30/07/2025

Sad Vacation (2007)

Um filme japonês repleto de reviravoltas. Direção de Shinji Aoyama. Kenjy é um adulto que trabalha como motorista ocasionalmente. Sua vida é misteriosa. No início da história, enquanto prestava serviços junto à máfia, ele resolve adotar um órfão chinês que seria vendido, levado adiante. Mesmo praticamente jurado de morte pela iniciativa, Kenji mantém a guarda do menino, apesar da máfia japonesa Yakuza dar-lhe tempo e prometer voltar num futuro. E essa organização secreta e cruel na história do Japão nunca esquece dos pontos deixados abertos nas feridas. Não há ponto sem nó.

O filme é sobre não esquecer e como agir a partir das memórias e da complicada teia da vida. Kenji vivia com a mulher Iuri (aqui a destacar ser um nome feminino). Ambos passam a criar o jovem chinês.

Muitos anos depois, no seu trabalho de motorista, Kenji carrega um homem recém idoso e descobre, ao levá-lo para casa/empresa, a figura da mãe, que o teria abandonado quando ainda era criança. O filme joga com essas situações. Provavelmente Kenji aceita a criança chinesa, se compadece dela e evita que a máfia a leve adiante somente por relembrar sua infância cruel sem a presença dos pais. A mãe abandonou Kenji e o pai era um atrapalhado alcoólatra  - que aparentemente não é mostrado fisicamente na trama, apenas citado.

Ao descobrir a mãe nessa nova vida, Kenji arma planos de aparição e vingança. Ele descobre ter um meio-irmão, filhos da mesma mãe, mas tendo o senhor idoso como pai. O adolescente irmão de Kenji é bastante rebelde, tendo essa característica em comum com o soturno Kenji. O jovem também arma planos de rebeldia, inclusive emboscadas como assalto a um supermercado, apesar da boa condição de vida que o velho pai e a mãe de Kenji lhe proporcionam.

A mãe de Kenji tenta explicar a emoção do reencontro com o filho e planeja uma vida conjunta para todos na espaçosa casa/empresa, que deixa os funcionários agregados irem se acomodando no grande espaço, com quartos e improviso. Kenji, no entanto, nunca superou o abandono e está mais interessado na vingança, inclusive aconselhando (ou desaconselhando, plantando semente do mal mesmo em) seu meio-irmão rebelde.

Nesse meio tempo das confusões familiares,  a máfia retorna após anos em busca do garoto chinês que havia ficado sob a tutela de Kenji. Ideias de libertação e prisão à história circundam pela mente dos personagens. A trama é levemente confusa, mas passível de entendimento com suas nuances e reviravoltas. Até quanto uma mente pode suportar as ideias de abandono e reescrever a vida em reencontro? Qual o limite de uma tutela a quem não lhe pertence?

Como dito em altura do filme, será que os japoneses não são bons pais e mães? E por isso o garoto chinês teria que seguir seu rumo de volta ao país de origem? E o exercício do perdão é possível ou será que fragmentos de sua história pessoal foram ocultados do conhecimento do confuso Kenji? Como ele vai lidar com essa verdadeira salada, uma das mais temperadas e organizadas já apresentada em roteiro dramático? Antes do estouro de muitas séries à la carte ao público, a impressão é de uma verdadeira novela japonesa, em que temas como a perigosa máfia do Japão, responsável por centenas de mortes ao longo de décadas e até séculos, temas familiares de natureza delicada, a possível ou impossível reconciliação, as buscas e novas parcerias surgidas são todas abaladas e colocadas à prova quando os últimos atos são desferidos.

Um filme em que o cativar pelos personagens parece não emocionar, mas os desfechos prometem. Uma trama bem audaciosa, problemática e de final estarrecedor, estremecedor das estruturas da vida como se fosse um legítimo terremoto.

28/07/2025

Monólogo Silencioso (2008)

Filme senegalês que, em formato documentário, apresenta a vida das empregadas domésticas no país. Através da história de diferentes trabalhadoras, as condições precárias de vida são mostradas. Amy é a primeira a ser apresentada e, de certa forma, é a personagem principal. 

Amy é uma jovem empregada doméstica em uma casa de família de classe média. Enquanto ela trabalha, sua patroa costuma ficar no seu ouvido cobrando, criticando e, entre aspas, incentivando. Depois dela, outras garotas expõem suas situações.

A maioria delas iniciou estudos, mas teve de deixar a escola para trabalhar, seja por dedução própria ou obrigação familiar. Algumas tornam-se mães muito cedo e o compromisso em alimentar os filhos duplica a dificuldade da jornada. São poucas as opções de emprego, portanto o serviço de maid (empregada doméstica) se torna a principal opção para quem evita vender o próprio corpo como comércio.

Uma das mulheres desabafa que ela mantém as casas limpas, mas mesmo assim ela que é considerada suja. A controvérsia é uma dura realidade. Muitas das mulheres trabalham em casas de bom material e em melhores regiões de Dakar (capital do Senegal), mas moram em barracos na periferia. São barracos sem energia elétrica, com somente porta de entrada, em que se deve optar entre ter iluminação e ventilação ou conviver com possíveis insetos.

Uma jovem, ainda de aparência adolescente, desabafa que elas também são humanas e gostaria somente de ser tratada como bem trata os outros. A maior reclamação dessas meninas é a falta de pagamento, pior do que as condições precarias de trabalho. Muitos empregadores, patroas lançam demanda de limpeza e lavagem de roupas, mas não as pagam devidamente. Muitas vezes a lorota é de voltar num outro dia, prometer o pagamento para amanhãs que nunca chegam. Quão injusto é o mundo e a máxima de sempre: com quantos pobres se faz um rico, ou, mesmo não sendo enriquecido, um ser, uma família mais abastada?

O nome Monólogo Silencioso apresenta a crítica de que essas mulheres ainda trabalham silenciadas, seja nas casas ou pelas comunidades. Ninguém as escuta. Por educação forçada elas devem ficar quietas. Devem obedecer, não devem se rebelar. Devem falar baixo e não emitir seus desagrados, não são incentivadas a opiniões. É o silenciamento e o apagamento em voga.

21/07/2025

Classe Operária (1982)

Com título de Moonlighting (1982), o filme conta a história de um trabalhador polonês melhor instruído que seus colegas, por falar a língua inglesa e se meter nos trâmites. Em meio à crise política que cercava a Polônia, Novak vai para Londres com outros três trabalhadores sob sua tutela, entre aspas. Ele é o líder entre os quatro por se comunicar com os empregadores. Com visto/passaporte para apenas um mês, eles precisam agir rápido em uma obra para restauração total de uma casa/apartamento (bem ao estilo britânico, como já devem ter visto).

