06/05/2020

Marco Polo no Campo de Centeio

Sinto que deveria consultar algum especialista antes dessas linhas. Não como consulta em terapia, se bem que não é de toda má ideia, vejam bem. Mas neste relato autoanalítico que estou prestes a fazer, a ciência neurológica deve ter avançado a respeito dessa recepção. Espero que não percamos o fio do novelo ao longo do trajeto. Garantam que João, Maria e os demais neurônios, através do caminho formado por pães ou brioches, caso lhes faltem os primeiros, encontrem o retorno quando precisarem. Sem mais delongas, embarquem pela porta da frente desse coletivo e afivelem os cintos.

Meu cérebro sempre aturdiu a opiniões terceiras para influenciar a sua recepção sobre meu corpo. É impressionante! Uma das pessoas mais influentes desde minha infância é minha irmã mais velha, a única que tenho. Por exemplo, ao saborear uma comida, ela pode dizer que está muito salgada e exagera na adjetivação e no drama que confere. Ao passo de dado comentário, meu paladar automaticamente sente o despejar da salina de algum mar sobre o rodeado prato. Não tenho escapatória. Foram as palavras de minha irmã, mais do que qualquer cozinheira ou cozinheiro, que salgaram a carne, o purê de batatas, a salada, o que for.

A respeito da temperatura, idem. Ao mencionarem que está muito frio ou muito calor, a roupa que estou usando passará a não ser a adequada. Não estou nem falando do julgamento dos terceiros, mas é comigo propriamente o problema. Acharei que vesti peça de roupa a mais e gostaria de tirá-la, mas precisaria sacar a de cima e assim sucessivamente. E perceberei que, em pleno abril ou maio, joga-se o outono e o inverno ainda está por vir, logo um exagero tenha eu cometido, ora pois. Nos verões, a sensação de calor antes me arrebata proveniente de uma frase despretensiosa do que dos raios solares, os ultraviolentos. Perceberei ainda estar trajando calças ou mangas - compridas ou não - quando nenhuma manga se faz necessária. Sobre tudo isso, me questiono que espécie de efeito retardado me aflige estar à espera de opiniões alheias para acertar-me da comida na refeição ou das vestimentas que ora trajo.

O poder de convencimento se acimenta a mim em tantos outros casos. A cura de remédios, dos mais farmacêuticos industriais aos caseiros, muitas vezes me depende da sentença de quem a traga, em especial de minha mãe, especialista em chás e de caixa abarrotada das mais diversas especiarias das drogarias de esquina. "Este é para dor de cabeça, este para dor no corpo e este gosto para combater os enjoos", ela tranquilamente explica, calejada dos conhecimentos vividos na prática, ao longo dessas últimas décadas de progressismo medicinal ou pelas iguarias adotadas desde os tempos de minha falecida bisavó Elza.

Quando distraído da fatia de meu emprego que consiste em analisar jogos de futebol, as pessoas também dividem comigo algum comentário a respeito de determinado jogador; a partir disso, eu paro o que estou pensando ou deixando de pensar e recorro a observar o mesmo. Tudo parece óbvio como para o profeta do acontecido. Agradeço muito aos que dividem teses, a minha final geralmente é uma concha de retalhos. Me falta convicção? Pode ser, mas me sobram espaços para a impressão dos agradecimentos e das notas de referências ao findar a dissertação.

Por estes dias também pensei sobre a minha tendência a concordar com os formadores da arte, mais do que com os críticos dos mesmos. Penso que só há críticos porque existe a arte para criticá-la. O ponto de partida me coloca ao lado dos construtores. É muito complexo, sem dúvida, mas a arte sendo posta para análise, exposta para a cova dos leões opinantes, desprotegida como um ovo em ninho órfão, quem está sujeito a isso parte com algum crédito na bolsa. A arte na exposição das emoções, no desenvolvimento da razão, no poder de questionar através dela e de causar o questionamento em vias sinuosas e confusas nos observadores. A arte que, mesmo quando discordo, agradeço por estar ali presente para que eu possa questionar-me, questionar ao mundo através de seu fio desencapado e condutor.

