28/01/2025

Semana para Sempre

Assisti a mais um filme com tons biográficos. Ratcatcher (1999) ou O Lixo e o Sonho, que se passa em Glasgow, na Escócia, demonstrando a vida de um garoto chamado James, descobrindo coisas da adolescência, enquanto a greve do recolhimento acumula sacos de resíduos, ratos e mais problemas do que aquela comunidade pobre e operária já necessariamente passaria por.

Passei essa semana com minha vó, a única semana em nossas vidas sob essa condição de só nós dois. Me sinto tão culpado de várias formas. Ela sempre morava com minha tia e finalmente a liberei para passar férias no litoral de Santa Catarina, enquanto fiquei a cuidar de vovó. Lembrar que em 2022 elas tiveram a condição de morar com o restante de minha família em Santa Catarina, mas decidiram voltar ao estado mais ao Sul do país.

Essa semana com minha vó fez eu me sentir culpado de, embora ajudá-la, não poder fazer tudo por ela. Tudo mesmo. Embora eu saiba que ela se sinta mais útil, mais viva podendo exercer coisas que sempre fez pelas casas onde morou. E também penso que esses dias em que pode se contentar apenas com a vista dos prédios em volta pelo centro e pela televisão, em que ela prefere o entretenimento do SBT, ignorando a assinatura dos canais por assinatura, que não são baratos e chegaram a ser contestados por nosotros (eu e ela).

Me sinto culpado porque, principalmente, o distanciamento sentimental com minha avó se deve, além de minhas condições mentais, à falta de uma experiência anterior que nos unisse em tamanha proximidade. Essa semana possibilitou isso. Jogamos cartas nesse último dia a sós. Ela se divertiu com minha companhia, com a cerveja e com as verdades que compartilhamos, eu me diverti, além disso, por ter ganhado o jogo com certa tranquilidade, em um placar elástico de 15 a 4 no pife. 

Além de adiar essa experiência entre avó e neto, ela agora em seu 92⁰ ano sobre a Terra, me sinto especialmente culpado por esse distanciamento ter me feito pensar, por vezes, que talvez não fizesse a mim uma grande diferença a sua partida. E hoje encontro minha avó muito mais próxima, mais humana do que nunca. Às vezes naturalmente provocativa e sonsa, como características do signo de leão, mas com uma vontade imensurável de acertar, de agradar, de me acompanhar disposta. Algo sem palavras para expressar o bom relato de seu companheirismo, nessa semana em que quase perdi por vezes o bom cabo da paciência, mas sempre consegui mantê-lo, como com outras pessoas talvez não conseguisse, e assim o convívio foi satisfatório e na agradabilidade do companheirismo.

Me sinto culpado pelas vezes em que pensei minha vó como o número de sua idade, agora recordista em nossa família ao cruzar seu 92⁰ ano. Mas ela, muito além de um número, é uma bela história de vida. Filha mais nova do imigrante alemão alcoólatra. Filha talvez preferida entre as filhas por ser a mais jovem, mas não mais do que o moço da geração delas que teve direito a investimentos para estudos e intercambiar fora. Minha vó tem quase nenhuma formação escolar e, mais do que isso, trabalhou de servente em escola por muitos anos. Característica do emprego essa ela levou para vida, sempre muito prestativa e disposta a ajudar os outros, sem luxo e apaixonada pelos pequenos gostos, refeições e momentos familiares, como sei que gostou dos que passei com ela.

Fazer algum paralelo com o filme que assisti. A agonia toma conta dos espectadores ao verem o lixo que se acumula em Ratcatcher, as crianças brincando em riacho poluído, com ratos e todo tipo de exposição a doenças. Minha avó jamais deixaria chegar a esse ponto. Acho que se fosse escocesa dessa época, sairia de casa ela mesma para colher o que conseguisse de lixo, em nome da vizinhança. Uma senhora inacreditavelmente disposta, que sobreviveu a tombos físicos, de cair na calçada ou em casa, a tombos que a vida pudesse lhe pregar em peças desagradáveis. E chegou para me orgulhar, para me atender, para eu me sentir quisto e amado, em pleno seu 92⁰ ano. Se cheguei a duvidar o impacto que teria sua futura partida, à qual nos programos de uma forma ou de outra, agora me é indubitável o poder que as recordações me trarão e tratarão dessa nobre senhora, de seu riso inconfundível, sorriso fácil e surpreendentemente fotogênico, acima até da beleza, cabelos vastos, feições grandes e simpatia simples. Pudera eu ser mais de ti do que o sangue que também sou.

23/01/2025

Nem onze

Nem onze da noite e todas as contas já foram feitas

Ninguém tem mais saco

Pra atos chatos 

Ninguém tem mais saco

Pra insights fracos


Passo o tempo

Passo o dedo sobre a tela do celular

Navego insone 

Navego anônimo 

Navego mais um nome

Nesse mar


Tanto faz

Indiferença é maior que as desavenças naturais

Tanto faz

Os descartes são as pedras filosofais 


Nem onze da noite

Nem ouse dar mais sinais


22/01/2025

Entendi que a vida passa mais rápido conforme somamos mais idade. Vi um cálculo sobre percepção baseado na porcentagem de vida que representa um mês, por exemplo. Quando se tem cinco anos, um mês equivale a muitos % de sua vida. Mas quando se tem 60 anos, um mês é um parcela ínfima do total de sua vida. Entendeu?

Porém também relembro as viagens que fizemos. Conhecer a estrada representa, muitas vezes, que o caminho passou mais rápido. Já se sabia, em parte, o que estava por vir. Assim também são os dias e os meses quando acumulamos mais idade. Já se sabe mais sobre as coisas e o aspecto da novidade se ausenta. Assim, os dias e os meses, conforme os conhecemos, saltam mais depressa. Talvez aprender coisas novas e lançar-se a novidades represente uma importante quebra nesse ciclo vicioso dos dias. Quem tem tempo? Quem tem dinheiro? Quem tem disposição para quebrar essa corrente?

21/01/2025

Hoje eu invejo apenas a inocência e o otimismo daqueles que ainda acham que vão se livrar. Não vão se livrar.

20/01/2025

Até que tem

Tem música que gosto de ouvir no fone

Tem música que gosto de ouvir ao vivo

Tem música que gosto de jeito nenhum 

Preferia nem estar vivo


Então eu ouvi João Bosco

Me senti menos tosco perante o mundo

Então eu ouvi nosso oco 

Do que parecia profundo


Então eu ouvi o Trump com sotaque traduzido

Preferia ser abduzido

A ouvir esse discurso

No decurso do tempo

Eu só lamento

O que ainda está por vir

Isabelle Huppert me avisou ¿e daí?

Me puxaram o tapete

Antes dele voar

E Alceu Valença me era uma lembrança

Somente protocolar


Tem música que eu gosto como um equinócio 

Palavra nova é boa para os negócios 

Tem música que fizeram de qualquer jeito

Feito um troço 

Tem música industrial que nem a indústria da China

Faz tanta barbeiragem 

Nem o Clube da Esquina

Nenhum outro Nascimento


Tem música que não definiria jamais um valor

Tem música que é troco 

Tem música que eu troco quando mal começa

Tem música que ouço à beça 

Tem música que eu queria ouvir de beca 

Mas a formatura não queria comprometer os direitos autorais

Ai ai ais 

Tem música que é sacada do baralho aleatório 

Como um ás 

Tem música que nunca satisfaz

Tem música que eu canso jamais

Tem música instrumental e tem de Recife

E tem corais

Tem música que me arma pra guerra

Tem música que é quase paz

Tem música que nunca me alcança

Por mais que sejam virais

Tem música que nunca mais ouço 

Agora que somos rivais

Tem música que me dá um troço

Longe demais das capitais 

Tem criança que não conhece Capital Inicial

Obriguei a ouvirem Soda Stereo 

E Cerati sim me dá um revertério 

Ferrari virando um cavalinho de pau 

Tem música que sobra o doce

Tem música que falta sal

Tem música que antes nos fosse 

Ao menos um sinal

Au au au 

Mal



Os sonhos têm um aspecto aprisionante, mas geralmente acordar não é diferente.