O objetivo dos ingleses ao contratar a mão de obra estrangeira é reduzir ao máximo os custos. No início do filme fala-se em um serviço até quatro vezes mais baratos quando realizado pelos poloneses. As condições do emprego são extremamente precárias. Os trabalhadores poloneses dormem na própria obra. Um canto, uma esteira, alguns escassos pertences para cada um. Novak obviamente é o mais abastado, chutando para longe qualquer referência a um bom socialismo - ou talvez emulando as maiores desfaçatezes possíveis nos regimes. Assim, o líder do grupo é o que se comunica e recebe o dinheiro do contratante. Inclusive o filme todo se passa em inglês, com diálogos entre os trabalhadores polacos propositalmente não traduzidos.

Para além do protagonismo de Novak, os demais personagens até recebem nomes, mas pouco ou quase nada se sabe sobre suas vidas. Parece um recurso proposital para torná-los simplórios e pouco articulados, ainda mais diante de cultura e país que não conheciam. Novak lê jornais, compra os materiais necessários para obra, mesmo casado tenta encontrar um tempo para uma escapada e, de forma gradual, vai se tornando o grande canalha que dificulta inclusive a relação de prosseguir a vista do filme. É um personagem principal bastante audacioso e apegado a truques.

Novak articula golpes na vizinhança. Além da tentativa de flerte que, perdão, parece até bem secundária na trama, preocupa a Novak o escasso dinheiro que teria de dividir entre seus parceiros. Assim, o mal intencionado promove golpes a supermercado e tenta pechinchar sempre que possível diante das poucas libras que lhe restam. O cerco vai gradativamente fechando contra o canalha, com truques em decadência, confiança dos rapazes em baixa e o prazo para entregar a obra cada vez mais próximo do esgotamento. Com tantas dificuldades para equilibrar-se no estilo de vida britânico, Novak percebe que a grande oportunidade para voltar para Polônia com dinheiro valorizado acaba se tornando uma grande furada.

O filme transcorre acontecimentos paralelos, como uma grande repressão a movimentos políticos de oposição na Polônia, em uma batalha por direitos sociais e por uma maior liberdade no país. Procurando esconder de seus colegas de trabalho as informações, Novak camufla notícias, desconversa sobre a situação polonesa e busca manter a trupe organizada unicamente no objetivo de entregar a obra no prazo estimado.

Socialmente, chama a atenção a peculiaridade de contratar a mão de obra desconhecida, de pouca garantia, mas bem mais barata, movimento comum até hoje a muitos países, com diferentes recortes e possibilidades pelo mundo. Os Estados Unidos contam com latino-americanos, filipinos, a Europa com árabes e africanos e até o Brasil muitas vezes se favorece da diferença de oportunidades e moedas para contar com bolivianos, venezuelanos, paraguaios, haitianos e alguns africanos vindos de longe. Sobre o Paraguai, há um filme brasileiro sobre a contratação dos nativos deste país, principalmente na grande São Paulo, um filme antigo (mesmo ano do filme desta resenha, 1982, em tremenda coincidência) chamado de Noites Paraguaias - este conta como esses migrantes buscam qualquer tipo de emprego para resistir e acomodar suas famílias. O principal nesses assuntos é apontar as dificuldades do elo trabalhista, as tensões criadas entre os estrangeiros e os locais e, obviamente, muitas vezes o preconceito partindo do empregador e da comunidade em relação a esses estranhos em potencial. Trabalhadores homens com ou sem esposas, potenciais estupradores na visão dos locais, financeiramente pobres, talvez pouco instruídos e com costumes diferentes: o preconceito torna-se gritante. A adaptação sempre traz e expande climas de tensão e a continuidade das missões é posta em risco.

Assim, filmes com essa temática trazem excentricidades e pontos em comum, demonstram a vida e o convívio tensos em diferentes partes do mundo, cabendo a identificação do que se repete, do que se difere e onde a ficção encontra a realidade e a realidade bate na porta da ficção. Vocês cumprem os requisitos?

Classe Operária (Moonlighting)

🌟🌟🌟

Quem procura acha

Encontrei o guardinha que anda apitando pelas noites.

Eu disse - Não precisa apitar que tudo está seguro.

Ele disse - Obrigado mas cuide da sua vida.

Eu disse - Poxa, eu só estava tentando ajudar. 

Ele disse - De boas intenções o inferno está cheio.

Eu disse - Você conhece o inferno?

Ele disse - Já fui lá umas vezes e fui dos poucos a voltar.

Eu disse - Eu posso te mandar lá em definitivos.

- Ah é?

Eu disse - Sim, já mandei uns quantos para lá. Mas só deixo no portão de entrada. Nunca entrei.

Ele disse - Você quer trocar de lugar?

Eu disse - Você pode apitar, mas fique longe da minha rua.

Ele disse - Qual é a sua rua?

Eu disse - É aquela ali. Segunda à direita. Se você passar daquela esquina é um homem morto.

Ele disse - É o que vamos ver esta noite.

Eu disse - Já tenho compromisso para esta noite

Ele disse - É com quem?

Eu disse - Comprei briga com o cara do supermercado.

Ele disse - Qual era o número do caixa?

Eu disse - Era o 14. Antigo 13, mas 13 eles não usam mais.

Ele disse - Na garagem onde deixo o carro também não há mais esse número pra vaga.

Eu disse - Melhor assim.

Ele disse - É . 

Eu disse - Mas então tenho briga marcada com o 14.

Ele disse - Já briguei com o 7.

Eu disse - É um otário também.

Ele disse - Mandei ele ao inferno.

Eu disse - Você entrou junto?

Ele disse - Dessa vez não.

Eu disse - Eu nunca entro.

Ele disse - Você parece machucado.

Eu disse - Nem perto de como vou deixar você.

Ele disse - Nos veremos novamente.

Eu disse - Certamente.

Estou me recuperando da última briga no barbeiro. E aguardando o atendente do caixa de número 14 do macro-atacado.

17/07/2025

Uzak (Distante)

Instruções

Elencar as diferentes distâncias abordadas no filme:

1- distância dos personagens principais

2- distância do primo se saísse a trabalhar no mar em navios

3- distância do primo pra conseguir um emprego 

4- distância do fotógrafo pra reconquistar antigo relacionamento

5- distância do primo para se adequar ao outro estilo de vida

6- distância do fotógrafo para esquecer

7- distâncias da vida em Istambul 

8- distância de largar o vício em cigarro

9- distância final entre os dois; separação


Uzak é um filme turco de 2002. Yusuf sai do interior do país em busca de emprego na capital Istambul. Lá, de surpresa, ele procura pelo primo Mahmut, o qual vive com um espaçoso apartamento, trabalhando como fotógrafo freelancer. Yusuf planeja trabalhar no porto da cidade, mas as expectativas de emprego se mostram frustradas.

