alguns e que passaram mal, o coração, o ciático, o pandemônio. Foi horrível, foi. Foi intenso, sim.

Repercussão direta, entradas ao vivo pela madrugada nos telejornais. Os impressos lamentando não haver edição no feriado para mostrar as mais diversas chagas de uma sociedade desmedida em regramentos e consequências. A poucos metros dali, os fogos de artifício seguiram a programação pré-estabelecida. Os organizadores da queima maior tampouco sabiam do que se passava. Aquela ficou conhecida como a noite em que as roupas brancas tingiram-se do mais vermelho dos sangues. A poucos metros dali, as ondas seguiram seu curso natural, mas ninguém do hotel pulou sete delas.

31/12/2019

última nota da última música

o astro-rei brilha sempre
sol, só e solteiro
brilha o dia inteiro
se não aqui, do outro lado
de janeiro a janeiro
o astro-rei que é lei
sempre trouxe a vida
mas agora abrevia
mais perto da morte
rompendo a camada
que era suporte
um sol para cada
quem é que dá conta?
da antártida até
a outra ponta
aquecimento global
sobe o litoral
pescador, malabarismo
fauna e floral
camada de ozônio
alívio do outono
após o verão
outorga outra lei
tu que sabe na tua sala
com ar condicionado
enquanto as queimadas
cortam de fumaça
outra madrugada
cortinas de mata extintas
cortinas de fumaça
nas façanhas do governo
entranhas do medo
natural é o preconceito
científico não aceito
vai no achômetro
que a Terra é plana
porque é um planeta
que a vida é insana
com tantas bestas
à solta
antas, vidas santas e mitos
cantam a esperança
na boca do conflito
evitam maior atrito
que faz sair mais fogo
é fácil negar o preconceito
sem olhar o outro
vários e vários preceitos
em nome do sufoco
direitos trabalhistas
se vão numa lista
sabemos em nome de quem
deixam muitas pistas
aroma de morte
o capital borrifa
ajoelham às cortes
tentando vender rifa
bala de goma e malabares
na beira das pistas
praia corcunda empurrando carrinho
rinha de galo de quem vende o milho
os ricos nem nas praias
saem de jatinho
saem de fininho sem sair nos jornais
dias e dias que não aguento mais
mas um dia veremos alguns de seus
finais
finados nos confins
por outras classes sociais
enfim a paz
em nossos avais
e anais de evento
e um astro-rei no seio
de cada um guerreiro no meio
e além de uma chama por dentro
o cetro destruído
o povo unido, digno, aquecido
pelo único rei que é astro
lá de cima fiscaliza
os aqui de baixo
na baliza da vida
no facho da luz
o fascismo seduz
mas vai virar medusa 
um a um contra o espelho
de meia em meia dúzia
até a última nota
da última música

26/12/2019

cinzas de rima

na produção da rima
na formatação espaço
de forma exímia
pus cada acento acima
pus cada cedilha abaixo
pensei sua gargantilha
cada um de seus pedaços
da criação que é filha
sua do nu dos braços
das pernas também nuas
tento trazer seus traços
empréstimo de suas ilhas
arquipélago em seu formato

toda a canção etílica
vozes são seu retrato
detalhes que aqui se empilha
recall até os metatarsos
assim a rima é um corpo
ou somente extremidades
epiderme coberta
colheita de minha meta

assim a rima é um sopro
põe o barco em movimento
impõe-se do cais afora
e conserva sim um lamento
sem ser revelado agora
úlcera que vem por dentro
consome, corpo não chora
cora sem esquecimento
na hora que a conta cobra
o juro é o maior fermento
o juri é teu e torra
condena ao abatimento

assim a rima é teu corpo
inesquecível vinho tinto
só piora a distância
a lembrança com o tempo
consome toda a relevância
primeiro plano
lente de aumento
ocupa toda a mente
stand by, resto dormente
resta a fresta do esquecimento
migalhas enganam
e logo falha
cai de novo nas malhas
tralhas de vão passado
train in vain
vai aonde?
onde não possa ser encontrado

a rima te encontra
a rima é teu corpo
acampamento monta
apronta a fogueira
sendo consumida com o tempo

lírio ao lado do lixo

lírio cresce ao lado do lixo
desenvolto no capricho
e um picho ao seu redor

lírico cresce ao lado do lixo
dez em volta nesse nicho
e prefere estar só

25/12/2019

rupturas e cordas bambas

Obviamente a psicologia não se desenvolve caso a caso de forma isolada. Da movimentação de casos para a observação de ocorrências, repetições, aproximações e padrões, se encurtam os caminhos para sanar o estado dos pacientes. É a busca de se entender e o porquê de agir de determinada forma.