Você eu espero

Você espera um momento sublime

A vida te responde chinelagem 

Você espera pela limousine 

Olha o tamanho da sua garagem


Você espera pela autoestima 

De cima ninguém te dá nada

Você espera de cabeça inchada

Pela hora exata, cristalina 


Você espera um momento único 

Unicórnios, micos passados e leões dourados 

Você espera uma brecha na lei 

Enquanto dormem os advogados 


Você espera pela espera

E percebe tarde demais

Que já era

Você espera por perceber

Sinais divinos entregues do Céu

Você espera castelos de cartas

Torres de papel


Você espera pela espera

E percebe tarde demais

Que já era


14/01/2025

Ponteiro da Saudade (1945)

Primeiro que, contextualmente, escrevo este texto após saber de denúncias contra o escritor Neil Gaiman e outros, o que me faz sempre pensar na perversão, nos bastidores terríveis dos Estados Unidos da América a respeito de escândalos sexuais, o que se pode ampliar para o cinema, para os escoteiros e sabe-se lá o que de pior entre as paredes das casas. Uma sociedade doentia e que venera o sexo de uma forma que creio ajudar a deturpar os cérebros naturalmente deturpantes.

Todo esse contexto a respeito porque trata-se novamente de um filme dos Estados Unidos, passado em Nova York de 1945, recém acabando o grande acontecimento secular de Segunda Guerra. Um soldado chamado Joe chega de seu acampamento para passar dois dias em Nova York, a maior cidade do país, com mais de 7 milhões de habitantes, divididos entre Brooklyn, Queens, Manhattam, Richmond. Joe nunca havia estado em NY e, ao que parece por seus movimentos surpresos, nunca havia estado em cidades grandes. Surpreso com o tamanho dos arranha-céus que ele poeticamente classifica como coletores de nuvens, surpreso inclusive com o movimento simplificado e repetitivo das escadas rolantes.

Joe atabalhoadamente tropeça em uma jovem logo na chegada rodoviária e acaba quebrando o salto do sapato da moça, algo meio cinderélico. O encontro casual entre os dois evolui para se tornar a trama do filme, exclusivamente português para se chamar Ponteiro da Saudade, ótima tradução, diga-se de passagem. Solitário, Joe depende da moça para conhecer as primeiras atrações nova yorkinas, o que, vá lá, entre Central Park, museus e largas avenidas dotadas de diferentes transportes, dá o tom do que seria a corrida norte-americana para mostrar seus sucessos ao planeta durante a Guerra Fria. Mas não quebremos totalmente o encanto do jovem casal com politicagem (não muito).

O filme causa uma tremenda angústia ao pensarmos que o encontro casual transformado em desencontro em repetidas cenas poderia terminar a qualquer instante, sem redes sociais, endereço ou mesmo local de trabalho em que pudessem se reencontrar para prosseguimento. Se perdem entre bondes, ônibus, metrô, galerias, pontos turísticos de encontro.

Mais do que isso, o drama/romance parece criticar a vida militar de desencontros para viver longe da família, dos amigos, das amantes em acampamentos distantes, missões injustificadas, viagens para Europa: Joe iria à Inglaterra, ao que recordamos. Em apenas dois dias, esses jovens querem mudar suas realidades e transformar a insegurança e incertezas em algo mais absoluto. Joe parece mais acertivo de seus objetivos com a jovem Alice, enquanto ela, carregada de dúvidas, um tanto quanto consternada de apaixonar-se rapidamente por um militar, põe-se em dúvida diante de sua amiga e companheira de apartamento, além do papel social, sempre fundamental nessas escolhas.

O drama do soldado que precisa seguir em missão, mas torna-se determinado em, naqueles míseros dois dias, concluir missão antes de sair-se para Europa. Quase século depois e podemos pensar de que valem tantas escaladas longe de quem os ama e os faz viver, seja em Vietnãs, Kuwait, Iraque ou Afeganistão.

A segunda metade do filme se desenrola em burocracias de que o casal tenta desenrolar um apressado casamento, vá lá politicagem, não se sabe se em obscuro desejo de desburocratização e de provar que os jovens nessa cultura ocidental ao menos tem o privilégio das escolhas, mesmo impulsivos e apressados, que diabos, além desses jovens personagens e dos mais velhos burocratas organizadores de certidões, exames de sangue e, finalmente, casamentos, há nenhuma supervisão dos distantes pais de Joe ou Alice, que somente comentariam com eles após registradas as atas. É um contraste tremendo a vidas interioranas e de países asiáticos ou de prevalência da cultura muçulmana, por exemplo.

Havia prometido não misturar a tocante história dos jovens com politicagens, mas depois me tocou inevitável. Perdoem-me. O filme traz fragmentos bastante realísticos e outros um tanto forçados, mas sem obstruir totalmente seu brilho. Os encontros após desencontros são angustiantes e de tirar o fôlego. A chance de dar tudo errado era evidente, mas Joe e Alice estão imantados do magnetismo do cinema de finais felizes. Será? Pois a vida militar segue e os Estados Unidos da América, mr. Trump, segue em escalada internacional para separar os corações apaixonados de Joes e Alices, ou o nosso Green Day também não lançaria 60 anos depois uma música pedindo para ser acordado após o fim de setembro.

Entre escândalos sexuais de uma sociedade doentia e corrompida, entre queimadas criminosas ou má administradas na questão climática, que eles tanto deixam passar, os malditos ainda escrevem algumas histórias de amor que valem-nos 1h30 de atenção e conformismo, de amolecimento do conteúdo miocárdio e mansidão da mente.

Céus, eu e minhas notas altas

Nota final em 4,5 / 5

Direção de Vincente Minnelli



13/01/2025

Eu torço pelo sucesso de quem já se fudeu bastante.

O problema é que é comum que essa pessoa continue se fudendo. 

12/01/2025

O Profanador de Azeitona

Ele achou que não seria pego. Desconfiava de um vizinho que não revirava o seu lixo, mas só faltava aparecer de binóculos na janela, atento a cada movimento. Aconteceu algumas vezes, ele não poderia negar caso a pergunta fosse feita no tribunal. Isto se ele tivesse direito a um tribunal, porque a sociedade o condenaria, na opinião pública, como um crime inafiançável.

Em casa, elas eram bem separadas. Eram pedaços pequenos, que passariam facilmente despercebidos, envoltos nos sacos plásticos descartáveis. Em casa, pelo visto, através dos meses, ele conseguia passar impune. Depois tudo ia para o caminhão do lixo e nunca saberiam quem era o responsável por aquele crime.

Mas um dia ele foi pego na saída da porta do apartamento. Achou que o vizinho, bisbilhoteiro mas alcoólatra, estava por dormir, mas surpreendeu-o parado, preenchendo o perímetro do espaço da porta como um goleiro à espera da chegada adversária. O profanador de azeitona se assustou. Deixou cair a sacola e as bolitas escuras se esparramaram pelo chão. O vizinho pinguço não podia acreditar no que via com seus próprios olhos - auxiliados por lentes de grau 3. As azeitonas preencheram o chão dos apartamentos do segundo andar como se fossem as bolinhas de borracha após uma partida de futebol sete em campo sintético. A prova do crime gritava urgência. O vizinho até gostava dele, mas tal chamado à justiça não poderia tardar. A denúncia precisava ser feita. Primeiro manifestou um grito, não dos mais altos, mas o suficiente para a outra porta daquele andar abrir-se e averiguar a bagunça, a cena imperdoável. As azeitonas deitadas, espalhadas por tudo. 

- Eu posso explicar - disse trêmulo diante das testemunhas.

- Vá tentando - encorajou a vizinha do apartamento diante do dele. O alcoólatra era vizinho lateralmente.

- São... São... um amigo jantou aqui. Ele não come. É coisa dele. 

- Eu bem que desconfiava - disse o bafo de cachaça. - Você tem hábitos muito estranhos. Parece sempre se esgueirar por esse prédio. É u gatuno - e deu uma risadinha, mas ninguém acompanhou nos sorrisos.

- De qualquer forma entendo que... que sou cúmplice. E na verdade a culpa parece recair só a mim. Mas é dele, eu juro!

- E você não tem vergonha? Encobrir uma porcalhada dessas? Azeitonas fora? - A vizinha estava incrédula.

- Eu... eu... Eu não sei o que dizer. - Roçava a testa com a chave da porta, único item que lhe sobrava nas mãos, que haviam perdido sacola e azeitonas para evidência criminosa.

- É nosso dever não só informar o síndico, mas autoridades competentes - disse o engenheiro aposentado. 