Identificados apenas como primos, sem aproximação, Yusuf e Mahmut passam o filme todo resguardando certa distância. São diálogos frios, situações de anfitrião apenas forçadas pela boa educação a que se deve e a distância entre eles se alastra pelos círculos de amizade, hobbies e diferenças culturais. Em certo momento da película, Yusuf reclama que a cidade grande havia "mudado" o jeito de Mahmut. A verdade é que o anfitrião era um homem bastante misterioso e solitário e jamais deixa o primo se aproximar demais de suas questões pessoais, inclusive ao atender telefonemas sempre com a porta fechada e até dentro do banheiro. Era 2002, quando a moda do telefone sem fio já estava lançada, embora os aparelhos celulares não fossem unanimidade para classe média.

Yusuf toma seu espaço no apartamento e passa dias a sair e procurar emprego. Mas a tentativa de empregar-se no porto é frustrada de prontidão. Não tem emprego e ponto final. Ok, afirma Yusuf, que teve de viajar até outro local em busca do escritório onde o poderiam empregar. Ele faz passeios sempre solitários, conversando com outros portuários em cafés e perseguindo mulheres à distância. Um desempregado de meia idade não era o partido preferido para tomar atitudes.

Sem credenciais e sem quem o pudesse apresentar a novas oportunidades, seja de emprego ou de relacionamento, Yusuf fica à margem da sociedade e, sem opções para enviar dinheiro para sua mãe na cidadezinha distante, acaba por ocupar mesmo o quarto no apartamento do primo, cada vez menos paciente com a inusitada e atrevida visita.

Embora Yusuf não soubesse, Mahmut vai ao encontro de sua antiga esposa. Eles passaram por um aborto e ela acredita que não possa mais ter filhos. Mahmut descobre que ela (Nazan) vai ao Canadá com seu novo marido. Ele mantém a esperança da ex-companheira ao afirmar que lá talvez um médico diagnostique diferente, que ela talvez ainda possa ser fértil. A conversa entre eles é em tom melancólico e não vai adiante. Mahmut demonstra não superá-la.

Algumas das cenas mais constrangedoras são das interações entre os amigos do fotógrafo Mahmut com o primo forasteiro. Ele fica totalmente deslocado, sem participar dos assuntos culturais em foco. Em uma das saídas, desocupado, Yusuf ajuda Mahmut a realizar sessões de foto, trabalhando com flashs e carregando equipamentos. Isso garantiu uma grana mínima para sorriso do visitante.

O filme avança e a melancolia de Mahmut não passa. É interessante ter em vista que suas atitudes grosseiras e pouco paciensiosas com o visitante são somáticas de sua frustação amorosa, com o relacionamento que resultou em divórcio e a impossibilidade de reatar. Yusuf sabe nada a respeito da vida pessoal do primo e, portanto, não pode sequer entender ou tentar apaziguá-lo. Entre eles, o clima se torna cada vez mais hostil e as grosserias e ressentimentos se multiplicam. Um rato escondido no apartamento, cujas ratoeiras ficam espalhadas pelo piso, preenche vazios no espaçoso recinto. Talvez a luta contra o frágil roedor possa unir os primos. Talvez.

Istambul é uma cidade muito grande, uma das maiores entre Europa e Ásia, unindo culturas e trazendo particularidades relevantes, de vendas, gastronomia, portos de entradas e saídas da Europa e Ásia para o mundo. Istambul é grande e também impessoal, como se espera de uma cidade grande. Ela também reúne clima variado, do qual também se orgulham ali próximos os iranianos: estações que pelo menos eram bem definidas (hoje em dia já não se sabe). Assim, o filme passa do rigoroso e cheio de neve inverno até a crepuscular primavera. Na impessoalidade de Istambul, Yusuf se perde por cafés, shoppings e ruas, persegue mulheres e amplia sua frustração, tapete estendido da falta de emprego.

Entre belas fotografias da metrópole turca, está também os momentos filosóficos dos primos e o vício em cigarro. Mahmut até que tenta parar... Mas não é fácil. Assim como não é fácil manter os cinzeiros e a casa arrumada na presença do estabanado e inconveniente primo. Ao final, a solidão que cada um sentia é um hectare cravado em seus peitos. Olhares distantes em direção ao nada, onde só as mentes sabem por onde divagam. Será que a distância entre os primos ainda pode se transformar em consolação ou saudade? Um filme frio entre familiares, solidão e metrópole. Entre o capitalismo que rejeita e as estações que mudam totalmente o jogo.

🌟🌟🌟🌟

Uzek 

Lançamento: 20 de dezembro de 2002

Direção e Roteiro: Nuri Bilge Ceylan 

Direção de Arte: Ebru Ceylan 


Belas paisagens da grande Istambul e muitos silêncios compõem o filme turco


15/07/2025

Percebi que às vezes não tenho medo

Ou venço o medo pelos meus amigos

Será que ser assim sempre

É ser um pai?


Será que você é assim?

Que finge tão bem

E supera tão bem

E quando não 

Tenho muita compaixão 

Te vejo humano e prometo irmos juntos 


Son to a father

Percebi que tenho feito por mim

Mas era tudo por ti

Percebi que não terei filho

E que você será sempre meu amor


Percebi que não tenho chorado

Mas tenho chorado só por ti

E chorarei por ti

Percebi que não terei filho

E você será sempre meu amor



Son to a father

12/07/2025

Fireworks Wednesday (2006)

Mais um filme assistido feito pelo iraniano Asghar Farhadi e co-escrito por Farhadi e Mani Haghighi. Segue a senda de filmes colocados ao máximo os valores e as dúvidas de como proceder, exercitando extremamente os limites humanos dos personagens. Roohi é jovem noiva que está prestes a se casar na semana. Para os gastos da vida conjugal que lhe espera, inicia numa agência de empregos na tarefa de empregada doméstica para pessoas abastadas. É em um apartamento longe de seu humilde bairro que a banda toca. O filme ocorre com poucas locações, praticamente apenas no prédio da patroa e do marido.

Logo de entrada, Roohi pressente que as coisas não vão bem. O casal vive em implicância e até o vidro de uma das janelas teve de ser trocado em meio ao caos da faxina necessária. Uma outra mulher também estava contatada para função de limpeza. Roohi logo percebe que a patroa desconfia do marido, sempre ao telefone com número e voz estranha. Um número registrado em chamadas provoca sua atenção, pois as ligações são quando ela não está no apartamento. Para aprofundar as suspeitas, a patroa pede a Roohi que marque um horário no salão de beleza improvisado de uma vizinha, a suspeita número 1 da acusação de traição. Muito além da limpeza, Roohi tem a missão de descobrir informações sobre a suposta traição entre a vizinha do salão de beleza improvisado no prédio e o marido da patroa.

