30/06/2025

Huo Zhe (1994)

Filme chinês dirigido por Zhang Yimou. O título em inglês ficaria To Live. Em português, Tempo de Viver. É uma obra complexa em suas 2 horas e 12 minutos.

O personagem principal é Fughi (You Ge) e inicia com a trajetória nos anos 1940, tempo da Segunda Guerra, com o exército a recrutar combatentes contra os japoneses. Fughi é um jovem pai de família, pouco dedicado à esposa Jiazhen (Gong Li) e à sua pequena filha e, nas dificuldades de obter renda e sustento, é viciado em jogos de azar: jogo de dados. Ele aposta em demasia mesmo que a esposa o alertasse. Acaba por perder a casa onde vivem, propriedade que era de seu pai, então ainda vivo. Abatido, adoentado com a desgraça da perda, o pai ainda o condena pelas palavras, sofre um ataque e cai morto. É apenas o início do drama. Em seguida, Fughi precisa ir para frente de guerra, em meio à neve do inverno e com outros combatentes. Aprende os extremos da vida, vê batalhões inteiros serem dizimados. 

Capturado pelos japoneses, sua arte em lidar com fantoches chineses entretém os guerrilheiros adversários, que poupam sua vida. Ele finalmente conseguirá voltar para casa. No tempo em que esteve fora, enquanto sua esposa se desdobrava para manter a família, sua filha teve uma doença grave, com a qual infectou a garganta e perdeu a voz. Seu filho pequeno, com o qual a mulher ameaçava abandonar Fughi, já está caminhando. Uma reviravolta é quando o apostador de dados que herdara a casa de Fughi é acusado por conter a propriedade privada diante do novo regime, da revolução chinesa que colocou Mao no poder. Se não tivesse perdido a casa nas apostas, Fughi igualmente perderia a propriedade para a requisição do Estado. Sem entregar a casa, o apostador foi condenado a ser baleado.

O filme transpassa as décadas e traz temáticas comuns à vida chinesa. O desenvolvimento comunitário, as restrições e regulamentos do regime comunista, a expansão econômica através da demasiada produção de aço; o trabalho infantil denotado disso. O drama familiar de encarar a adversidade aos filhos, o machismo que delegava às mulheres uma posição submissa e de casamentos arranjados; uma sociedade que migrava do predomínio agrário ao industrial; o vício nos jogos de azar, prática comum também ao mundo ocidental. A dificuldade para manter um relacionamento diante desse vício; a travessia de gerações, desde a morte do pai de Fughi até o desenvolvimento de seus descendentes.

O drama é bastante forte em algumas partes do filme. O humor é escasso. A base do filme é o desenvolvimento de situações adversas para serem superadas, agoniadas, vividas e talvez vencidas por Fughi e sua esposa. Drama familiar que acompanha o desenvolvimento, as controvérsias do regime chinês. Não é uma crítica grosseira, escrachada, traz sutilezas, suscita dúvidas, amplia debates, se inscreve nas diretrizes do que o povo chinês passou e pode passar, com bons e mau momentos, alternados como a vida. Da alimentação básica à necessidade de regulamentações no trabalho, de que a expansão não pode ser a qualquer custo, ao custo de vidas humanas, da necessidade de que a saúde seja enxergada com mais prioridade, mais carinho e dedicação pelo governo.

Apesar de lançado em 1994, passados 30 anos, o filme chinês ainda abre e reabre debates sobre ideologias políticas, erros e acertos, repercussões que podem ser feitas abertamente onde não haja restrição da possibilidade de críticas: e no Brasil há possibilidades, tanto que aqui são publicadas essas análises. Analisar que o Brasil não possui liberdade de expressão, ou que ela esteja ameaçada e controlada nas redes, é um equívoco interpretado por quem defende, provavelmente, quem se beneficia pela propagação de mentiras e difamações criminosas. A regulação é contra crimes contra outrem, não para restringir o uso da opinião; é para criminalizar crimes de ódio e leso a minorias sociais e indivíduos, não para encerrar debates e possibilidade de oposição. Para quem tenha dúvida sobre a impossibilidade de oposição, que assista aos momentos deste filme em que Mao não pode ser criticado, que o regime não possa ser duvidado ou rebatido, com a pena prevista até a morte ou a prisão definitiva. Isso sim caracteriza restrições máximas dignas ao caráter de ditadura. Esta semana também foi tempo de conferir um novo filme brasileiro sobre a ditadura militar (1964-1985), chamado A Batalha da Rua Maria Antônia, em que a polícia militar certa prédio e combate estudantes universitários e secundaristas durante o ano de 1968, na capital São Paulo. São exemplos de episódios ditatoriais, diferente do que alegam sobre a história recente em regulação de redes sociais no Brasil. 