- Logo tu! - Manifestou no gauchês mais rude e intimidador que conseguiu. - Um velho alcoólatra com ficha criminosa violenta de atos passados. Até coisa hedionda, velho burguês!

- Tive sim, acusações. Acusações, veja bem. E fui inocentado. Agora isso que estamos vendo. Eu por trás dessas gafas velhas. Isso não se pode tolerar. Eu mesmo saco o celular. - Se prontificava com a língua no canto da boca e os dedos ágeis mas embaralhados a discar o número policial.

- O Vieri tem razão. Uma cena dessas em pleno nosso prédio, diante de nossas portas, de nossos apartamentos, é intolerável. Disque, senhor Vieri. 

Nisso, o síndico chegava também grogue, atônito, ao mesmo tempo curioso por aquela movimentação na calada da noite. De sacolas de supermercado na mão, inclusive preciosas azeitonas, ele assistia àquela profanação em tempo real. Bolotas por todo o corredor, talvez algumas mergulhando degraus de escada.

- O qué passa? - Invocava algo fronteiriço em sua pronúncia dos tempos vividos no Rio Grande. 

- Estamos diante de um profanador de azeitonas  - continuava furiosa a mulher.

- Um profanador de azeitonas?

- Um incontestável. Assistimos em flagrante, não é, senhor Vieri? - E deixava escapar uma lágrima de fúria no canto do olho.

- Evidentemente. -  Terminava de discar o velho. - Alô, policial? Sim. Sim. Sim, no bairro da praia. Uma denúncia estapafúrdia, policial. Um profanador de azeitonas! Sim! Não ouviu errado. Sim, estou tentando ficar calmo. Já passei por um infarto, mas boletim igual a esse não é todo dia, não é mesmo?

O profanador de azeitonas parecia aceitar a denúncia, não obtinha mais reação. O síndico o encarava como criminoso que se mostrava ser. Parecia surpreso, curioso, mas o olhar já inquisidor diante da perversão presenciada.

 - Gostaria de denunciar seu amigo, caro cúmplice? - Provocava o velho. A boca entre conversar com os presentes da cena do crime e para o policial ouvir do outro lado da "linha".

- Vou assumir a responsabilidade dessa sacola, mas mais nada! - Exclamava entre conformado e agressivo.

- De evidência só temos essa sacola mesmo... até o momento - dizia a mulher.

- A senhora não se meta! - Disse o profanador.

- Não me levante o tom de voz. O acusado aqui é você. Mais do que acusado, praticamente um setenciado.  Espero que joguem a chave fora.

- Se for coisa de chave...  - Arriscava um manifesto o síndico, senhor Nilton, para não ficar de todo calado. Havia certa reputação e valores a zelar. Também, embora conhecesse bem e até frequentasse o apartamento do réu, não queria que os demais pensassem que ele compactuasse com a prática criminosa. Isso abalaria inclusive sua posição sindical. 

Enquanto o papo se estendia na espera pela polícia, o acusado calculava uma possível rota de fuga. O joelho que o atrapalhava para jogar bola fazia década agora era um problema maior, pois não teria como fugir no lento elevador, em que um cotovelo de Ana do 202 poderia impedi-lo inclusive de entrar na nave. E para descer as escadas, bom, eis o joelho canhoto problemático.

- A polícia vem em cinco minutos, meus caros. - Alertava o tratante da ligação. - Tinham mais duas ocorrências locais, mas esta, naturalmente, discorre em prioridade. - Falava muito polido e tentando transparecer a elegância que suas noitadas de bebedeira faziam desaparecer.

- Já tive um primo detido por questões assim. - Arriscava baixar-se a crista Ana do 202. Ficou com o rosto fora do alcance dos demais enquanto meditava. E acrescentou: - Nunca mais soubemos dele.

- Lembro do conflito pelos tomates. - Deixou marejar os olhos o velho Vieri, já de telefone novamente disposto ao repouso do bolso. - Coisas que nem queremos lembrar. - E ameaçou retirar da carteira a foto da falecida mulher por quem, passadas algumas latas de cerveja ou goles destilados, ele rememorava inutilmente, sem sequer obter o apoio moral dos demais inquilinos.

- O conflito dos tomates, sim... - Acrescentou Nilton, querendo demonstrar experiência com o assunto, voz ativa de síndico, ao mesmo tempo que percebia transparecer demais a idade, algo que ele tentava ocultar ao pentear os poucos fios de cabelo para o lado, na tentativa de disfarçar a crescente calvície. 

Vieri, que, apesar de notoriamente mais velho, tinha mais cabelo, se encorajou a prosseguir. - Foram dias angustiantes. Nunca se perdoou aquele desperdício de safra. Muitos agricultores foram enforcados, outros tantos foram depostos de suas terras e o rigor das leis chegou a esse ponto sobre o desperdício de azeitonas. Vocês sabem, se comprou com azeitona, há de comer a azeitona. 

- Há de comer - recitaram os vizinhos em coro, com exceção, é claro, do acusado.

Calculando seu tempo de fuga eram menos de dois minutos e meio, se houvesse precisão na previsão de Vieri, até os policiais, armados até os dentes, adentrarem o prédio e, amparados pelas testemunhas, como se precisassem delas para agir com violência, encarassem a situação do acusado, o botando para o chão com revólveres apontados para sua nuca, enquanto o rosto mergulharia no piso, profanando, esmagando, cheirando aquelas azeitonas esparramadas. 

Pensou nas consequências de seus inegáveis atos e resolveu agir. Ignoraria a presença do Nilton e passaria por cima de todas as dificuldades, incluso do joelho que o ameaçaria tornar-se manco. Valia o risco em busca da frágil liberdade condicional - ou seja, como fugitivo.

Surpreendeu as testemunhas e saltou em desabalada carreira para vencer o pequeno corredor, deixando para trás as portas dos vizinhos em questão (menos Nilton, que morava no andar de cima), vencendo as evidentes azeitonas e ganhando rapidamente a estreiteza dos degraus, que mal cabiam seus pés, que quase não os tocavam, esvoaçante, cintilante fugitivo. A demora das reações demais se confundia entre o apavoro diante da petulância e mesmo a falta de reflexos para agir, pois se tratavam de um homem de meia, quase idoso, um idoso alcoólatra (que passara por infartos, como seguidamente recordava) e a Ana bisbilhoteira e nada atlética, que para serviços mais dinâmicos mesmo de limpeza necessitava do marido.

Os três ficaram atônitos até começarem a se mexer, quando o suspeito (na melhor das hipóteses para ele à essa altura) ganhava a primeira condicionalidade de sua liberdade, a porta do prédio, que abria tranquilamente para quem quisesse sair, mas necessitava de chave a quem quisesse voltar/entrar. Mais sorte ainda ele teve quando outra vizinha, dona Maria de Fátima, entrava também alvoroçada pelas sacolas que trazia fora de horário da farmácia. A corrida desabalada do suspeito fez com que ela tomasse também tamanho susto, jogasse parte dos conteúdos com sacola e tudo para cima e quase emulasse o senhor Vieri com seus micro infartos.

O profanador de azeitonas ganhou a rua. Ele pela primeira vez, já imaginado diante do júri (se houvesse júri), agradeceu à administração municipal pela iluminação pública deficitária, que agora lhe conferia abrigo contra os inquisidores. Enquanto corria pela rua, nem tão rápido que fosse impossível caçá-lo, nem tão lento que o joelho tenebroso estivesse em conforto, notou mais pessoas dispostas a prender o agressor da tolerância, o violador dos bons costumes. O boato, o fato se espalhava rapidamente pelos grupos virtuais. O que era fato logo era acrescido de boatos. O que era boato logo recebia colheradas do fato. A história ia e vinha, misteriosa, aguçadora da curiosidade, chamativa para que os indignados saíssem de suas casas e buscassem a justiça, nem que fosse com as próprias mãos. A polícia estava a par do caso. Duas viaturas já não eram suficiente. Melhor chama reforço para além da praia. O profanador poderia estar saindo do bairro. Situação lamentável para a pacata região, rodeada de coqueiros, palmeiras, acolhedores bancos de praça que os vizinhos utilizavam no cair das tardes para compartilhar conversas, chimarrão nos costumes do Rio Grande depositados ali, além de calçadas largas e geralmente limpas, pois na cidade se honravam as azeitonas e também o hábito de recolher o que os cuscos encerravam por digestão.