Frisado isso, há textos que procuram entender as formas e os tipos de comportamentos, mapeando as tendências e facilitando a monitoria. Ainda se estudam os casos, as pessoas não se tornaram números, mas o que não impede classificações, que, abalizadas, podem ajudar e muito.

Não trabalho com isso, mas a observação de textos e métodos, inclusive repassados para pacientes, me possibilita aplicar isso em breve autoanálise. Se procura um tratamento completo, a indicação é da procura de um profissional da área. Aqui apenas esboço onde me situo.

No que se considera uma personalidade não-assertiva, preencho cartelas de bingo e me identifico em vários pontos. O perfil conciliador, que evita brigas, prefere refugiar-se do que a assistir as exibições monótonas e desinteressantes da espécie, convivendo seguidamente com o tédio não nas atividades solitárias, mas em grupo. A insegurança sobre o próprio ser, que pode até se considerar altivo e atrativo em determinados pontos e práticas, mas que passa a notar e relatar o desinteresse alheio e evitar contato.

Desenvolver-se em atividades solitárias requer outras pautas como gostos extravagantes ou distintos ou mesmo o desinteresse pelo que as demais pessoas têm se interessado. Uma faca de dois gumes que mantém a inércia a meu lado e o dinamismo na face oposta do quintal.

O estado solitário apresenta essa via cruzada, no estar bem consigo mesmo estando só pelo desempenho de atividades como esta, da escrita, além de leitura e assistir a programações televisivas, como filmes, os quais gosto. Ao mesmo tempo existe um incômodo próprio de sentir-se exclusivo, no sentido excludente, das atividades de interação humana. Meu relato ao passar o dia no quarto em 25 de dezembro leva a crer que esse ponto está em seu ápice para a ebulição.

E para além da fincada da agulha, dessa ponta solta que nos entristece por si sós (e a sós), sem a interferência direta de terceiros, estes terceiros surgem no intrometimento para que sejas carregado ao zelo da interação e atuações. Todavia, é uma relação em ruptura. O seu isolamento causa a ruptura no andamento harmônico das relações sociais. Ao menos harmônico para quem não nota as incongruências e hipocrisias hora após hora no cotidiano. E se o seu isolamento causa essa fenda por onde se esvai o bem estar social, por sua vez a sua volta à condição de interacionista causa uma ruptura na zona de conforto do isolamento. Essa via, em resumo, é de rupturas e o perfil não-assertivo, o nosso em questão, tende a satisfazer o gosto de terceiros desempenhando atividades, saídas, escolhas que não lhe condizem com o gosto, mas, para evitar maiores conflitos e desgostos em terceiros, aceita-os.

Mas essa condição não-assertiva, como o armazenamento de um aspirador de pó, o filtro de um ar condicionado ou outros filtros, acaba tendo um limite. Aguentar muito essas programações forçadas e desgostosas para a pessoa acumula um mal estar interno. Não por acaso o texto do "Manual de Avaliações e Treinamento das Habilidades Sociais" cita que pessoas do perfil não-assertiva apresentam tendência a desenvolver chagas como úlceras e descontroladas irritabilidades quando finalmente alcançam a zona limite pós-acumulações.

Exercícios de ir aos poucos, como algumas pessoas gostam para se acostumar à água das piscinas, podem ser apaziguadores no caso. Aceitar e controlar a proposta de dizer "não". Porque é de conhecimento que caso tu cedas sempre por não dizer "não", as pessoas arrancam-lhe não somente a mão como o braço e até onde for possível. São zumbis devoradores. É preciso equilibrar-se nessa corda bamba entre topar sua zona de conforto, restauradora de energia, absolutamente necessária a nossos perfis que não aguentam, não suportam, detestam a interação consecutiva, e também não arrebentar completamente o elo social necessário por interesses de sobrevivência, desde alimentação e estendidos a demais serviços terceirizados, como saúde, limpeza e trabalhos manuais.