26/06/2025

Inverno Litoral

As ruas no inverno enrugadas 

E as folhas desfraldadas 

Pelas calçadas 

E os esgotos na cidade ninguém conserta

E pelas ruas um carro não dá a seta

E a cidade assim tão deserta


A umidade, a pista molhada

As dunas crescem sem adversário

A fauna hiberna escondida

Só surgirá quando estiver esquecida


Dias cinzas, guarda-chuvas duplos 

A tarde vai vestida de luto

Amiga é um café, um café, um suco

A marca da roupa, o preço, insulto 

As marquises, guarda-chuvas, tumulto


No inverno quase zero movimento

Ruas vão mal iluminadas

Asfalto esburacou pro porto

Lá é caminhão a torto e a direito


Containers contém os IOS

A preços que o pobre não merece

Que o rico taxa 

Não paga e se esquece


As ondas da maré que abocanha 

A duna que é o abrigo dazaranha 

O som que não falha hasta mañana 

O som que não falha hasta mañana


25/06/2025

Adeus, Pai (1996)

Sigo rendido ao cinema de Portugal. Um pouco surpreso, um pouco não, porque um país com tantos conflitos, contradições históricas e sanguíneas, formado e influenciado por diferentes povos deve ter o que contar. O diretor Luis Filipe Rocha provavelmente investe no autobiográfico para contar a história do pequeno Filipe, que sente o pai ausente e, somente aos 13 anos, corre atrás do tempo perdido com seu progenitor. Na verdade, o pai sente que tem um filho e por isso tira férias do escritório de advocacia e ministra um tempo com Filipe em uma viagem especial para o arquipélago dos Açores, região com entre 200 e 300 mil habitantes, conhecida por simplicidade, destino para vacaciones e belas paisagens. Arquipélago que resultou em muitas navegações e colonizações passadas.

Tema presente para Portugal, a relação com as colônias africanas também é abordada. É um motorista que de lá veio. Há também um cadeirante que na guerra foi salvo por um africano, após ter matado muitos nativos. O africano que salvou o cadeirante, conduzindo-o por dois dias em seus esforçados ombros até o acampamento mais próximo, pediu para que o deficiente nem lhe agradecesse. Pois o ferimento e a lástima pelo que havia feito no território o acompanhariam para sempre. E assim ele segue a contar essa passagem para todos que o conhecem. Sujeito que dessa forma ganhou o apelido de Rodinhas. "Dito isso, alguém quer pagar uma cerveja ao Rodinhas aqui?"

Filipe apaixona-se por uma violinista um pouco mais velha, chamada Joana. O irmão de Joana logo percebe, tendo 14 anos e nenhum pudor, o irmão da rapariga passa a ensinar conselhos amorosos ao garoto, enchendo-lhe de ideias novas, desde masturbação a tentar entender a cabeça das mulheres. Assim desenvolvido no assunto que lhe faltava com o pai, Filipe passa a conversar com o velho sobre esses temas, causando embaraço, constrangimento, mas também divina aproximação. Ele entende o conflito de sua geração. O pai trabalhava no escritório do sogro e se encantou pela que seria a mãe de Filipe. O menino já entendia como funcionava o processo. Com a filha grávida do mero estagiário, o avô de Filipe não queria ganhar o neto. A moça contrariou a decisão e resolveu ter o bebê: assim nasceu o protagonista Filipe, filho de um estagiário em advocacia e da filha do responsável pelo escritório.

Em diálogos duros e frios, o pai explica a Filipe que na época preferia não tê-lo, que sentia que filhos prendem as decisões da vida. Tudo é abordado de uma forma de tamanha crueza. O menino, porém, reage bem e o aprendizado faz parte de seu desenvolvimento, cativando também muita empatia por parte do público.