Ele foi zigazagueando muros e árvores e bancos de praça. Fugindo da luz. O gatuno fugitivo - e lembrou da risada infame do velho Vieri. O velho maldito importunara seus planos. Ele era o culpado. Ele quem jogava as azeitonas fora. Não teriam provas antigas, mas aquela evidência bastava. Testemunhas. Confissão de crime. Enquanto fugia na carreira que todavia era desabalada, o profanador pensou que poderiam pedir opinião de lixeiros e outros vizinhos e os malditos testemunhariam contra ele. Que havia algo de estranho naquela lixeira comunitária sim e só poderia ser do inquilino do 203. Que era um vizinho esquisito, de hábitos noturnos, insone, que fazia barulhos no apartamento em alguns horários inoportunos. Inoportuna era aquela situação como um todo. Não haveria necessidade de acrescer paranoia. Era concentrar-se nos planos de esconderijo. Lembrou do clássico Homem Nu de Fernando Sabino. Ele não estava fugindo nu, mas, se no conto premiado do escritor mineiro, o protagonista lutava mais contra a vergonha mor do que a condenação da Justiça, ali ele estava, não ficcionalmente, lutando pela liberdade do seu ir e vir, se a polícia repressora não desse um jeito de sumir com ele, profanador das ditas azeitonas.

Enquanto infiltrava-se astuto no mundo das severas sombras, ouvia os ruídos apetitosos dos sedentos por justiça com as próprias mãos. Deveria ser apenas delírio e paranoia que até tocha de fogo, como nos clássicos antigos filmes em preto e branco ele viu moradores carregarem. Porém o breu das ruas em que se metia era tão pesado, que ele mal enxergava 10 metros adiante e as tochas ou as mais modernas lanternas de led ou celulares viriam bem a calhar na busca, na caçada dos cidadãos.

O blasfêmio tentou um golpe de mestre após praticamente sair dos limítrofes do bairro. Fazendo um caminho inverso, mas por outras ruas, seu destino era voltar para casa, onde os cidadãos estariam ou dispersos ou já tomando remédios para dormir após tamanho infortúnio. No caso de Vieri, a pinga daria conta de romper com a disposição do vizinho de porta. O profanador perdeu a noção do tempo em que esteve fora do apartamento. A madrugada conforme se estendeu também dava traços de entrega. Os primeiros raios da manhã apareceriam tímidos.

Sem exagero, já apareciam em poste que outro, em muro que outro sua foto estampada com direito a código para acessar maiores informações do caso. A polícia, mesmo em cidade pequena, estava a toda em prontidão. O próprio acusado não recordava a última vez que algo hediondo como profanar azeitonas havia ocorrido não só naquela comunidade, mas no estado, tido como dos mais seguros do Brasil. Um crime como esse poderia, inclusive, tentar ser abafado, sumindo com o indivíduo, ocultando o corpo. A internet, nesse caso, poderia jogar a favor dele, pois o caso em poucas horas já estava registrado, porém, tão rápido como eram divulgadas, as informações também poderiam sumir e dele não se saberia mais. Pensou em familiares distantes. Será que lembrariam dele? Exigiriam investigações que não ocorreriam? Além do mais, a opinião pública pouco ligaria para um criminoso desse calibre. A maioria setenciaria que o que tivesse ocorrido foi justo e que o inferno, ou o que o valha, lhe aguardava.

Se aproximando dos fundos do prédio, faltando apenas mais um muro, tentaria ele se esconder pelos fundos da garagem até que pudesse, de repente, arrancar com o próprio carro, na distração dos que ainda rondavam por ali. Não era o melhor dos planos, ele admitia, mas o labirinto de ruas o levava para casa de volta. À chave do carro tateada no bolso, era possível, sim, interceptar o carro e tentar uma fuga motorizada. Claro que ele tentou arrombar um ou outro carro no caminho, obviamente sem sucesso pela falta de prática. Mas profanar azeitonas, blasfêmia dessa forma era bem pior.

Pulou o último dos muros que o separavam daquela aparente breve segurança. Um vão atrás da garagem, suficiente para escutar e até cuidar visualmente movimentos da garagem do prédio, que, apesar do escândalo, precisaria aparentar alguma normalidade na rotina. Se o quisessem eliminar, como poderia ser o plano, ele imaginava, não totalmente desconexo da realidade, a vizinhança teria que persegui-lo, mas sem um total de alarde - além dos nada discreto cartazes que o próprio fugitivo já havia visto. Estaria ele procurado em rodoviárias?

Enfim, saltando de volta para propriedade que englobava aquele microcosmos de condomínio, tomou um susto tão grande ou até maior do que os condôminos haviam tomado na noite anterior. Diante daquele espaço, daquele recôncavo, daquela câmara, daquele vão que talvez muitos nem sabiam existir atrás da garagem/estacionamento, ele viu o que os olhos demoraram a crer: eram sacas e mais sacas de azeitonas. Azeitonas profanadas por quem? Por seus vizinhos.

Estilo Narrativo

Percebi que meus contos têm um estilo narrativo. Bastante reflexivos no início, pouco diálogo e depois algum acontecimento só para dizer que algo ocorreu.

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Nos próximos dias irei concluir alguns contos e tirar da ideia para o papel outros tantos que apenas rascunhei assunto. Achei divertidas algumas propostas que consigo recordar do que eu pretendia. Outro sobre coveiro e aventura sexual não faço ideia do que eu pretendia escrever à época, mas posso tentar reaproveitar a ideia.

Espero que não seja apenas impulso de ter bebido duas cervejas e estar escutando Fleetwood Mac (impressionante a qualidade dessa banda).

11/01/2025

No Decurso do Tempo (1976)

Direção de Wim Wenders em um filme que propõe vários assuntos, como se espera que decorram as três horas de sua duração. Um assunto só provavelmente seria esgotável em bem menos tempo. A solidão dos personagens é dividida quando um marido agora divorciado pega seu Fusca e o joga contra a água, numa frustrada tentativa suicida. O motorista Bruno, que dirige um caminhão-cinema pelas estradas alemãs, na itinerância de levar filmes e consertos a lugares mais ou menos inóspitos, observou (risonhamente) a cena do incidente dantesco e se propôs a ajudar o pobre "kamikaze", como veio a chamá-lo.

De uma parceria inesperada, o pesquisador, que se separou da mulher em Gênova, Itália, e o motorista, que morava no próprio caminhão, pegam a estrada a refletir sobre suas vidas. O título em inglês ficou como Kings of the Road, em uma tentativa, creio, de tornar a nomeação mais vendável e épica - justamente uma das principais críticas apresentadas no próprio filme, vejam só (imagens do diálogo final aqui trazidas).

Enquanto levava e consertava cinema e salas de cinema pela(s) Alemanha(s) setentista(s), Bruno analisava com os demais trabalhadores da indústria cinematográfica sobre as mudanças, o amadorismo, a falta de estrutura e o caráter do público, muitas vezes, como era comum à época, limitados a filmes pornográficos exibidos em sessões adultas. Salas de cinema caindo aos pedaços e que iam perdendo espaço para televisão - crítica comum em outros filmes, como o brasileiro Cinema Aspirinas e Urubus ou o Cine Holliúdy.

Enquanto rodavam pelas estradas alemãs, a inusitada dupla preparou algumas peças, entreteve crianças, descolou uma motocicleta como as utilizadas em tempos de guerra, e, principalmente para filosofia do filme, conheceu um outro solitário, despreparado para esse novo momento - um marido que recém havia perdido sua esposa, que consumou o suicídio com o choque do carro em alta velocidade contra uma árvore. Os três solitários chegam a dividir algumas cenas, cada qual com seus entendimentos, ruminações e perspectivas.

Bruno parecia o mais calejado, acostumado com seu estilo de vida, mas também revela em cenas suas ambiguidades e ambições. Sempre se sentia saudoso pelas mulheres, então justamente não queria pertencer a uma única. E ao mesmo tempo queria. E assim prosseguia sua vida de estrada. Robert, o suicida frustrado, aproveitou da viagem também para resolver questões passadas com seu pai, em uma nova oportunidade de colocar assuntos pendentes em dia.