A trama começa a envolver a gama de personagens. O casal em derretimento tem um filho pequeno na escola, Amir Ali, estudante de primeira série. Roohi é contratada inclusive para buscar o menino no colégio, enquanto a mãe está ocupada com as suspeitas a pairar sobre o marido, que trabalha em uma agência há muitos anos. A tarde é percorrida entre desencontros, suspeitas, suspense e o drama do que fazer no lugar de cada personagem. Casamentos ao desgaste, pessoas tentando ganhar a vida em seus empregos, valores morais postos à prova em uma sociedade patriarcal. A própria criança envolvida no filme já partilhava dos problemas, pois, ao ouvir o som da janela quebrando na noite anterior, desconfiava de ladrões no prédio, quando eram apenas seus pais a brigar.

O filme ocorre todo durante a última quarta-feira para os iranianos em um ano, data marcada pela queima de fogos que se estende da tarde à noite. Um exercício de explosões, ocupação das ruas e festejos selvagens para testar o coração de qualquer nordestino ao comemorar as datas juninas. O clima para o final do filme chega ao hostil pelas explosões nas ruas, quase a noite de anarquia interpretada de forma fictícia no cinema em outra franquia (dos EUA). Entre as explosões dos artefatos baratos e caseiros segue a martelar na cabeça de Roohi o que ela deveria fazer sobre as descobertas do dia, levando a questionar os valores e as fronteiras de um mero emprego e a oportunidade de intervir na vida alheia. Mais uma vez nas tramas de Asghar Farhadi nos vemos envoltos entre muitos personagens com suas razões, seus erros, suas peripécias e o ar pesado da sociedade iraniana, tão condenável às mulheres abaixo dos trajes obrigatórios.

Outra grande trama de reviravoltas, detalhes bem produzidos e adequados ao roteiro que enriquecem nos pequenos objetos e detalhes cênicos ao resultado final devastador e ganhador do vazio de cerne ao final.

Nota final para Fireworks Wednesday:
🌟🌟🌟🌟

10/07/2025

Beautiful City (2004)

Beautiful City é um filme do diretor iraniano Asghar Farhadi. Mais uma obra-prima do cinema do Irã, pejorativamente conhecido por ritmos lentos, mas apreciadamente elogiado por temas humanitários, levados na presente película ao extremo. Considero este, ao ponto de terminar de assistir, como o filme com questões humanas, de escolha, de concessões, como o mais difícil nesse aspecto. Qual o limite do sacrifício para salvar outra pessoa? Quais são os limites da memória e o quão saudável pode ser - entre aspas - o esquecimento?

A'la é amigo de Akbar. Ambos foram presos no centro de detenção juvenil. Akbar está condenado à morte, por ter assassinado a filha de um homem, com a qual namorava e pretendiam casar. Akbar cometeria o suicídio e mataria a menina junto, para que ela nunca mais pudesse conviver com outro. Interceptado, Akbar matou somente a companheira, não tendo conseguido efetuar sua própria morte. Ao longo de dois anos no centro de detenção, até completar 18, tentou o suicídio algumas vezes, monitorado, impedido e sem sucesso. Então, ao chegar à maioridade, é levado embora, onde, pelo julgamento das leis, seria executado na forca. Aplicações ainda existentes do milenar Código de Hamurabi, que ouvimos na escola.

A'la se torna o personagem principal do filme. Condenado para o centro de detenção por roubos, ele está prestes a sair. Faltavam 28 dias. Ele combina com o diretor do Centro que sairá por uns dias para convencer o pai da jovem assassinada por Akbar, a desistir da pena de morte para o assassino. O perdão do velho pai de família serviria na Justiça para descondenar Akbar, que aguarda trancafiado e sem esperanças.

A'la, para obter todas as informações que precisa em busca do perdão para Akbar, acaba se envolvendo com a irmã do amigo. Se envolver leia-se da forma romântica que poderia ocorrer entre dois jovens com objetivo único: a libertação de Akbar. Alerta-se que o filme não é romântico, é sobre os extremos que as decisões podem custar. Será que A'la pode abrir mão de escolhas, como a mão da jovem em casamento, para salvar a vida do amigo? Será que a irmã de Akbar concordaria em casar A'la com outro e continuar seu martírio com um homem que ela não ama?

Quanto ao perdão, qual o limite de sanidade, do religioso, do vingativo e da concessão que um pai pode fazer pela filha morta? É possível perdoar o assassino? Este senhor que já havia perdido a esposa do primeiro casamento, vivia com a segunda e, com esta, possuía uma segunda filha, com deficiências físicas. Uma vida tão sofrida justificaria o sentimento de Justiça pela morte do assassínio?

A segunda esposa do pai sofrido também estava infeliz. Ele sendo tão infeliz impedia a continuidade da vida familiar, amargava ainda mais um ambiente já naturalmente afetado pelas deficiências da segunda filha. Para adiantar a condenação de Akbar para forca, um dote financeiro poderia ser depositado para acelerar a tarefa da Justiça. O homem iria preferir reunir a grande quantia para arriscar uma cirurgia de salvação para sua segunda filha ou para condenar de vez o assassino da primeira? Como apontado logo ao início desta resenha, é uma trama muito bem costurada e que testa a empatia e os cenários de atuação que porventura poderiam ocorrer na vida real.

Ao longo destes anos, observando histórias reais e fictícias, desenvolve-se a apreciação das questões sem a faca erguida para o julgamento rasteiro e precipitado. Ao longo do filme de Asghar Farhadi, em nenhum momento me senti confortável para bater martelo sobre as decisões que estavam ou não sendo tomadas. Não há santos. Todos possuíam suas razões. Mesmo a bondade de A'la ao arriscar tudo pelo amigo era contraditória ao ser um ladrão condenado por roubos e também deixar-se envolver romanticamente com a irmã do amigo. O sentimento dele também era o de tentar salvá-la de um casamento arranjado, problemático e triste. E o sentimento de tentar ajudar a família do pobre homem condenado, com a lembrança da esposa e da filha falecidas e tendo que cuidar de uma terceira com limitações. As limitações eram como a rua que cortava a frente da casa da irmã de Akbar: com um trilho. Um trilho que pode levar aonde? Quantas e quais fugas são possíveis? Quantos cadafalsos devem ser encarados de frente e sem escolhas? Quais os limites da religião, da Justiça e das palavras do Corão?