O filme com foco no amadurecimento traz Filipe diante de seu primeiro amor, vindo à primeira vista. O aprendizado que ele tem com um adolescente mais velho do que ele, o safado irmão de Joana. A comparação com outras histórias: a proprietária da casa que alugaram havia perdido o pai, marinheiro, quando ela tinha apenas três anos - de nada lembrava, embora guardasse quadro, pintura e boas impressões do misterioso homem o qual a gerou. Já o pai da adolescente Joana tinha se apaixonado por outra mulher nos Estados Unidos e deixou os filhos. Filipe passa a perceber que sua história não era perfeita, mas a das pessoas à sua volta muito menos, tampouco. Por que não dar nova chance a quem ainda estava com ele? Como escolher entre a família próxima, com sua mãe e sua avó com que ele morava ainda em Lisboa, e o repentino e fortificado amor sentido em relação a Joana? As escolhas e renúncias são tema crucial no filme de Luis Filipe Rocha. 

Um Portugal que também amadurecia, agora em corner da Europa, sem impérios além-mar, reflexivo sobre os Açores, cercado de água, limitado por terra pela Espanha. Um Portugal com seus escritórios onde percorrem dinheiro dos ouros que de Brasis levaram, mas com novos filhos para criar, meio a novos africanos, velhas paisagens, velhas histórias, novas impressões. Outra vez rendido ao cinema português.

Nota final: ⭐⭐⭐⭐⭐




19/06/2025

Será que os pássaros percebem a beleza que eles veem 

E que gostaríamos de ver?

14/06/2025

Notas sobre Fernanda Young

Descobri a Ana Amaral, Fernanda Young no documentário recente (2024) sobre sua vida, roteirista, escritora que se almejava e considerava assim desde antes da alfabetização. Criativa, rebelde, reconhecendo em si a crítica de que poderia ser egocêntrica, mas quem não é? Lidar de frente com isso é honesto e a palavra que marca sua trajetória: coragem.

Coragem não exclui o medo. Só não sente o medo quem está totalmente medicado, drogado ou já é louco de pedra. Nós com discernimento não somos assim. Fernanda era corajosa. 

Viveu entre Niterói e Rio de Janeiro, realidades que ela postulou como próximas e distantes. Aponto palavras e termos que ela própria usou, como autobiográfico. Acho interessante assim, porque rotular os demais é perigoso e quase sempre um tanto injusto. Lamento ou não pelas vezes em que faço isso e também somos vítimas.

O documentário traz passagens frasais de sua vida e história. Dá vontade de conhecer mais de sua obra. Até a inspiração desde os desenhos mais ou menos toscos que fazia, pois ela destaca: os desenhos vêm (na vida das pessoas) antes da palavra escrita. Isso é bem verdade. Seja na história da humanidade, das pinturas em cavernas, ou na vida dos bebês, das crianças, que antes podem desenhar ou reconhecer desenhos do que escrever o próprio nome. 

A relação dela com a procura de definições e situações para o amor é tema de autores, músicos, escritores, artistas que veneramos. Em certa altura ela questiona se do vazio enquanto não se ama brotam sentimentos negativos. E não é assim que vivemos e passamos o tempo amargurado em sociedade? Nos preocupando e enchendo-nos de distâncias, ânsias e repúdios; repugnar. 

Ela almejou por um tempo de diversão em que não houvesse reticências. E concluiu sobre a liberdade e a cura. De um coração quebrado, a cura é enxergar que não mais se espera pela perfeição que nem existe. 

Entre a idealização social da noiva vestida, se deseja na verdade a nudez. Abaixo das maquiagens, das fotos, dos sorrisos falsos, há um ser muito mais complexo. A liberdade é se desprender da imagem que a sociedade impõe. Fernanda enxergou isto.


12/06/2025

Primeiros filmes de Kiarostami + Clerks (1994)

Acompanhando uma coletânea com todos os filmes do diretor iraniano 🇮🇷 Abbas Kiarostami, as conclusões referentes aqui se devem até o 7⁰ filme do especialista. Ele iniciou a carreira com curtametragens de baixíssimo orçamento passou a desenvolver mais técnica, estilo e maior tempo de duração aos seus projetos. Em destaque, o 7⁰, primeiro com duração superior a uma hora, é O Relatório (1977).