As reflexões de No Decurso do Tempo são as mais diversas sobre as escolhas, em que o casamento frustrado quase causa a morte de Robert, causou outra morte por onde eles passaram e deixava sem rumo mais um marido, enquanto Bruno estava livre e preso no existencialismo de suas decisões, nowhere man. Em uma cena interessante, o motorista dos cines, após ter voltado à pequena cidade onde crescera, afirma que pela primeira vez sentia-se pertencente, com um passado, com uma história, algo para agarrar-se, onde situar-se. 

Robert, por sua vez, em certo diálogo com Bruno, quando este lhe perguntou quem ele era, que isso interessava, só soube responder que ele era o que são suas histórias. E assim cada um seguia percorrendo seu caminho, construindo a história como as letras que um aluno analisado por Robert, espécie de "pediatra" (como se referiu) com pesquisas de aquisição de linguagem e escrita para crianças, como as letras construíam sua própria história conforme as linhas. No alemão é comum as vogais i - e andarem juntas. Bruno brincou que ele seria o "e" entre eles. As letras compunham histórias com personalidades distintas. O "L", segundo a criança, seria deitado e preguiçoso.

Em um universo muito mais amplo do que as 23, 26 ou sei lá quantas letras em um alfabeto, a humanidade compõe suas posições talvez como se cada pessoa fosse uma letra, não se repetindo, não se restringindo como se todos os "a" ou todos os "f" fossem iguais, mas cada pessoa uma letra em um infinito texto, de infinitas possibilidades. Mas essa analogia, embora ampla, não satisfaz, porque não estamos fixados em posições restritas. Não somos as pedras solitárias, como o "p" de pedra, desta pedra específica, ou mesmo o duvidoso "o" que forma a palavra alternativa "ou". Os seres humanos têm a possibilidade de se deslocarem no tempo-espaço, construindo suas curiosas histórias. Assuntos do filme No Decurso do Tempo.

E o cinema, como um todo, o que conta? O que mostra? O que nos entretém ou traz para reflexão? Wim Wenders fazia suas escolhas marginais.

Nota final em 4,5 / 5



Profundezas

Sou todo profundezas

Que pena

Que a sociedade me apequena 

Dezenas

De verstas subterrâneas 

Reações espontâneas

E verdades subcutâneas 

Natureza 


Profundezas

Que pena

A sociedade me obriga a ser raso

A caber em pequenos vasos 

A explorar os casos sempre os mesmos

E assim ir-me sempre mais cedo

Decepcionado 

Racionado, tão pouco irrigado

Desavantajado 


Profundezas

Mergulho cada vez mais fundo

Bato a cabeça no que é raso

Na parede do labirinto 

E a sede seduz no instinto

E a luz logo se apaga

E o preço que se paga 

Pagonismo 


Profundezas

Na sociedade das certezas 

Dúvidas surgem sempre imundas 

Queimadas já foram muitas

E muitas serão 

Escuridão 

08/01/2025

Reflexão após Um Dia na Rampa (1960)

Me interessa o ser humano apaixonado e verdadeiro, desnudo dos disfarces do cotidiano, em que deve fingir para proteger seu emprego, fingir para discursar vantagem, fingir para aparentar normalidade, fingir para não chamar atenção das autoridades que o podam, fingir para caminhar pela multidão, fingir para ser bem avaliado no aplicativo, fingir para vender produto, fingir que gostaria se vestir assim, fingir que assim está bom.

Me interessa o ser humano despudorado com suas verdades, com seus gostos, mesmo ridículos e considerados ruins, manifestos, me interessa suas falhas e passo a entender melhor as minhas. Me sinto menos alien, menos alienado e menos sozinho. Me interessa que suas buscas não cessem e que na outra esquina o lampião ou os mais modernos postes a led se acendam. Ou não se acendam, mas que possam se acender.

Não me interessa o fingimento dos negócios, a capa que somos obrigados a vestir quantas horas por dia, quantos dias no mês, quantos todos meses de um ano, quantos anos na vida? Não me interessa o fingimento que é ordem, que é lei, por sobre as leis de nossa natureza, capa invisível, mas que visualizo tão fácil em ti, sorriso difícil, olhos tristes e desesperançados, não me interessa o que te causa isso, me interessa tirar-te disso. Me interessa o ser humano ainda esperançoso, que chegue ao fim do dia agradecido e ao mesmo tempo esperando que na outra esquina o lampião ou o poste a led se acenda, que a colheita valha o vigor de seu esforço, que a mesa farta não seja só a obrigatoriedade da refeição. Me importa que seu sono seja sonho e que seu sonho possa ou não ser realizado, mas que a possibilidade esteja a teu alcance, que possas acreditar tatear a parede no escuro esperando encontrar o interruptor que o salve da escuridão. Ou talvez encontre a mão amiga que necessites. 

Me interessa que teu céu tenha estrelas, ou quando não tenha, que saibas esperar as nuvens dissiparem, a chuva parar e que até dela tenhas colhido água. Me interessa que te hidrates e bebas e nutra teus sonhos, não demais também, que não percas contato com tão vasto solo, que nos é tanto, os japoneses creio que sabem.

Me interessa do ser humano que seja humano e não engrenagem do capitalismo ou outros achismos que comandam a vida dos outros. Me interessa que assumas um pouco o timão de teu próprio navio e ao final vejas, e talvez até compartilhes, algo que ninguém mais viu. Não o que todo mundo tenha visto - pois nem queriam ver.

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Acredito que quando respeitados os desejos e o direito de sonhar do ser humano, incluso este mesmo indivíduo se sinta assim mais humano, possa ser mais bondoso e não tão automático, não tão somente concorrente contra seus semelhantes, não somente um instrumento de usufruto dos mais poderosos. Acredito que respeitado o direito ao sonho, este possa olhar com mais carinho para seus semelhantes, possa desejar que eles também sonhem e, alcançando, desejar que os demais alcancem, em uma aliança até utópica - corrente do bem.


Direção do curta: Luiz Paulino dos Santos

07/01/2025

Viver os sentimentos mundanos 

Como um vinho aberto há muito tempo


02 de dezembro de 2023

Estado Itinerante (2016)

Análise de curtas brasileiros. Estado Itinerante é um curta brasileiro, dirigido por Ana Carolina Soares, que conta uma história de Minas Gerais. O espectador acompanha a trajetória de Vivi, uma jovem trabalhadora, que mora na periferia, provavelmente de Belo Horizonte ou de outra grande cidade da conurbação mineira. 

Vivi trabalha como cobradora de ônibus e o itinerante no filme está na vida em transição da passageira. No serviço, em que recém havia começado na empresa, a chance de recomeçar, mas também passando por muitos perrengues entre queixas, fofocas, estranhamento com motorista, má conduta de passageiros e outras histórias. Apesar disso, a amizade feminina com outras trabalhadoras pode ser o caminho para superação de seus próprios dramas.

A organização do filme surpreende com cenas de reviravolta, a violência que cerca a periferia, que persegue a figura da mulher, a tentativa de imposição masculina, seja pela figura de motoristas (que não aparecem, ouvimos só as suas vozes impositivas), seja pela família de Vivi, a qual também não vemos. O relacionamento abusivo é evidente, sabe-se dele pelo depoimento da própria protagonista ao confirmar que seu anel é de casamento, e a violência doméstica deixa marcas na pele e no psicológico. 

A jovem tenta se virar e ainda, através da bebida de fim de expediente, rotina comum dos assalariados brasileiros, vislumbrar alguma saída, no broto das ideias, na música, no fundo do copo, no cigarro a intervalos ou em alguém. Vivi surpreende nesses apenas 25 minutos de curta-metragem, que de fato contam muito sobre nosso Estado e a itinerância dele. A rotatividade, a busca sempre transicional pela sobrevivência, entre as fugas e as feridas, a procura por se encontrar.

Nunca é demais lembrar que são várias as Vivis (e, vá lá, os também, trabalhadores brasileiros) que necessitam de um ombro extra, a terceirização de um ombro ao fim do turno, esse direito trabalhista tantas vezes surrupiado, gente que necessita de compreensão por parte dos clientes e usuários, do comércio aos sistemas. Sairmos do automático para enxergar histórias que estão diante de nós, refletidas nas comunitárias janelas de ônibus.

Data de lançamento: 3 de setembro de 2016

Diretora: Ana Carolina Soares

Duração: 25 minutos

Produção: Denise Flores

Roteiro: Ana Carolina Soares

Elenco: Lira Ribas, Cristal Lopez, Maria Aparecida, Diane Rodrigues, Daniela Souza



Delírios de Grandeza

Desculpe meus delírios de grandeza

São minha natureza 

(Mas que beleza!)