Discussões políticas, jurídicas, religiosas, financeiras e familiares postas em 1h40min de filme, agonizantes pelo drama e suspense suscitados. O desfecho em aberto segue a torturar o espectador sobre como teria agido e como será que termina o destino dos personagens?

Nota final ficaria em 4,5, mas a permanência do que envolve e nos afeta sugere 5.

🌟🌟🌟🌟🌟




09/07/2025

Não adianta

Na di en ka 

Eu quis casar com você 

Não adianta 

Fugir do destino de querer


Na di en ka

Por ti eu espero, a gente se senta 

Vítimas de Tormenta 

Vittorio de Sica, etcetera 


Na di en ka

Por ti eu espero, a gente aos 60

Anos

Um pedaço de pampa

A tarde lenta, o alvorecer

Um pedaço de pampa

O sol sem obstáculos no horizonte


Saudade vai daquilo que já partiu

Manhã, café, sua voz é meu vinil

Idade vai mas a gente não definiu

Um pedaço de pampa

Nos geoguessr que pariu

08/07/2025

Primavera Cambodiana

Filme de Chris Kelly, que demorou seis anos para ficar pronto. Isto porque o acompanhamento foi completo durante um período belicoso entre os cambodianos e o primeiro ministro Hun Sen. O tema do documentário é um projeto audacioso de prédios ao redor de um lago, parcialmente até aterrado, enquanto os moradores, originários ribeirinhos, eram obrigados a deixar suas casas, que subitamente seriam destruídas enquanto eles seriam mal alocados ou até não indenizados. Um ultraje das ocupações por projetos de construção civil desordenada, tema comum para países ditos em desenvolvimento  quando áreas propensas à ocupação são invadidas pelas multinacionais e/ou projetos mirabolantes, geralmente em busca do lucro acima de quaisquer preocupação com o meio ambiente. Assim, a capital do Camboja vivia essa situação que afetava dezenas, até centenas de famílias.

O Camboja é um país asiático pouco abordado nos noticiários, mas todos os tristes relatos foram gravados, aliás, uma modernidade a serviço da prestação de provas por parte dos interessados em demonstrar as ações truculentas da polícia e dos subordinados ao tiranismo governamental, enquanto pequenas veias de ira rebelde pulsam para tentar evitar o colapso de comunidades, como a ribeirinha demonstrada. A presença de celulares nas mãos da humilde comunidade, e até do monge protagonista na trama, chama a atenção, pois também se imagina como eram as injustiças cometidas em protestos antigos em que apenas a palavra de ordem oficial era válida, sem provas a refutar.

"Nós monges dependemos das pessoas. Se elas não têm o que comer, nós também não temos", afirma o monge Luon Sovath, espécie de protagonista no documentário cambodiano.

Quanta diferença dessa visão humilde do monge para o chamado evangelistão que se tornou o Brasil, com os pastores a extorquir a população mais carente com dízimos e contribuições abusivas sobre o salário dos mais pobres, necessitados de auxílio e com suas parcelas mínimas surrupiadas.

"Eles não querem que os monges se envolvam em questões sociais. Mas, para mim, as questões dos aldeões são minhas questões."

"Existem 40 mil monges no país e o comportamento deste pode comprometer a reputação de todos. A religião agora pertence ao governo."

Quando um julgamento era armado para condenar os considerados baderneiros - que apenas defendiam seus direitos de moradia e terra - um dos oficiais apresenta uma lei escrita que afirma que os monges não podem participar de protestos, manifestações políticas, greves ou quaisquer movimentos que causem desordem ou conflitos. "Você acha que esse é um comportamento correto para um monge?"

"Como defensor dos direitos humanos, amo a todos igualmente. Quero viver em um país onde todos sejam respeitados. Minha missão é proteger vidas como o Buda tem a missão. Eu prático o budismo mais puritano" - insistia Sovath, que começou a ser perseguido, ameaçado de excomunhão e prisão, retaliado até com ameaça e morte, até finalmente passar um tempo fora do país, em asilo político nos Estados Unidos, onde seu celularzinho servia de câmera agora para os prédios da grande Nova York e suas orações e palavras de fé e solidariedade serviram a discursos para público político, jantares e alguns noticiários internacionais. A situação do Camboja e a injustiça não poderia passar totalmente impune. Ou poderia, vide a desgraça da ocupação e destruição das terras palestinas, envolvendo milhares, até milhão de pessoas?

Segundo estimativas, cerca de 95% dos cambodianos professam a religião budista. Ou seja, seguem preceitos e respeitam as colocações dos monges. Sovath era uma voz de liderança muito respeitada pela comunidade afetada. A simples presença dele encorajava os locais a lutar pelo que consideravam certo e justo.

"Logo não existirão mais pobres aqui. Eles não querem gente como a gente vivendo em sua bela cidade."

Para parte final do documentário, cenas fortes são registradas quando algumas da moradoras, sendo mães de crianças, haviam sido presas. Passaram meses fora, encarceradas e as crianças tomaram voz ativa, com uso de alto falantes e participações em protestos: além de defender as casas, defender suas matriarcas.

Isso lembra um filme nacional que falava que deveriam derrubar as pátrias pelas mátrias, trocando de forma inteligente a origem e o sifnificado geral da palavra. Interessante. As crianças, cada vez mais novas, lutavam por seus direitos, pelo direito à moradia e de voltarem a conviver com suas mães. Imaginem a agonia mútua entre essas diferentes gerações das mesmas famílias afetadas.

Outro ponto peculiar do filme sobre o Camboja é quando um representante do primeiro ministro do país, ou da prefeitura da capital, algo assim, reserva um discurso, um suposto acordo com os moradores, mas, quando convoca alguém para falar em nome da comunidade presente, escolhe uma pessoal com quase nenhuma relevância ou liderança para as moradoras. Essa pessoa leria uma carta de agradecimento ao governo. Ela é calada pela plateia que protesta sua eleição como representante popular. Isso ainda serve de pretexto para o político acusar os moradores de serem desunidos. Sendo que foi o governo que elegeu aquela representante, provavelmente com alguma espécie de propina, com a compra de sua opinião mediante alguma vantagem presente ou futura. As demais moradoras alertam para as câmeras: "bem que ela andava sumida. Deve ter se vendido ao governo". Quantas pessoas passam por situações semelhantes no Brasil e em outros países? Quando o dinheiro compra opiniões, votos e decisões políticas, seja de pessoas atingidas na moral, na qualidade de vida, ou até ou principalmente nos congressos entre os magistrados. Nas decisões de juízes subornados. Subordinados a patrões visíveis ou invisíveis.