Abbas tem características onipresentes em sua obra, na preferência de trabalhar e contar histórias a partir de personagens crianças ou, mesmo quando adultos, inocentes. Assim foram seus primeiros curtas, de um garoto perdido em um bairro desconhecido e de um garoto que isolou a bola de futebol dos amigos e fugiu para não sofrer as represálias, se escondendo e depois peregrinando pela beira de uma estrada. Em outras obras, destaque para O Terno do Casamento, o mais hilários dos vistos até aqui. Esse considerado média metragem de quase uma hora envolve garotos em seus serviços de aprendizes, mas, como nem sempre frequentavam escolas, seria considerado trabalho infantil na sociedade de hoje em dia. No Irã urbano, tratando-se da capital Teerã, muitos garotos, ao invés de estudar, se dedicavam a ofícios de ajudante, garçons, caixas, officeboys, serventes, vendedores e, no caso, ajudante de alfaiate.

Em O Terno do Casamento, um garoto com sua mãe encomendam um terno para ficar pronto na quinta-feira, quando haveria a consagração de um matrimônio na família. Outros dois garotos pedem ajuda ao ajudante do alfaiate para que este os alugue o terno antes que os clientes regressem e o levem em definitivo. Ou seja, queriam o terno na quarta-feira. A trama gira em torno dos pequenos inventando histórias e tentando sabotar um ao outro para que o ajudante do alfaiate os escolha para o empréstimo. São dois garotos disputando um terno, que, como visto, pertencia a nenhum deles. Várias peripécias até que se decida o vencedor, como farão para pegar o terno escondido, usar e devolverem até a hora limite da data limite. Suspense e emoção.

No curta chamado Experiência, um garoto, órfão, 14 anos, sem perspectiva na vida, trabalha num estúdio de fotografia, aceitando o abuso de autoridade por parte de seu chefe, que o deixava morar e dormir na loja, ao mesmo tempo em que nisso não havia conforto. A história cambia de rumo quando o garoto conhece uma adolescente de uma casa de classe média alta e deseja trabalhar na casa para ficar junto de sua obsessão. Verdades cruas pela frente nessa história de Abbas. Mais uma vez a crítica à sociedade e os sub-empregos, sub-condições sub-urbanas para jovens sem escolaridade e perspectivas. 

Finalmente no longametragem O Relatório, os empregos são criticados nos escritórios, na burocracia e na corrupção em que desenvolvem suas ocupações no serviço, seja privado ou público. O assunto do suborno, se deveria ser aceito ou não, percorre a trama. Um funcionário folgado e que também tomava conta de um cassino nas ausências de seu colega começa a ver o seu mundo desabar quando escorrega no emprego, é acusado, coagido e vê seu casamento ir por água abaixo em uma escalada de enlouquecer. Aluguel do apartamento atrasado, má relação com a esposa e mais os gritos da filha pequena tornam insustentável a situação na crise daquela meia idade. Recorrer a contatos obscuros ou à bebida em um boteco não parece suficiente para salvar o protagonista da catástrofe anunciada, ladeira abaixo no departamento do qual fazia parte e no casamento. Até é cômica a passagem em que leem sua situação de que não estaria todavia demitido, mas apenas "afastado por um tempo". Nuances e figuras de linguagem pata suavizar o caos no serviço burocrático.

Finalmente no drama/comédia norte-americano chamado Clerks (1994), dois jovens de 22 anos, Dante e Randal trabalham em lojas pequenas. Dante em uma lojinha de conveniências, frequentada por viciados em cigarro, pervertidos e clientes com perguntas idiotas, enquanto Randal é um atendente folgado em uma pequena locadora de vídeos, profissão inclusive praticamente abolida da humanidade à esta altura do século 21. Mas em 1994 ainda era comum e estava em alta.

Dante detesta sua rotina. Sonhou com o descanso no sábado da sua escala 6x1 (olha, temas atuais) para jogar uma partida de hóquei com os amigos, mas seu chefe o convocou para abrir e cuidar da loja durante a manhã. Período que se estende para tarde, impossibilitando o jogo e seu possível tempo com a namorada Veronica (alô, 12 de junho).  Até é interessante a escolha de nome do personagem. Dante estaria frequentando uma das etapas do inferno? Inclusive esse livro aparece em outro filme visto recente, um português chamado À Flor do Mar, de João Cesar Monteiro, mas esta é outra história.