Tapete vermelho estendido 

Castelo e toda realeza

(Mas que beleza!)


É claro que vão vir os convidados

Mas com certeza 

Os súditos, bobos da corte

Os plebeus e a pobreza

(Mas que beleza!)


Eles vão me aplaudir 

Me olharem da sacada 

Acenar e dizer nada

(Mas que beleza!)


Mas se eu quisesse discursar

Todos me escutariam

Falar durante horas

Conhecimentos e destrezas 

(Mas que beleza!)


Desculpe meus delírios de grandeza

São minha natureza 

(Mas que beleza!)


Os maiores peixes eu pesquei 

Os canais e mares eu nadei

Durante minutos, quase horas

Mergulhei

Dos oceanos eu sou rei

(Mas que beleza!)


Netuno é um que me inveja

Sobrenatural sobre a lei da natureza

Ganho no xadrez até o cuspe à distância 

E nunca perdi uma única dança

Ganho dos adultos desde criança


E com a idade só me vem experiência

Longe da decadência ou de qualquer demência

Cada vez mais eu trago a eficiência 

Nos arremessos, na cozinha, nas finanças

Domino seja na força ou na sutileza

(Mas que beleza!)


Perdoe meus delírios de grandeza

Eu fui caçar e me tornei a presa

(Mas que beleza!)


Shame (1968)

O filme Shame (1968) é mais um em preto e branco de Ingmar Bergman, o renomado sueco vencedor de Oscar. Nesse drama de guerra, a Suécia atravessa a considerada Segunda Mundial, com o protagonismo de um casal de camponeses e também músicos.

O início do filme trata da vida privada de ambos, sua rotina começando cedo, entrega de amoras nas redondezas, hábitos íntimos e alguns problemas próprios dos casamentos. Em determinado momento, o assunto é não terem filhos, o que poderia resolver conflitos internos, sanar situações, e a esposa, interpretada pela reconhecida Liv Uhlman afirma seu desejo de ter filho antes dos 30 e que tivessem três até os 40 anos, compondo a família que ela sonha. O marido é um sujeito atrapalhado, por vezes medroso e com problemas físicos. Em uma cena íntima do casal ele apresenta cãibras e desfere o momento.

Em momentos de tensão, o marido, chamado Jan, também deixa a esposa a desejar. Não se prontifica no socorro de um paraquedista preso em árvores, na primeira aparição mais séria da grande guerra. Havia a cautela por não saberem se o homem em apuros se tratava de um aliado sueco ou inimigo. É a mulher que parte rumo às árvores para averiguar a ocorrência. Quando precisam fugir, ele demonstra fragilidade para lidar com a situação de consertos e até para eliminar uma de suas galinhas, seja com a quebra do pescoço ou mesmo com um tiro de arma de fogo - lembrando que, ainda hoje, é comum aos camponeses a presença de armas.

Apesar das divergências e decepções, o caso permanecia unido. Quando são interceptados na fuga de casa pelas tropas inimigas da Suécia, os soldados os interpelam para que prestem entrevista sobre os salvamentos. A grande surpresa é que as palavras da esposa interpretada por Liv Uhlman são totalmente editadas, em uma prévia do que seria a disseminação de fake news e das edições criminosas de vídeos e áudios, assunto recorrente para a década de 2020. O casal nunca demonstrou lado político convicto, eram apenas músicos e camponeses, mas a guerra de versões os atingiria em cheio. Poupados pelos contrários à Suécia, o próprio país não os pouparia em seguida, capturados por soldados, por administrativos confusos e furiosamente ceguetas e pela tortura que ronda e fareja inimigos mesmo onde não existam. A entrevista editada está tomada em posse dos suecos. Por que o casal interferia dessa maneira? Que interesse tinham? Por que, segundo a entrevista falsificada, a esposa revelava um ardente desejo de salvação pelas tropas adversárias?

Nisso tudo, à metade do filme de Bergman, nem um padre era poupado e assim fazia companhia ao casal de heróis na trama. O humor sarcástico na obra de Bergman também está presente em cenas como a de um prisioneiro morto em que o médico o observa e pergunta se este está dormindo. O toca, o sente frio e pede rapidamente que o descarreguem pois não pode ficar apodrecendo logo ali no meio da sala. Também em cena seguinte em que o governo se vangloria de sua piedade, trocando uma sentença de morte por apenas uma prisão perpétua com trabalhos forçados. "Mais clemência do que merecem."



"A arte está entre a liberdade e a covardia."

O filme assume uma postura sensível com o nome de Vergonha, uma posição que supõe ser ocupada por muitos dos fomentadores da guerra, dos torturadores, dos captores. Posição essa nem sempre ou até poucas vezes observada em manifestações públicas de ditadores, generais e coronéis das mais diversas ditaduras. Será que possuem consciência? Será que ela pesa? Será realmente um sentimento de vergonha (shame) quando passados os fatos?

Eis os dramas filosóficos, matrimoniais, familiares, rurais, de época retratados por Bergman, acobertados, contextualizados, referidos, involucrados pelo envolvimento da grande guerra que varria a Europa na década de 1940. Em cada ato, o subjetivo do desejo, do desprezo, da dúvida, do arrependimento, da nostalgia, da traição, da solidão, do distinto sentimento seja ele qual se apresente: talvez a vergonha.

Os valores, a corrupção, a rudeza e a aspereza que a guerra obrigatoriamente insere, implica. A quem compete julgar? Você revisitou seus valores recentemente?

Entre o começo e o fim do filme, entre o começo e o fim de uma guerra (quando acaba de fato uma guerra vivida dentro da gente?), entre o começo e o fim do nosso filme, ainda é possível sonhar?

05/01/2025

Ervas Flutuantes (1959)

Segundo filme colorido de Yasujiro Ozu, datado de 1959. Ervas Flutuantes é tratado como um remake, uma atualização. O nome sugere a instabilidade da situação vivida pelos personagens, artistas de apresentação teatral itinerante. Ao desembarcarem em uma pequena cidade, logo o espectador vai saber do que se trata. Não é por acaso a escolha do chamado Master pela cidadezinha onde tentam, em vão, obter algum lucro - ou ao menos a subsistência. Inclusive "em vão" parece uma expressão propícia para vários momentos na trama. O desconcerto entre os diálogos, entre personagens enxeridos ou que aprofundam questões delicadas, também se mostra uma constante nas obras de Ozu observadas até aqui, agora cronologicamente se aproximando das últimas do reverenciado diretor.

Ervas Flutuantes segue a tônica dos filmes de Ozu. Dramas da sociedade japonesa. Dessa vez o confronto é entre os artistas itinerantes e a precariedade de manterem seus vínculos, seus laços. Temos o Mestre reencontrando sua família e os atores mais coadjuvantes de suas peças tentando vínculos, entre homens e mulheres que se apaixonam sem prognósticos. Curiosas cenas em que os atores comentam nos bastidores, esperam por cartas de fãs de cidades passadas, tentam angariar novas fãs. Entre as atrizes, a tentativa também de novos vínculos. Uma seguidora do Mestre mostra-se enciumada. Outra é praticamente contratada para uma missão de sedução relacionada a esse primeiro caso.

No filme analisado, o flutuante está presente na cidade à beira-mar, em algumas cenas de praia e pescaria. Também existe a crítica aos tempos modernos, quando o jovem, então classificado como sobrinho do Mestre, debate com o tio. O tio recomenda que ele nem olhe a peça, não é coisa que o valha, para um jovem tão inteligente e culto. O rapaz então questiona o porquê de não fazerem peças mais sofisticadas, se há capacidade para tal. O Mestre finalmente responde que não há interesse nem sofisticação para o atual público, então precisam trabalhar com o que busca ser minimamente rentável. Críticas à educação e quebras de paradigmas no Japão que sempre se transforma, da época para as telas de Ozu. Ao mesmo tempo, não sejamos inocentes, o diálogo retrata uma tentativa - em vão - do Mestre proteger seu sobrinho da adoração às atrizes.