O filme cambojano ajuda a explicar porque o Camboja, de quase 20 milhões de habitantes, aparece entre os Estados mais pobres, desiguais e pouco democráticos, corruptíveis na Ásia. Uma oposição direta aos bons resultados, por exemplo, da promixidade de Singapura, conhecida por altos padrões de tecnologia e redes de internet. Quando se observa de longe, se costuma arrematar países e populações com preconceito, estereótipos e unicidade, como se as pessoas também fossem diretamente responsáveis por seus governos e decisões. Porém, de perto, caso a caso, se percebe a imensa desigualdade, a falta de transparência, critérios e complacência com o povo. São milhões de injustiçados pelo mundo. Sejam trabalhadores em regime análogo ao escravismo, pessoas impedidas de voltar a suas terras e casas, de professar suas crenças e hábitos. Com olhos semicerrados, a ONU e outras organizações monitoram tristes episódios. Nós, sempre que possível, aqui abordaremos.

A nota final para o Doc Primavera Cambodiana, que inclusive ocorre em época muito semelhante, adjunta aos protestos iniciais brasileiros de 2013, ou da mais famoso Primavera árabe na Líbia, a nota final fica em:

🌟🌟🌟🌟🌟

Visto em Julho, 2025.

Disponível no MUBI

06/07/2025

Historia y Geografía (2023)

Um filme contemporâneo de Chile 🇨🇱. Direção de Bernardo Quesney. Uma atriz de televisão tenta voltar à ativa com uma peça ousada sobre a colonização do país andino. A história de sua peça teatral seria de como os povos originários derrotaram o saqueador e governador espanhol Pedro de Valdivia, um dos fundadores da capital Santiago.

Conhecida pelo papel de Huachita, uma personagem cômica de um humor grosseiro que passava na televisão do Chile, com desafios aos bons costumes, mas mais extravagâncias ao papel feminino do que críticas bem elaboradas. Assim, conhecida pela comicidade, Gioconda Martínez (Amparo Noguera) jamais era levada a sério. Qualquer projeto que ousasse fazer seria sempre castigado pela difamação de seu passado perseguidor. Com o intuito de movimentar sua vida financeiramente com essa peça, ela pede ajuda ao prefeito que buscaria a reeleição na próxima oportunidade. Pressionado por um possível afair passado, o prefeito destina a verba ao projeto, mas é apenas o começo dos problemas.

Treinar um grupo de atores teatrais, mesmo ou justamente porque possuíam experiência, selecionar o roteiro e os atores a cada papel são missões que estão fora do alcance da atrapalhada heroína, sempre perseguida pelas horrendas sombras do pretérito. Inimizades, conflitos sociais, raciais, envolvimento de imigrantes haitianos - tema comum para Rio Grande do Sul e outros estados brasileiros - aparecem na trama, que vai mais do constrangimento do humor do que um drama que se pudesse desenhar. Apesar do objetivo humorístico, a vergonha construída é imperial, causando o desconforto do que seria proposital ou não. Talvez aí esteja a mágica proposta por Bernardo.

A ideia de filme dentro de filme já foi abordada por este escriba recentemente ao relatar o longa Em Busca da Fome, de produção da Índia. Pois desta vez trata-se do velho tema da produção teatral dentro do espaço fílmico. Os ensaios, os dramas pessoais, os preconceitos apresentados por parte dos atores, os temperamentos explosivos são abordagens do filme de 2023. A vida dupla, a intromissão do pessoal no profissional, e do profissional no pessoal estão presentes.

Com diversos conflitos, do familiar às relações trabalhistas, os financiamentos obscuros, o valor da arte como temas marginais, o longa chileno perpassa a vida confusa da personagem principal, Gioconda Martínez. Habilitada diretora, Catalina Saavedra também aparece entre as atrizes do filme. Com polêmicas entre relações e algumas cenas de nudez, o longa encaminha seu final explosivo em mais uma bomba de constrangimento, o que lembra até a cena de palco do final de Substância- embora o norte-americano tenha sido lançado depois, diga-se.

É essencial não perder de vista a temática sobre a colonização, o abuso das autoridades espanholas para cima dos povos originários, situação comum com tantos países da América Latina, e sobre o Brasil com maior influência do desmatamento proposta pelas forças de Portugal sobre os indígenas. O termo indígena mais constantemente usado no Brasil, na abordagem correta chilena trata-se por povos originários. Embora no Brasil também ouça-se mencionar dessa forma, mas com predominância do uso "indígena" para designar os nativos.

É também essencial centrar a análise nos malefícios da fama, da baixaria apresentada em programas televisivos, na impossibilidade de passar uma borracha sobre passados vexatórios, tudo isso envolvendo a desarrumada carreira da constrangedora Gioconda Martínez, uma atriz decadente com delírios de grandeza, quando sempre que se apresenta lembrada é por situações estapafúrdias.

Nota final para História e Geografia (2023)

⭐⭐⭐½


04/07/2025

As batalhas até podem ser vencidas com falta de humildade, mas não por causa dela.

In Search of Famine (1981)

Em setembro de 1980, uma equipe de filmagem aluga um palácio para gravações, internas e externas, em paisagem do interior da Índia. Em volta do estimado castelo semi-abandonado, a população vivia em condições antagônicas, justamente o objetivo a ser mostrado pelas filmagens. In Search of Famine (Em Busca da Fome) é um filme indiano com direção de Mrinal Sen, um dos principais nomes deste Cinema Novo que surgia na Índia. Corretamente mediante pesquisas, influências corriam para aquele lado do mundo, como o neorrealismo italiano e as novas ondas da França que também respingavam ao Brasil; cinema com críticas sociais e elementos cotidianos.

Um filme sobre um filme também é um tema comum de apreciação dos críticos. Filmes assim fizeram sucesso como em Noite Americana, de François Truffaut ou também uma obra do alemão Rainer Werner Fassbinder, em que equipes de produção e direção e atores demonstram entendimentos e desentendimentos nos bastidores. Em In Search of Famine, um jovem diretor quer retratar as agruras da fome, em especial no período 1943, como consequências de guerra: elevação de preços e escassez de distribuição na produção. Enquanto a equipe se reúne uma noite em um quarto, é disparada uma frase derradeira: mesmo sem a Segunda Guerra adentrar em território indiano, sem tiros ou bombas disparadas, naquele ano de 43 morriam cerca de 5 milhões de bengalis, estes vítimas da Fome.

O desenrolar do filme expõe a diferença de classes, um cinema que, para ser produzido, necessitava de certas técnicas, equipamentos e orçamento, algo totalmente novo ou em falta nos arredores, na aldeia. A fome de 1943 não estava totalmente superada. Um jogo com isso ocorre durante outra reunião da equipe responsável pelo filme. Sem gravações naquela noite, a atriz principal propõe o jogo: adivinharem de que ano era cada foto. Notam as semelhanças entre 1943, 1959 e o período atual das filmagens: 1980. A fome não estava superada, como também não estaria nos próximos tempos hindus.