Dante está insandecido pelo dia desgraçado que está levando e Randal, embora um grande amigo para ele, não consegue melhorar as notícias e atuações, mas muito pelo contrário. Randal, que trata mal seus clientes, fala pornografias, chega a cuspir em um senhor e, no que complicará Dante adiante no filme, vende cigarros para uma garotinha, este personagem honorário de tantas besteiras desempenhadas é o retrato de um jovem sem ambições na vida, que aceitou a cercania das desgraças e apenas tenta tirar proveito das situações como pode, ironizando os demais, tirando sarro e procurando trabalhar o mínimo possível nas funções às quais foi delegado. Dante, por outro lado, nota-se ainda ambicionar-se, seja no que aspira em sua relação com Veronica ou como trata de um ex-caso seu na escola, com uma moça que ele descobre, por meio de Randal e um anúncio de jornal, que estaria noiva de um asiático que trabalha no ascendente ramo de design. Portanto, Dante ainda possui ambições em relacionamento ou deixar o seu subemprego no subúrbio da cidade não nomeada, mas que, em descoberta de uma passagem policial, seria pertencente ao estado de Nova Jersey. 

O final do filme une as peripécias e críticas propostas por Kiarostami no, por vezes aliado, por vezes inimigo dos Estados Unidos, o Irã. A crítica ao tratamento e oportunidades destinadas aos jovens, sobretudo os de cidades menores e monótonas ou de cidades grandes, mas que não acompanham o universo dos estudos. E, mesmo os que estudam, como poderiam acompanhar o ritmo dos melhores empregos em sociedades tomadas pelo nepotismo, as corrupções e burocratas? E o desfecho dessa droga toda? Randal, que apesar de sarcástico, transbordava muitas verdades na cara de Dante, como reza a lenda assim um amigo deve ser, sem passar a mão no cabelo diante das desgraças que se avizinham, este personagem interpreta as falas colocadas abaixo da crítica/resenha, com reflexões que podem ser feitas por quem viu os filmes ou apenas leu estas pretendidas linhas que esperam ser lidas por ínfimo público no mundo, a exemplo de locadoras péssimas ou lojinhas de conveniências, ou departamentos escondidos em repartições públicas, ou cúbicos onde trabalham alfaiates, estúdios fotográficos e seus ajudantes menosprezados. Estamos todos juntos nessa droga, Randal. 

Primeiras obras de Abbas Kiarostami variam entre
⭐⭐⭐⭐ e ⭐⭐⭐⭐½

Clerks (1994)
Direção se Kevin Smith
⭐⭐⭐⭐






09/06/2025

Todo Modo (1976)

Com elenco recheado de estrelas do cinema italiano, o longa (2h05) Todo Modo, com direção de Elio Petri, conta os entrelaços de igreja e política na Itália. De forma humorada e exagerada, a tensão ora cresce, ora se dissipa quando figurões da política e da religião Católica se encontram em exercícios de fé, em uma espécie de retiro, distante dos holofotes dos jornais e das grandes cidades italianas.

Após a queda do Fascismo com a derrota na Segunda Guerra Mundial, a Itália passou a ter dois partidos de maior força, um mais progressivista e outro mais conservador, sob a doutrina e a asa da Igreja Católica. Sem usar nomes oficiais sequer para identificar qual seria o Partido do filme, a ligação é evidente. Quando mencionam durante todo o filme sobre afirmados 30 anos de poder, é ao conservador que se referem. Justamente o tempo entre a queda da Segunda Guerra e a realização do filme de Petri. 

Os velhos brancos, engravatados e de terno se reúnem em um fim de semana para rezas, mas também, cada qual tramando em seu quarto, para um perigoso jogo de gato e rato em acerto de contas. Dom Gaetano é o padre principal que organiza o cronograma e as realizações cristãs do encontro. Logo ao começo uma cena entre ele e o dito Presidente (provavelmente mencionado assim por dirigir o Partido) dá indícios de uma relação homossexual entre ambos. O filme é repleto de sátiras. 

