Filme adaptado de um romance homônimo, A Face do Outro pode ser considerada parte da Nouvelle Vague do Japão. Nesta história, um marido acidentado, que desfigurou, que perdeu o rosto, usa ataduras, faixas por toda face e servirá de cobaia para o experimento de uma máscara adaptável à sua cabeça. Constituído com um novo rosto, o melancólico terá a chance de reconquistar mulheres?
Este foi um filme em que o escriba adiou bastante a visitação por julgar erroneamente que se trataria de tentativas de horror, de que houvesse uma aberração a assustar moradores, apenas migrando da cultura ocidental para o Japão. Não foi o caso. Entre filmes com essa temática de duplo, de adaptações, de desfiguração e retomada, A Face do Outro se mostrou digno de topo;com certeza entre os melhores.
A filosofia no filme é densa, com vários paralelos que podem ser traçados com a atualidade da vida dupla de internet e das redes sociais. O indivíduo que estava triste e deslocado sem possuir um rosto, retoma as atividades sociais sem mais chamar atenção negativamente, sem espantar, mas espanta-se diante das novas possibilidades, do recomeço, da vida praticamente reiniciada, partindo do zero. Será? Apesar da mudança na armadura, na casca, na estrutura externa, o cérebro, os pensamentos e desejos ainda são os mesmos. Prova disso é o clímax do objetivo do homem ao possuir o novo rosto e a suposta nova identidade. Terá ele êxito e o que dará errado?
Ademais do indivíduo, ganha força de protagonismo também o médico responsável pela criação e experimentação da atividade. O médico delira e sonha com um mundo de duplos, de falsidades, de traição e possíveis crimes com a novidade em experimento. O marido protagonista do filme seria como o primeiro paciente, se sente como uma cobaia. O doutor está em êxtase, divaga sobre a vida, faz afirmações sobre o comportamento social. É um filme denso e reflexivo, sobre como nossa identidade é constituída, parte das aparências e um rosto pode construir ou destruir uma reputação. Não será assim ao longo das décadas? Por penteados, roupas, tatuagens, piercings ou outros acessórios? Sinalizações de dignidade, respeito, adequação, competência que podem ser aceitas, ignoradas ou excluídas pelas pessoas em cada serviço, em cada atividade, em cada aspiração. O homem que estava deslocado, depressivo, à beira da exaustão sem um rosto para chamar de seu tenta renascer com a nova identidade, mas as coisas não são reiniciadas do zero. Há lembranças, memórias, gostos e traumas que já fazem parte do indivíduo e, apesar do novo rosto, ele carrega em si.
O pensamento mesclado às redes sociais se deve a usuários formarem novos perfis, reiniciarem seus grupos de amizade, de contatos, de networking em busca de novas oportunidades, deixar para trás passados que julgam não mais lhes pertencer e reiniciar em novas atividades - como novos grupos políticos, de atividades esportivas, de games, grupos de leitura ou cinefilia, grupos de fãs de um determinado artista ou gênero musical. As redes sociais permitem reinícios, mas o indivíduo carega em si a experiência do que busca, do que já deu errado e não quer repetir; carrega a vontade do experimento pelas novas pessoas com as quais busca se tornar amistoso, útil, pertencente e participativo. Busca sua nova identidade enquanto membro.
As relações sociais mediadas pelas redes online dispararam. Hoje, a não ser que se trabalhe no atendimento direto ao público, um adulto pode ter muito mais contato diretamente pelas redes do que pelo cotidiano presencial, seja com amigos, amigos virtuais, parentes distantes, etc. A mediação pelas máscaras - palavra-chave no filme- ocorre em situações de ocultar sentimentos, fraquezas, hábitos considerados desprezíveis e pontos que se deseja tornar invisíveis. Essas atitudes partem desde a escolha de fotos - do que postar ou não - do que destacar da rotina ou não, sobre o quê opinar ou não. A mediação pelas telas permite maior tempo para formular respostas, pigarrear e encaixotar opiniões que poderiam ser negativas aos demais, substituindo-as pelas falsidades comumente aceitas em prol da convivência. Mentiras brandas, senso comum ativado sobre a saliência da sinceridade.
O uso das máscaras para criar duplos, para criar incluso perfis totalmente falsos, onde não há concordância de nome, de data ou local de nascimento, de gênero e a nova utilização de robôs são tendências nas redes sociais. Há perfis falsos em jogos e em fóruns de comentários, em comentários de notícias, em grupos de fãs, de torcedores e de conteúdo religioso. Há perfis pagos e programados para espalhar inverdades, para declarar apoio incondicional ou para pigarrear e minar a concorrência. Há máscaras das mais diversas, protegendo esses cirurgiões excitados pela experiência de novos rostos, ou programadores, políticos e gestores beneficiados.
A Face do Outro, nesse universo da década de 1960, tão rica e diversa para história geral do cinema, transmite atualidade conforme a tecnologia transita novas possibilidades de se aparecer e de se esconder, de reiniciar e de pausar histórias, de selecionar novidades ou excluir passados tolos - de tentar reescrever quem somos e de procurar sentidos.
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