A diferença da vivência e dos valores sociais apresentados entre a equipe de cinema e os aldeões causa conflitos. Quando procuram uma jovem para desempenhar no filme o papel de prostituta, os empolgados indianos pelo cinema se voltam contra. Não querem que as filhas, que as moças da aldeia sejam representadas dessa forma. Nem cachê, pagamentos podem comprar essa parte da honra, em conflito, embora ali estivesse apenas o trabalho da ficção. A diferença nos costumes, na superação da fome também é evidente. Tensões sociais surgem, a polícia local por vezes é acionada para apaziguar qualquer tentativa de rebelião. O clima é adverso e causa reflexão nos trabalhadores da sétima arte.

Um sábio da região é convocado para aconselhar a equipe de filmagem e ele ganha destaque na parte final do filme, com visão muito apurada a respeito do panorama geral e dos possíveis conflitos surgidos a partir das diferenças entre as castas indianas. Escutar o velho sábio é entender o objetivo do cinema em Mrinal Sen. O filme dentro do filme cumpre seu objetivo. Um dos baratos dessa temática é exatamente embrulhar, misturar na mesma panela a realidade e a ficção. Muitas pessoas não gostam da mistura de gêneros cinematográficos, quando acusam filmes de não terem roteiro definido, mas considero o mix de sentimentos e temáticas justamente o plus para essas obras. Não saber onde começa ou termina realidade e ficção é o feito maior dessas iniciativas. O filme dentro do filme, o rompimento de paredes pode ser um acerto arrematador. É o caso de Em Busca da Fome, obra em cinema já colorido, diferente dos anteriores vistos de Mrinal Sen, em Entrevista e Calcutá 71. Porém, todos foram aprovados com aclamação de notas.

Nota final para In Search of Famine (1981)

⭐⭐⭐⭐½

03/07/2025

A Garota da Fabrica de Fósforos (1990)

Um filme bem ao estilo do finlandês Aki Kaurismaki, cineasta de diversos lançamentos, do drama e da comédia. Neste filme de 1990, a personagem principal é Iris, uma adulta que vive com os pais, trabalha exaustivamente na maçante missão de comandar uma esteira de caixas de fósforo. Quando tenta se divertir, não é notada pelos homens; quando recebe seu salário, mira um bonito vestido colorido em uma vitrine, o compra, mas é reprimida por seus pais; o velho o chama de vagabunda e a mãe prontamente adverte que ela devolva à loja.

Apesar do aviso, a loira Iris vai a uma festa com o vestido e chama a atenção de um homem esquisito. O breve relacionamento deles é um tremendo fracasso, conforme ele revela, em encontro seguinte, que nada mais lhe dava pena e desinteresse do que o amor que ela sentia; Iris fica arrasada. Mas tudo poderia piorar na crueza deste filme de Kaurismaki, conhecido pela ironia, destinos trágicos e atrapalhados de seus personagens marginais. Iris descobre estar grávida. Apesar da represália sofrida pelo antes companheiro, ela escreve uma carta e lhe entrega em mãos. O homem é categórico na resposta: livre-se do filho.

Socialmente analisada, a condição de Iris é de uma trabalhadora sem perspectiva de crescimento na empresa, com dificuldade para fazer amigas, não recebia apoio sequer de casa, por onde não é explicitado, mas provavelmente era considerada uma solteirona sem solução. Ao se acidentar, parar no hospital e tomarem conhecimento do azar de ter engravidado no único encontro em que isso era possível, os pais de Iris desejam que ela deixe a casa e arrume outro lugar onde morar. Ela até conta com ajuda e começa a bolar seus planos de vingança contra os que a humilharam em sua trajetória.

É um filme cru, na crueza e na crueldade, um filme frio como o clima portuário e provavelmente ventoso da Helsinki, capital finlandesa, confins de parte do mundo coberto de gelo. A atriz Kati Outinen, que realizou outros trabalhos com o diretor Kaurismaki, dá vida a uma personagem quase inanimada, uma espécie de Macabeia, da Hora da Estrela de Clarice Lispector, em plena terra antes pertencente aos russos (incluso as Lispector sendo de origem ucraniana, pois mirem a coincidência a que se chega).

Iris precisava de pouco para se contentar: uma refeição simples, um café, um ombro amigo, um homem que a notasse, a consideração e o respeito familiar. Ao perder cada sonho, degrau a degrau, a saída definitiva foi mirabolar planos de vingança aos desafetos. Em uma cruzada feroz por Helsinki, Iris não deixaria barato sequer para futuros homens interessados em sua pessoa: desejos de vingança completa. Mas, é claro, vindo do podador de sonhos Kaurismaki, nada de brilhante e excepcional, apenas a vida sendo coberta como um campo pela geada. As trilhas sonoras típicas contribuem para isso.

Nota final para Garota da Fábrica de Fósforos:

⭐⭐⭐⭐

02/07/2025

Calcutá 71

Segundo filme assistido de Mrinal Sen, Calcutá 71 foi lançado no ano seguinte ao nome, ou seja, 1972. O longa de mais de duas horas inicia como uma sequência do final de Entrevista (Interview), com um tribunal que julga o caso do personagem principal, Ranjit Mallick, que destruiu a fachada de vidro, a vitrine de uma loja de roupas, quando se vingava do terno que o manequim usava e ele não possuía em mãos para realizar a devida entrevista, derradeira para os rumos de sua acanhada vida.

O manequim estava convocado ao júri como vítima, testemunha da ira do revoltado Mallick, julgado entre as barras de ferro de uma ridícula jaula. O filme, na verdade, não se foca dessa vez nas peripécias do rapaz. Ele desenvolve um panorama da vida na Índia, em que a pobreza, a miséria e as dificuldades de sair delas são o epicentro da trama. Ao longo de décadas e mais décadas uma família ilustra a desgraça da estada indiana, em que se pode ressignificar inclusive a chuva feroz que muitos atribuem ao aclamado filme Parasita (2019).

A família de indianos sofre com a desproteção em uma noite chuvosa. As telhas não dão conta, a água infiltra pelo cômodo onde todos os familiares tentam dormir, uns ainda aconchegados, outros em vão na luta contra a força aquática. Os guarda-chuvas também não suportam a pressão da água sobre suas cabeças. A única solução naquela periferia, uma espécie de favela com pequenas casas conjuntas, era abandonar a residência. Assim a família de pai, mãe e filhos junta poucos pertences, o cachorro, e partem para tentar alcançar um local seguro. Lá, se defrontam com várias pessoas na mesma situação. Abandonaram suas casas e se reuniram em tentativa de abrigo da devastadora tempestade. O pai era o mais conformado, mas também o mais surpreso: "quanta gente!", é o que se resume a dizer.