O diabo do respeito, essa figura difícil de ser atingir e fazer com que os outros atinjam, é um ponto crucial. Entender que o seu corpo e sua mente precisam de resguardo das atividades que custam paciência, requerem esforço e interações demasiado desgastantes, ao passo que não se deve, não se pode obter êxito em total recolhimento antissocial, na perda de contatos e na ruptura definitiva com as demais pessoas que, inconscientemente, sem perceber, talvez queiram o bem, mas sejam praticantes dessas queimaduras de diferentes graus e chagas mais profundas. Estejamos alertas na procura pelo relaxamento. E às vezes relaxados na zona de estar sempre alerta.

morro dos lobos uivantes

Em meio aos fogos de artifício e demais explosões, latidos de cachorros confusos e assustados, carros em trânsito irresponsável, sons altos, música que adentra madrugada, o silêncio. O silêncio dos suicidas. Acompanham e transpassam e esvoaçam espiritualmente até meu recinto. Sinto-lhes e ouço-lhes e, para quem os sente e os ouve, são mais ensurdecedores do que tudo o que foi mencionado acima.

Evitam que eu me largue ou me abandone uma meia dúzia como se dessem as mãos e envolvessem o tronco de uma árvore centenária que seria (ou será) cortada pelo inestimável progresso, segundo alguma construtora ou mesmo a administração pública local. Eles a cercam e prometem grandes greves e protestos para mantê-la ali intacta como sempre esteve centenariamente, de forma ininterrupta. Mas até as aparentes grossas raízes tombam.

A depressão era, há alguns anos, um lobo solitário à beira de algum penhasco distante. Uivava e eu ouvia. Uivava e eu ouvia. E não dava bola. Era apenas um uivo em qualquer lua cheia ou minguante ou crescente surgia. Mosquito insociável que vinha tentar a sorte sozinho e era facilmente esmagado quando identificado após interromper meu sono e fazer-me acender a luz da lâmpada de cabeceira. Fácil derrotá-lo.

Pois o lobo esquivo mostrou-se fiel oponente e insistente a emitir seu brado contra o céu noturno; ele sempre me alcançava. Com o passar do tempo, esse lobo, através de seu inconfundível gemido, ganhou companhia e hoje sinto como se formassem um agrupado de quadrúpedes insaciados, matilha que me cerca e a qualquer momento pode me devorar.

Seus caninos estão à mostra, as bocas espumam e me quedo paralisado. Estão à minha frente, esquerda e direita e às costas tenho somente como que uma montanha íngreme demais para ser escalada. A vida começa a demonstrar desafios e imponências demais a troco de pouca recompensa. A única saída é atirar-se de escassas e sangradas unhas e ponta de sapato para firmar-se nessa escalada. Sem outra alternativa, sem maiores equipamentos de segurança, nem emocional nem financeira, na conduta que segue e povoa a complexa arquitetura do palácio das incertezas.

19/12/2019

marionetas

às vezes escrevo sem significado
apenas para não ficar entravado
na garganta
outra banca de palavras, um bocado

deve ser a maldita da metapoesia
que se mete e na minha mente
monta eucaristia
nos refúgios de meus subúrbios me habita
me visita e picha nos meus muros

desenha pelas ruas do passado
ordena pelas ruas do futuro
faz-se do meu lar inalterado
altera móveis, pedras e entulhos

metapoesia neta de outro poema
face da minha filosofia
crase somada, tese cravada
entre cravos, gerânios e orquídeas

metapoesia que se meta
para eu ver
até onde vão as marionetas
com vidas próprias
em meus dedos a escorrer

dissolvente

sois inclemente com minha mente
impura
impávida e de difícil acesso criatura
que percorre as agruras de minha alma
me censura o sentimento que é minh'aura
faz com que me sinta indecente
e que me sente
a pensar o meu ser dissolvente 

18/12/2019

centaura

fiz um poema a ti
alço-te assim porque mereces
seguirei sim a menos que peça
para que a minha cabeça cesse

secar a torneira das palavras
irrigado terreno que lava
a alma de quem se reconhece

fiz um poema aqui
a contornar sua áurea alma
que te toque se não com a palma
muito mais fundo é o que sorri

escolhi a ti, criatura
entre tantas outras dessa fauna
elevei-te a altura sarau em sauna
para imortalizar-te: literatura