O ritmo das tramas lentas é conhecido, mas este desagradou pela agressividade do Mestre, que não é reprimida no filme. Ok, mostra o descontrole machista de um personagem, mas a falta de combate às atitudes por parte dos demais personagens gera uma determinada angústia pela situação. Suas atrizes são muito mal tratadas em suas mãos, demonstrando ele somente bom trato com a mulher que realmente ama. Complexidade no personagem, pois também, embora ausente, regressando pouquíssimas vezes à vila, demonstra preocupação com o rapaz. Dramas familiares instaurados.

A relação entre os artistas do teatro e a dificuldade de obterem sobrevivência da arte contornam os dramas mais aguçados do filme. A irmandade entre os atores é testada em alguns casos. A recepção da vila é variável, entre aclamações, interesses e até repulsa. Quem nunca passou por isso por onde passa? Sobre as divisões de camarins, histórias de vida e horas de lazer, os diferentes atores traçam planos do que podem melhorar para o futuro, do que almejam e que outras opções possuem para tentar sobreviver no ainda castigado Japão pós-guerra, pouco mais de década depois dos intensos conflitos com os chineses. Trabalhos assalariados e novos públicos são difíceis de conquistar. Atualizações para outras realidades que tornam Ervas Flutuantes mais um clássico de Yasujiro Ozu.

Nota final em 3,5 / 5



Dramas Espirituais

Servo dos meus nervos

Me reorganizo

Após mais um temporal

De granizo

Após o final

E um início 

Após o canavial

Incêndios, prejuízo 

Ano em espiral 

E o solstício 

Alameda conjugal 

Armistício 

Me reorganizo

Sobre os ombros, umbral


Servo dos meus nervos

Conto carneiros

Procuro trevo especial

Espiritual 

Entre terreiros e catedral

Entre os primeiros e 

Quem ficou pro final

Entretenimento 

É a terra em transe

Glauber Rocha imortal

Acendo tochas que se apagam 

Afinal

Me reorganizo após outro temporal

De granizo

Pelos vidros do que sobrou

No umbral da arquitetura

Entretenimento é a ditadura 

Mais dura impossível; colossal

Fartura em horário comercial

Fatura com débito programado

Oferta de tempo limitado 

Tributação mensal

Próxima estação

Desembarque lateral

Ao lado de nada

O breu espiritual

Na caçada as almas

No umbral

Cabides, esfinges 

Ritual 

Grosso sal, grosso sal, grosso sal 

E não sai


Servo dos meus nervos

Ritmo dos sinos da catedral

Sinagoga, sinais orientais

Rezas, chás, tapetes persas 

Persianas e vitrais 

Chamas e chagas espirituais 

Hare Krishna e o caminho das Índias

E dias em que o sol não sai

E Dalai Lama e as centrais

De reclamações, de aclamações 

Os umbrais 

Os urubus 

E os umbrais

Os urubus 

E os umbrais 

Os urubus

E os umbrais 

Os urubus 

E os umbrais

04/01/2025

O Mundo por um Fio (1973)

Aqui o Rainer Werner Fassbinder e sua trupe lançaram um dos maiores filmes feitos. Sem exagero. Pensar após assistir ao filme que ainda foi lançado durante a Guerra Fria, com a Alemanha dividida. 1973 é a data de lançamento do Mundo por um Fio, um clássico que antecipa questões das redes sociais, robótica e, nosso tema mais do que atualmente à tona, inteligência artificial.

Uma empresa contratada pelo governo alemão formula um mundo cibernético em que foram desenvolvidos cerca de 10 mil protótipos de indivíduos. 10 mil personalidades diferentes que atuam entre si, com movimentos e gostos programados, mas que também possuem a capacidade sentimental e, portanto, até da revolta.

Quando pessoas ligadas à corporação começam a sumir, o mistério de Mundo por um Fio está instaurado. A trama do filme consiste na busca do cientista e coordenador Stiller em descobrir o que está por trás da morte de Henri Vollmer, então chefe do setor na empresa (talvez presidente). Stiller passa a desconfiar de parceiros de trabalho, de trocas entre os mundos real e fictício e de sabotagens para eliminar quem saiba demais sobre o projeto do Simulacron. 

O filme antecipa muitas questões que nos remetem a filmes bem famosos que viriam na posteridade, como Matrix, A Origem, Eu, Robô, também fazendo paralelo com a história do clássico 1984 e tantos outros. Sobre a programação desenvolver sentimentos. Sobre a possibilidade de exclusões e limpeza da memória. Eliminar indivíduos e ainda fazer com que as pessoas que acreditassem na existência desse indivíduo pareçam loucas, facilitando também suas próximas eliminações. A convivência de mundos paralelos em que se necessitam conectores para adentrar o outro universo também é tema, por exemplo, do então campeão de gastos na época em que foi lançado, Avatar. É interessante apontar que os orçamentos de Fassbinder e sua equipe eram baixos, produções simples que apostavam nos diálogos e nos sutis jogos de câmera para prevalecer no lançamento de filmes memoráveis e ainda válidos mesmo passado meio século.

Em O Mundo por um Fio a ideia de jogos de espelhos é estupenda. A direção orienta diálogos em que o emissor apareça em primeiro plano, mas o receptor esteja aparecendo para o espectador pelo reflexo de espelhos. Além do mais o filme ainda mexe com a ideia do duplo, trazendo traços dostoieviskanos para trama. Quem é o verdadeiro e quem é o simulacro? Quem é o original e quem é a cópia? Quem é clone de quem? Quem está blefando e quem está realmente apoiando nosso pobre herói Stiller?

Enfim, o jogo de espelhos é fantástico. Um jogo de cena que, mesmo sem toda a carga de significação já seria por si só genial, mas com a temática dos duplos e do mundo paralelo tornam o sublime. Apesar de que as mais de 3h30min da produção de O Mundo por um Fio (originalmente como série para televisão pelo que consta) possam suscitar diversas teses e pelo menos 10 mil (para referência ao número) possibilidades de prosseguir esse texto, deixo aqui por encerrado.

Nota final ⭐⭐⭐⭐⭐





03/01/2025

O Medo Consome a Alma (1974)

Rainer Werner Fassbinder foi um dos diretores mais polêmicos da História. Uma ousadia extravagante para colocar em suas histórias e adaptações problemáticas muito avançadas para época, mas que também ditariam tendências na modernidade alemã. Por exemplo, temáticas que abordavam a existência da homossexualidade, o preconceito entre classes, o machismo (talvez a temática entre essas mais presente em chocantes cenas em seus filmes) e finalmente o tema de O Medo Consome a Alma (1974), com a abordagem do preconceito racial na Alemanha. Além dele, é claro, o etarismo, termo que entraria em voga somente renitente décadas depois. Sinais do avançado Fassbinder em trazer, entre um cigarro e outro, as tendências futuras para pautas.

A senhora Emmi Kurowski é uma viúva na casa dos 60 anos que, fugindo de uma inoportuna noite de chuva, se abriga em um bar especializado em receber imigrantes. A música árabe preenche ao fundo as cenas iniciais no nefasto ambiente. Sem jeito, ela pede uma Coca-Cola na obrigação de consumir e consumar sua presença. O imigrante marroquino Ali, que na verdade possuía um nome muito mais longo, mas era conhecido pejorativamente como Ali, é encorajado e retira Emmi para dançar. Os dois passam a se entender rapidamente formando esse casal deveras inusitado.

Se o filme anterior analisado neste canal, o Flor do Equinócio (1958) de Yasujiro Ozu tratava do poder de escolha das mulheres para o casamento, será que observamos tantas mudanças para Alemanha pós guerra, neste espaço na Munique em filme de 1974? A senhora Kurowski, viúva de um polonês, desejava companhia em casa e a chegada do negro marroquino Ali iluminou seus dias, fazendo com a que a solitária veterana logo vislumbradas uma união com o rapaz mais de 20 anos mais jovem.

Mas o preconceito racial aflora em uma Alemanha ainda muito preconceituosa, brotando animosidade desde o prédio onde Emmi vive, passando pela apresentação de Ali aos filhos da matriarca, e até no serviço, onde Emmi trabalha na faxina, na limpeza de um prédio em que cada empregada se dedica ao espaço público de dois andares. No caso empregatício, ainda há uma cena em que uma das funcionárias foi demitida por roubo e a nova contratada é uma moça da Bósnia Herzegovina, que passaria a receber um salário marcos menor do que as demais serventes, justamente e puramente por ser estrangeira, estar menos adaptada ao idioma, às condições de trabalho e aos seus direitos ignorados.