Os políticos e religiosos lavam as mãos nesses encontros. O Partido é tomado por donos de empresas, banqueiros, empresários e influenciadores do sub-mundo financeiro. Do meio para o fim da história aparecem, também de forma satírica, uma verdadeira salada de siglas para tentar compreender quais empresas estariam envolvidas e na reta dos escândalos. A tensão passou a tomar conta quando ocorre a primeira morte. Um investigador é contratado para entrar em cena, enquanto o escândalo ainda é abafado das famílias, dos populares e dos jornais.

Tão logo chega o investidor, os homens de terno demonstram seus temores, suas inseguranças, no velho ditado de quem não deve, não teme. Mas como ali estão figurões dos mais corruptos da Europa, o aspecto de máfia se sobressai e o pânico se instaura. A crítica proposta é conhecida pelos problemas de corrupção que a Itália sempre atravessou, além de burocracias e nepotismos, heranças que parece terem sido bem transportadas com os imigrantes ao nosso Brasil. O nepotismo aparece com maior força em cena para o final do filme, quando cobranças de esquemas vêm à tona e ninguém mais mantém a calma durante o alarido das investigações e consequências.

A ligação entre igreja e política denuncia tanto uma instituição quanto a outra, a do Partido. O próprio Dom Gaetano afirma que se a Igreja Católica logrou êxito nos últimos séculos foi mais por competência dos padres ruins do que dos bons. O suficiente para bom entendedor.

Além dos escândalos financeiros e da possível tentativa de eliminar denunciantes ou opositores, ainda percorrem o filme os escândalos sexuais, outro tormento para as instituições lidarem e se protegerem das investigações e da opinião pública. O comentário sobre o filme vem em imaculado momento, pois recém divulgaram-se os dados sobre as religiões em território do Brasil, com o catolicismo ainda sobressaindo na casa dos 56% das pessoas, queda em relação a outras pesquisas, mas o suficiente para manter vantagem sobre o crescimento dos evangélicos, já representantes de pelo menos um quarto da população brasileira. Os sem religião representariam cerca de 10%.

A ligação entre Igreja e Estado (Política) no filme italiano denuncia as hipocrisias, farsas, inaptidões e desinteresse dos engravatados pelos reais problemas de sua população, enquanto miram lucro e boas relações interpessoais para vantagens exclusivas. Em um momento de crise, após o estopim dos problemas no encontro, alguns dos políticos discutem os problemas e se não seria vantagem então pular o muro rumo à oposição, pois os riscos de permanecer no Partido em crise eram evidentes.

Escândalos financeiros, interpessoais, acusações, falsidade, escândalos sexuais, tentativa de manter a ordem e as práticas de doutrina: tudo isso se encontra nas confusões reservadas ao filme Todo Modo, nome importante e que deve ser prestado atenção para descobre os enigmas que envolvem essas corruptas instituições mandatárias secularmente na maior parte da Europa, antes mesmo de unirem os fragmentos e a Itália ser Itália, visto que o país é relativamente novo, saindo dos impérios e denominações feudais rumo às fragilidades ditas democráticas.

Drama, comédia, suspense e até o terror dos cadáveres estão reservados em Todo Modo, um filme que desafia as instituições regulamentadas a exercer o poder, denuncia práticas obscuras sem citar nomes oficiais, apenas alguns símbolos, sem crucificar quem já não estivesse crucificado há quase dois mil anos do prazo de lançamento em 1976. Aventura sagrada e profana muito bem-vinda na exploração de diferentes temas.

Nota final: ⭐⭐⭐⭐½

05/06/2025

Doente de si mesma + A Substância

O filme norueguês "Doente de mim mesma" (2022, direção de Kristoffer Borgli) é comparável ao de maior sucesso recente, A Substância (Estados Unidos, 2024, direção de Coralie Fargeat). No filme escandinavo, Signe tem um relacionamento competitivo e pouco saudável com Thomas. Mas tudo vem a piorar.

Com problemas familiares e necessitada de atenção e sentimento de sucesso, Signe procura uma saída rumo aos holofotes ao tomar um medicamento russo, estrangeiro, proibido, que causa feridas severas no corpo. Ela toma em overdose e isso a coloca à beira da morte e com uma condição cutânea das mais lamentáveis. O aspecto grotesco acompanha o desenrolar do filme. À medida que o espectador se acostuma, os movimentos do filme até se tornam cômicos pelos exageros. Os personagens são caricatos e extravagantes. Signe é, na verdade, uma mentirosa compulsiva, que forja sua própria doença através dos desconhecidos medicamentos, não identificados pelos poucos médicos com os quais ela consulta, justo que não queria curar-se, pelo contrário. Passa por algumas internações, exames e sai enfaixada para ocultar as graves feridas.