Na ilustração da passagem do tempo, o filme avança décadas, o que postula a dúvida se a saída da ocupação britânica realmente libertou os indianos. Se as agruras da vida permaneceram sobre outras formas de dominação, seja pelo capitalismo tardio, na tentativa de imitar ocidentais, ou mesmo na invasão desses ao lograrem suas multinacionais que comandam, exploram recursos, trabalhadores e espaços fisicos dos indianos. A miséria de uma família que já não contava com o pai de família é postada em um dos capítulos em que um parente distante os visita. Ele viajou de trem de Nova Déli para Calcutá, a cidade escolhida maior para trama. O parente se surpreende com a desgraça que assola os conhecidos, permanecendo como espectador que pouco tinha a se meter e a contribuir durante sua curta estadia em Calcutá. Briga entre vizinhas, entre a mesma família, desentendimento digno de recordar novelas brasileiras, tudo na gravação de orçamento simples feita no alvorecer dos anos 1970. Na hora que o básico falta, qualquer boca a mais a ser alimentada, ou cama a ser improvisada, pesa e vira motivo para desavença.

A impressão desse filme é de uma espécie de Cinema Novo, como o proposto por Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos no Brasil, ao ritmo dos bengalis. A extrema pobreza, a terra inexplorada pelos nativos, assim improdutiva a seus consumos, o desespero que se sobressai a quaisquer possíveis luxos ou escolhas. Se destaca no capítulo da miséria familiar a informação que corria sobre pessoas que lutavam para ter uma única refeição, mendigos, pedintes que morriam de fome a cada dia e, principalmente, aqueles que, ausentes da possibilidade de comer a simplicidade do arroz, se contentavam em beber a água que havia fervido o arroz. Beber a água do arroz, para muitos, era a única refeição. Quantos milhões de indianos desprotegidos de chuvas, desalimentados do sustento básico?

Seguindo a saga do arroz, um menino sai para tentar a sorte entre cidades com um único saco de suprimento: um saco de arroz. Ele era contrabandista do estimado produto. Junto a outros meninos, viajava de trem para transportar a mercadoria. A polícia estava de vigília e prometia a apreensão do contrabando e dos jovens obrigados a trabalhar como única maneira de driblar a fome. Algo visto em transformações sociais que lembram também os entregadores que transportam marmitas, lanches a grandes distâncias, mas ao mesmo tempo são impedidos de comer. Os "contrabandistas", como chamados pela polícia, se amontoam em vagão com adultos, são desamparados pelas leis, por elas apenas perseguidos. Convivem com adultos, provocam e apanham de adultos, vivem à margem de entrar sem pagar passagem e tentar fugir pela estrada dos trilhos, mesmo que os salvadores trens também possam servir de algozes, ao tentar cortar distância entre vagões enquanto os mesmos estão em movimento: um desequilíbrio pode ser fatal. É a vida de caminhar sobre brasas, sobre lâminas de facas, fazer malabarismo com canivetes para sobreviver; um dia a mão escapa.

Continuação da saga indiana nas lentes, na direção de Mrinal Sen, que dessa vez não assina o roteiro, a cargo de Samaresh Basu, Manik Bandopadhaya e outros, Calcutá 71 é o retrato da época setentista, mas com advertência da frase que encerra/abre cada capítulo, em imagens do filme trazidas abaixo. 

A nota final de Calcutá 71 repete Entrevista:

⭐⭐⭐⭐⭐





Interview (1970)

Filme da Índia, Interview é uma produção muito interessante. Traz imagens da época, de como era uma grande cidade indiana, no caso Calcutá. O personagem principal é um ator de verdade, o jovem adulto Ranjit Mallick. Ele vive com a mãe e com a irmã. O filme consiste na preparação de Mallick para a entrevista mais importante de sua vida, quando um tio lhe garantiu uma oportunidade de emprego. Tendo experiência com jornais, o jovem considera que a oportunidade estava no papo e que a entrevista seria apenas mera formalidade.

Em preto e branco, o filme lembra outros clássicos da época, produzidos, por exemplo, em França e Itália, os maiores vencedores de Oscar estrangeiros e de demais festivais na época. A direção e a assinatura de roteiro ficam a cargo de Mrinal Sen, diretor bengali que esteve vivo até recentemente, com sua morte ocorrida aos 95 anos.

Ao longo do dia, Ranjit Mallick passa por muitas peripécias, tendo em conta de que a missão que parecia simples, torna-se complexa. Desde atividades simples como fazer a barba e arrumar o cabelo até procurar seus amigos para conseguir terno e sapatos adequados, a principal tramoia do filme. A crítica social final é deveras válida, sobre como a sociedade capitalista, ainda mais no capitalismo tardio indiano, em meio a engatinhar pós superar a sugativa ocupação britânica, levava em conta a aparência acima das qualificações. A dificuldade para um jovem sair da vida extremamente simples de viver com a família em busca de um emprego em uma considerada importante multinacional - no começo do filme, o tio de Mallick afirma que os investimentos vinham da Escócia - também levantando a questão de até que ponto havia superação do domínio britânico.

O fluxo das vias, o trânsito desorganizado, os becos e pequenas ruas onde milhares de pessoas vivem, os bondes e os barbeiros abarrotados do vai e vem diário. A busca pela aparência correta, por um bom nó de gravata, por um terno sob medida - visto que o do pai de Mallick não lhe servia, o pai tinha muita pança e sobravam as calças.

Mallick se envolve na denúncia de um pequeno assaltante em um bonde e acompanha as testemunhas até a delegacia. Nisso precisa registrar rapidamente a queixa e ter tempo de realizar a entrevista na pontualidade das três da tarde. O terno torna-se o grande problema, pois o aspirante ao emprego esqueceu-o no vagão. Como recuperar o tecido perdido? Telefonar para quem? Quem poderá lhe socorrer?

Em instantes no filme, nas técnicas também ensaiadas no cinema europeu, Mallick rompe a parede, como é dita a expressão, e conversa com o público. São momentos interessantes de críticas sociais e questões suscitadas para audiência, convocada a participar. É o primeiro de uma série de alguns filmes recuperados de Mrinal Sen para assistir nos próximos dias. Sem promessas, novas críticas podem ser apresentadas na desbravação do cinema do agora país mais populoso do mundo, ao recentemente superar a China. 

Nota final para o filme Entrevista, dos bengalis:

⭐⭐⭐⭐⭐