12/12/2019

death poem

desculpa poema tão curto
desculpa poema tão porco
desculpa por esse insulto
desculpa ser tão absorto
desculpa a uns ser culto
desculpa por estar morto
desculpa a outros ser inculto
mas da forma que me sepulto
todavia (todavida) continuo morto

pelos

meus pelos nas coxas me irritam
alguns pelos de colchas me irritam
saudade dos seus pelos meus
me excitam

bubblegum

gira a chave fecha a casa
gira a chave liga o motor
o que iluminará o astro maior
se eu não sair, se eu não for?

dezembro de 2019

dezembro de 2019
o que te move
ao fim da década
é o mesmo do começo?
amada
claro que não
a gente nem se conhece
a gente até se merecia
a gente nem se conhecia
a gente não conhecia
alguém para ser
o verbo que seria
o sintagma mais importante
o magma mais envolvente
o sabor mais quente
de infinito instante
ah, como era bom antes
quanto melhor durante
sem nós dois
que me sobra?
cobra que rasteja
e se desdobra
nesse vazio dos depois

astro maior (a carolina maria de jesus)

um nascer e se por
lá no canto do condor
lá no canto do cordel
figura fiel
vai voltar se for
lá no céu a fitar
astro maior

nome de poema

tem que dar nome ao poema
ah tá
isabela
franciele
invente alguma maria helena
tem que dar nome
ao poema
o cachorro existe
kika ou zibi
quadrúpede e sem vestes
logo vistes
sem nome e menos problemas
contra a fome
o pobre luta ao que lhe some
salário menos que o mínimo
a ver se consome
e ainda tem que pensar
em nome de poema
e o governo pensa
em são paulo a merenda
bolsa cortada
fonte de renda
nos jornais nada
veja e entenda
praticidade, televenda
alô, é da casa do...
caiu a ligação na vivenda
demoro pouco mais que repentista
decepciono a telefonista
que viu meu nome na lista
e eu desligo, desabrigo
um zero onze, um zero vinte e um
outro algum
algum outro passando sufoco
pra cumprir meta de venda
governo pensa nome
de projeto e de emenda
e não cumpre
eu cumpro
e não penso em nome
de poema

patrono

sono, patrono máximo
de meu humor
bono, o que é bono?
por acaso ácido
meu rumor
trono
reis e rainhas
eu e você
meu amor

tylenol gotas

poesia sem melancolia
noite sem dia
dia sem sol
caixas, cápsulas, válvulas
coristina
rivotril
dipirona
tylenol
onde chegou a vida
viu o que te deu
ou a vida te tirou

08/12/2019

venceslau

eu tenho uma namorada em novo hamburgo
ela deve estar com os namorados dela
eu tenho uma janela de frente pro tumulto
ali eu sepulto uma ou outra ideia

eu tenho pensado na minha família lá nos burgos
por fora e tão pobres camponeses
na américa a imaginar um outro futuro
com o nome mais vagabundo dos poloneses

venceslau
venceslau
venceslau

eu tenho uma paixão por rock gaúcho
escrevo umas letras qualquer
e ponho no fluxo
se ficar um pouco melhor
já serve pra forrar o bucho
não precisa grandes coisa
pro rock gaúcho

eu tenho uma madrugada em outro fluxo
a cardia acelerada e o comprometer
de outros músculos
eu tenho uma janela pra outro mundo
lá estamos eu e ela em
königsberg

minha tia-avó acreditava numa herança
na alemanha
talvez fosse a maior esperança dela
dos meus sonhos de criança
não sei quais estou à espera
eu queria ainda acreditar
na primavera

venceslau
venceslau
venceslau

01/12/2019

outras bastilhas

dedilha e dedilha este violão
que vamos derrubar outras bastilhas
aceite a pastilha da minha mão
que tirei de dentro da vasilha

minha mãe fez cirurgia em outro verão
e retirou a sua vesícula
em nome das rimas pela perfeição
improviso rimas ridículas

me acostumei que a polícia faz o que quiser
reclamar para quem e para quê?
dedilha e dedilha este violão
que vamos derrubar outro batalhão

quem policia a polícia?
que se disfarça travestida de milícia
quem policia a Melissa?
minha gata sai de trás das hortaliças

quem policia a missa?
ou o que ocorre atrás dela
longe do alcance de qualquer janela
atos e chances de qualquer premissa