O filme então questiona diferentes pontos da sociedade. O traficante de classe média que mora com a mãe e fornece as drogas para protagonista. Também oportunista e mentiroso compulsivo, ele justifica o envio de pornografia para Signe pois teria supostamente conhecido uma garota por aplicativo de relacionamento e o nome dela ficava imediatamente acima ou abaixo de Signe na lista de contatos. Envio por engano, sabemos. Para proteger de onde conseguiu as drogas, Signe chega a inventar que o traficante vizinho inclusive teria morrido. Tudo para não levantar suspeitas de seu plano maquiavélico. 

Entre as críticas mais suaves ou escrachadas, a indústria farmacêutica que cura doenças provocando outras, cura sintomas e gera novos. A medicina incapaz de diagnosticar. A sociedade capitalista que impõe necessidades financeiras e de sucesso. Os jovens que se cobram em demasia e sentem as necessidades de serem considerados especiais. O preço descontrolado da fama a qualquer custo na era digital. Signe tenta demonstrar na internet que é uma vítima, que está bem. Tenta desesperadamente alavancar uma carreira de modelo, por meio de uma marca que apresenta-se moderna ao mercado por oportunizar PCDs.

Além da rejeição de seu pai, o relacionamento com Thomas é foco, é problemático. O namorado se diz artista, mas na verdade ele e Signe apenas roubavam cadeiras, estofados, os mudavam de posição e consideravam obras de arte. Uma crítica também ao subjetivo artístico desmiolado, non-sense. Thomas usufrui de alguma fama, é requisitado para exposições em salões e entrevistas em revistas e Signe o inveja, se sente improdutiva sendo ela atendente de um café, sente-se escanteada, degraus abaixo no sistema compulsório. 

A partir disso, a corrida para se vitimizar e ser valorizada é essa corrida desenfreada para uma glória de mentiras e, como sabemos, mentiras temporárias que vestem calças em tamanho pequeno. Apesar dos exageros, ou justamente por eles, Doente de si mesma ganha uma nota 4 estrelas por abordar tantas problemáticas, com humor, terror, exageros típicos da era digital e críticas ora veladas, ora escrachadas.

O comparativo com o mais conhecido A Substância é válido, pois neste filme estadunidense a abordagem é pela indústria do corpo perfeito, os holofotes, os quinze minutos de fama, o sucesso a partir da televisão. A luta das mulheres para se encaixarem em um padrão abusivo, competitivo, sórdido, tão rápido atingido como substituído e obsoleto. Obsolescência programada. Em resumo, no filme uma famosa apresentadora e modelo começa a envelhecer, recebe, ilegalmente, a exemplo de "Doente de mim mesma", uma substância misteriosa que promete ser uma fonte da juventude. Ela acaba com um duplo, saindo de seu corpo, no mais alto padrão da separação biológica, em cenas marcantes para história do cinema, mas sua versão mais jovem também é competitiva e exige mais poder, mais beleza, mais jovialidade. Elas competem entre si em um mundo que coloca as mulheres, as pessoas umas contra as outras pelo brilho e o estrelato, com ênfase no hollywoodiano de Los Angeles, onde se passa a estória.

A crítica ao mundo comandado pelos homens de terno e idade a exigirem corpos impossíveis, plásticos para televisão e não respeitarem o envelhecimento alheio. O comportamento abusivo e muitas vezes tosco das personagens aproxima os dois filmes. A mescla de gêneros cinematográficos entre o humor, o drama, o terror, o grotesco todavia a mostrar-se. 

Com notas semelhantes pelo site brasileiro de análises fílmicas, Filmow, Doente de mim mesma (3,8) e A Substância (3,9) são recomendações da década para discutir padrões de beleza, indústrias e competições, sociedade do espetáculo, sociedade do cansaço e afins. Assistam com estômago preparado a cenas grotescas e extravagantes, não recomendadas a menores de 16 anos.

Doente de si mesma ⭐⭐⭐⭐
A Substância ⭐⭐⭐½

Imagens abaixo: reprodução dos filmes