Não é que eu esteja obrigado à colheita de tudo, a engolir de tudo nesse vasto campo que nos aguarda a visita. O bazar das opções é tremendo, dos filmes iranianos aos franceses, do cinema latino-americano da Colômbia e da Argentina, dos livros da filosofia grega aos alemães, dos asiáticos japoneses e chineses que, quando ganham traduções, muitas vezes fornalham espaço em nossos corações com filosofares não antes praticados por aqui; aos contos angolanos e haitianos de espiritualidade bem vivida, seitas praticadas, as lutas pelo espaço e pelo dia a dia; e, em tudo isso, assimilar paralelos entre os mais rudimentares minifúndios rurais e as maiores agências de propaganda na selva de pedra, em outdoors luminosos que esfrangalham a escuridão noturna. Me interessam demais os princípios humanos que se repetem independente da época ou do local do heterogêneo globo. Perceber como se assemelham nas técnicas de sobrevivência, como superam-se, como sofrem, como armam contra seus inimigos, reais, frente a frente, ou abstratos, mesmo que para dentro da cabeça.

Todo esse devaneio a respeito da arte e como considero cruéis as opiniões que, de prontidão, refutam o trabalho desse escriba, dessa pintora, desse dançarino, desse músico, de quem quer que seja, tenha se arriscado a deixar para a humanidade um pouco de sua alma através dos emaranhados artísticos. Com exceção das piscinas extremamente rasas, essas que, pelo baixíssimo volume que demonstram, consomem-nos tão pouco que nosso cuspe de volta pode ser mais profundo do que as pretensões lançadas. E mesmo nessa tese, quem nos garante não enganar-nos? É preciso muito cuidado nessas avaliações. Experimento obras demasiado variadas, como as descritas em parágrafo anterior, me preparo para uma escritora mexicana de sobrenome russo, uma porto-alegrense eslava, uma bailarina californiana em fragmentos autobiográficos, uma portuguesa de outras épocas, alguém que traduza a literatura conjunta entre as lendas africanas e as novas línguas europeias para esses povos. Estou aberto a essas sugestões. O peito e a cabeça querendo colher mais e mais, acumulador compulsivo que não nega e que, nesse universo, quase paralelo, mas tão aplicável ao nosso mundo real, carne e osso, cheiros, sons, buzinas, trânsitos, descartes, lixos, ramagens, folhagens, vendas, gritos, pudores, poderes, tudo tão presente e costurável.

Equilibrista de teorias, malabarista de teses. Cidadão do mundo que muitas vezes não sai de casa, em tempos pandêmicos aprendeu forçosamente que não pode. Mas gosta de casa porque gosta das companhias que artisticamente encontra. Desconhecia e encontra. Brinda e tenta se encontrar. Chega aos diversos pontos latitudinais ou longetudinais potencializados nas obras; investiga nos passos de um detetive, de uma moça solitária, de um criminoso, de um vigarista, de uma política estrangeira, de um segurança de festa, de um rei medieval e seus súditos, de seus serviçais, da cozinheira que salgou mais ou menos aquela carne, aquele purê de batatas, aquela salada que eu chamo vida.
Ela dirá "hoje salguei demasiado a comida" e na próxima garfada, sem a paciência de quem espera engolir por completo, rebaterei que "não havia percebido, mas é bem possível que assim seja". Confiante na cozinheira que afirmou salinizada a refeição. Pronto por aceitar esse ponto de vista e depois repensá-lo. Pensar e repensar, o que me sobra?

Minha cabeça se ocupa, meus olhares enxergam muito adiante do que o alcance das mãos exigia; as mãos, o tato exigem que eu preste maior atenção a eles, mas a mente ruma desgovernada para caminhos muito além. Por vezes sinto muita lamentação, lamúrias por estar assim, a praticidade me implorava por pouquíssimo e todavia não consigo cumprir por ela. Já a teoria me encaçapa. Giza e agiliza o taco e me encaçapa na caçapa de sua preferência; estou a serviços dela.

Dela, teoria que me absorve, me sorve, me torna abjeto, repulsivo, recluso, moído aos meus cantos isolados, mas me devolve em outras rajadas, pronto para conhecê-la mais... e mais, predador insaciável. E me encaro, espelhos duvidosos que mostram apenas a incerteza, a vacilação de quem espera o obstáculo de novas comidas, salgadas ou não, agridoces, chás e remédios que funcionarão ou não, dias mais frios ou mais quentes, para questionar-me errado e procurando acertar. Queimando as palmas e os dedos para dominar, por segundos que seja, as labaredas da chama, lutando por um pouco de caloração nas noites friorentas, por uma sombra sossegada em abrigos provisórios. Pronto para a espada em tons figurativos desse mundo radicalista, egoísta, imediatista e julgador. Compondo e descampando me apanho; apanho descampando e compondo. Sendo enquanto sou. Enquanto eu possa ser. Teoria e prática correndo pelos campos em ritmos diferentes, esbarrando-se, vez por outra, qual momento! gritando, cegas, "marco" e "polo" e assim para todo sempre. Teorias e práticas substituídas ou, por muita sorte, embutidas, nos vestígios que deixamos.

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