Assim também se sentia o negro Ali, sem nome, pejorativamente chamado por um nome comum aos árabes, trabalhando em uma oficina e, antes de Emmi, vivendo em uma peça de alojamento com outros cinco homens. A oportunidade do casamento desperta uma nova viva e perspectiva em Ali. Mas os problemas cercam o inusitado casal, sempre em cenas duras, cruas e, por que não, cruéis depositadas desde as lentes orientadas de Fassbinder. Em O Medo Consome a Alma - ditado árabe dirigido por Ali a Emmi em uma cena íntima de ambos no apartamento da senhora  - o drama é uma constante, como é constante nos filmes do falecido alemão, o qual ele mesmo adorava aparecer em seus filmes, geralmente com papéis secundários. Dessa vez o bigodudo aparece como genro de Emmi, casado com a única filha mulher da senhora de Munique.

Fassbinder era tão desgraçado que mesmo trazendo essas temáticas contra preconceito, interpreta muitas vezes os personagens mais rudes, agressivos ou preconceituosos. No caso de sua atuação em O Medo Consome a Alma, o genro de Emmi tem um chefe turco e o despreza. Não aceita receber ordens de estrangeiros. Os repudia e obviamente não aceitaria o casamento inusitado de sua sogra com um marroquino.

Sabe-se que mais de cinco milhões de turcos vivem atualmente na Alemanha. Mais outros marroquinos, tunisianos, argelinos como Ali, mais outros muçulmanos de além África, e como a sociedade alemã, passadas décadas, porém poucas gerações do asqueroso nazismo, lida com eles? Preconceitos velados? Cenas escondidas entre as paredes de prédios e apartamentos? Diferenças entre interiores e as grandes cidades como é Munique?

Fassbinder foi marcante no chamado Novo Cinema Alemão e deixou como legado filmes intrigantes como a ousada proposta de O Medo Consome a Alma - não bastasse a escolha certeira em temáticas ainda nos brindou com poéticos títulos de inebriantes obras.

Nota final em 4,5 / 5






02/01/2025

Flor do Equinócio (1958)

Segundo rápida pesquisa, equinócio é o termo que marca as entradas das estações de primavera e outono, quando os raios solares sobre os hemisférios marcam dias e noites iguais sobre a linha do Equador. Também existe o solstício, que marca o início de inverno e verão. Pois bem, Flor do Equinócio (1958) é mais uma obra do diretor japonês Yasujiro Ozu, o seu primeiro longa-metragem colorido.

Flor do Equinócio mantém a pegada do diretor de trazer dramas familiares que tão bem ilustram e desenvolvem, com o passar dos anos, das décadas em que produziu cinema, a sociedade japonesa. Conforme seus filmes avançaram de curtas mudos para longa-metragens e, para esta análise, saindo do preto e branco para o colorido, notamos a transformação da sociedade no Japão, em especial em Tóquio, metrópole central para o cinema de Ozu. As profissões e a maneira como as famílias se comportam vão sendo mostradas a cada produção do importante diretor.

O foco de Flor do Equinócio é sobre o poder de escolha das mulheres em seus casamentos. Os casamentos arranjados vão deixando de ser a regra, no que nos deparamos com a revolta de uma jovem perante a negação de seu pai em relação ao noivo que ela escolheu. A desavença permeia o filme. Valores sociais também são testados, por exemplo, o funcionário do pai de família que ia para um bar de reputação duvidosa após cada expediente de trabalho - o que também gerou, sem dúvidas, parte do cômico ao filme. O funcionário ficava constrangido de ser identificado como cliente fiel da casa, o que causava más impressões no estimado chefe.

Em ritmo lento para suas quase duas horas de duração (1h57min), Flor do Equinócio não chega a cativar como obra-prima de Ozu, mas demonstra mais uma vez a sede do cineasta em apontar as mudanças sociais, o desequilíbrio perante a tradição japonesa, os novos ventos ou, como sugere o título maior, as novas primaveras. Assim que o filme em questão ao passo que respeita escolha de planos e cenários típicos de Ozu, em sequências de habituar o espectador, também prossegue com as quebras de paradigma, paralelamente às transformações de Tóquio. A forma tradicional dos casamentos arranjados posta em xeque, o direito de escolha de uma filha em desafio a seu pai, com apoio de amigas, do próprio noivo e de outras pessoas que os cercam.

A ordem dos fatores, da forma como os jovens escolheram contar, altera o resultado? É de se descobrir assistindo a essa obra de Yasujiro Ozu.

Marcantes são passagens em que o pai conversa com seus contemporâneos sobre as mudanças e até uma frase que muito escutamos hoje em dia: "como é difícil reunirmos a família atualmente...".



Sapphire (1959)

Sapphire é um filme inglês de 1959, que decorre das investigações sobre a morte da jovem homônima (Sapphire, né), em que a polícia local deve percorrer as pistas entre uma família burguesa tradicional, a do então namorado de Sapphire, clubes de dança, pensionatos e demais lugares que levem a desvendar o mistério.

O tema racial é a grande cartada do filme inglês, mostrando o preconceito da sociedade britânica com os negros, cada vez mais frequentes na Londres e na Inglaterra como um todo. Esse filme pouco visto no Brasil chama a atenção para o tempo percorrido entre a sociedade inglesa do final dos anos 1950 para o período em que estamos, mais de 70 anos depois. E o que muda? Como são tratados os jovens hindus, negros, muçulmanos e demais minorias dentro da Inglaterra?

Durante a investigação, os próprios protagonistas da polícia assumem opiniões e percepções divergentes, sendo um dos investigadores mais liberal (ou ao menos imparcial na busca pela resolução do mistério), enquanto o outro vez por outra tece julgamentos, sugerindo inclusive que os negros voltassem de onde vieram. O companheiro, calmamente, pergunta: quando há um crime contra uma velha senhora deve-se eliminar os maníacos causadores ou eliminar as velhas senhoras? É o caso da morte da polêmica Sapphire, uma jovem filha de mãe negra e pai branco, julgada por ambos os lados em sua condição mestiça. Um de seus parceiros de dança, em depoimento, chega a afirmar que não gostaria de um envolvimento mais sério com a jovem, por conta de sua origem em família meio branca. O pai do rapaz não aceitaria.

Mas evidentemente os preconceitos que Sapphire sofre são de origem dos brancos, que não aceitam a presença dela em seu convívio. Pelo âmbulo da narrativa, outros personagens, como o capturado Johnnie, também passam pelas garras do preconceito, sendo rejeitadas ajudas enquanto é fugitivo, expulso de um bar e sofrendo depoimentos severamente agressivos por parte da própria polícia, que não está, apesar da maneira mais sutil, isenta das críticas na obra.

Um filme que prende de certa forma o espectador na espera pela resolução da resposta de quem matou Sapphire. As contradições, as mentiras, as percepções e os depoimentos conduzem a narrativa por caminhos sinuosos de uma Londres cosmopolita e desigual, recheada de preconceitos, de convívios complicados e de questões raciais, como propõe a sinopse do filme, que mais tarde causarão ainda mais polêmica e tensões na Inglaterra.

Em meio a tantos filmes rasos de crimes pelos crimes, de investigações policiais focadas apenas em métodos e para iludir jovens espectadores com expectativas de cumprimento de leis e ordens, Sapphire demonstra novas perspetivas sobre casos raciais que também suscitariam tendências fortes para recriminações, processos e protestos nas décadas seguintes nos Estados Unidos, por exemplo. E que, bem sabemos, pelo mundo, mas pelo próprio Brasil, ainda há muita desigualdade em formas de tratamento: policial, social e repercussão midiática - esta última que até não é o foco da narrativa Sapphire, mas poderia ser mais abordada.

01/01/2025

Formigas

Estava observando as formigas que procuram algo, não sabemos o quê, mas algo procuram. Ou fingem procurar e nos enganam bem.

Será que no formigueiro também existem as despropositadas que somente fingem ajudar? Aquela história de parecer ocupado no serviço, somente caminhando de um lado ao outro sem função alguma.

O subjetivo é muito interessante. Como medir? Onde acaba essa vontade de estar contigo? Que contamina os hábitos, as ideias, as escolhas, os afazeres. Essa vontade que já não é possível colocar de volta à irrelevante medida da insignificância trancafiada e interna. Essa medida que já não cabe mais em mim. Até onde vai? Até onde nos persegue e até onde nos alcança?