Conforme dito, desafivelaram os cintos, destravaram as portas e pousaram-se à beirada da rua, para acionar a calçada. Voltaram a lacrar as portas e o pai deixou em alerta o alarme. Embora nenhum transeunte passasse por ali. Provavelmente menos de um para cada 10 minutos. Nem os cachorros da vizinhança se manifestavam naquele final de tarde. O sol se declinava por sobre os telhados da via. Os únicos pets a darem sinal de vida eram os gatos da proprietária do apartamento em questão, o que motivava a visita. Os felinos botaram a cabeça por entre as grades de uma das sacadas acima.
Tocaram o interruptor e ela demorou quase dois minutos para descer daquele terceiro andar. Se identificaram como os interessados em adquirir o imóvel. Subiram pela escada íngreme de degraus perigosos. Se espantaram por aquela senhora subir e descer tamanha dificuldade diariamente. Seria um ponto para pressionar caso ela não cedesse à oferta.
Chegaram defronte à porta do apartamento do terceiro andar, em um inexplicável molho de chaves, a velhinha se perdia para saber qual a correspondente daquela específica fechadura. Na terceira tentativa, talvez nervosa por receber visitantes depois de tanto tempo, acertou. Abriu, arredou-se para dentro do vestíbulo e convidou os interessados. A sala era contígua à cozinha. Havia um sofá de uso limitado para dois assentos, além de cadeiras de madeira, revestidas com assentos de tecido. O filho e a mãe se acomodaram nas cadeiras essas. O pai optou por um banquinho, também de madeira, com um estofado um pouco mais confortável, aparentemente, embora sem encosto. A senhora, acariciando um gato na almofada conseguinte, voltou-se para o sofá, que ela de pronto respondeu ter recém adquirido pelo preço de 180 reais: - uma pechincha!
O marido sorriu e concordou. A esposa parecia impaciente, tentou esboçar uma reação semelhante, mas lhe soou toda falsa e logo desistiu, sem completar um segundo para seu infeliz movimento de boca.
- 180... Precisamente. - Emendou o marido para quebrar o silêncio. - Esse é o valor que logo chegaríamos. - Ele resolveu não perder tempo na negociata.
- O que quer dizer? - Rebateu a velha residente.
- É o valor de minha oferta.
- Não querem um chazinho? Já estava fazendo para mim. - Mudou de assunto a dona do gato.
- Obrigado. Recém tomamos café.
O filho até faria menção de aceitar, mas desistiu com a tomada de dianteira feita por seu pai. Engoliu em seco e sacou o celular do bolso. Estaria atento à conversa se precisasse ou considerasse necessário interferir.
O pai começou a tamborilar com os dedos sobre a mesa e até ameaçou evocar a mão fechada contra os lábios para simular um instrumento de sopro, hábito que sua mulher odiava. Ao aproximar a mão da boca, ela lhe surpreendeu com um olhar inquisidor e ele logo desistiu. Voltou a tamborilar com a outra mão enquanto a velha se deslocava alguns passos do centro da sala para o hemisfério da cozinha.
- Conhecem o apartamento? - Perguntou a velha, esquentando a água do dito chá.
- Sim - Prontificou o marido.
- Ainda não vimos, apenas as fotos. Você veio antes aqui, Antônio?
- Ah, sim, sim, por supuesto, as fotos.
- Antônio é arquiteto. É muito imaginativo.
- Me encanta a arquitetura do edifício.
- É só um prédio velho - interveio a velha.
Voltou-se profundamente o silêncio. O filho percebeu e retirou qualquer ruído do teclar do celular, que estava em volume baixo, mas ainda audível. Era tamanho o silêncio.
- Enquanto ferve a água, podemos dar uma olhada, o corredor desagua nas peças todas. Isso vocês devem saber. E não há muito o que se ver. As fotos na imobiliária estão com minhas poucas coisas que acumulei. Sou uma senhora muito sozinha.
- Deve dar trabalho um apartamento desses só para a senhora.
- Uma diarista me visita quinzenalmente. E ainda adianto trabalhos para ela. Não duvidem de mim.
A mulher tentou melhorar o sorriso. Foi melhor do que a primeira tentativa, de fato.
- São bonitas suas estantes. - Emendou a esposa, já desmanchando o movimento anterior na face, dessa vez nem se esforçando por repor.
- O principal são os conteúdos nelas. Os quadros, as lembranças...
- Entendo. - Apenas assentiu o marido.
- Já enterrei minha família - Dizia a velha, que na verdade nem tão velha era, apenas com idade para ser mãe do casal, avó do menino, que até seguiu pelo corredor, mas à essa altura sem desgrudar do celular.
- O revestimento das paredes é muito bom - se manifestou Antônio.
- Parece que sim - Concordou o filho.
- Certeza que é - reiterou o Antônio
- Isto é - se limitou a mais velha.
Ela caminhava com alguma dificuldade, após uma sequência de passos, apoiando-se com a mão na parede. Antônio ficava cada vez mais amargurado, angustiado com a situação.
- Dona...
- Nilza.
- Dona Nilza... Averiguamos o bairro... A área total, em metros quadrados, excelente... O revestimento, os parquês, embora alguns fora de lugar, naturalmente, sem problema. O acabamento das paredes, o das lajotas nos banheiros, acabo de ver... Em ordem para o que procuramos... 180.
- O anúncio é de 190.
- 180. Em mãos. À vista.
- Conheço seu perfil, Antônio.
Ele engoliu em seco.
- Conheço seu perfil - ela repetiu, abusando de embrenhar-se como a voz da experiência ali presente.
Antônio, que havia voltado ao ponto zero, seu banquinho ligado à mesa, a de refeições, leitura e o que mais a senhora pudesse fazer, repetia o tamborilar de dedos. Nervoso. Quase elencou o instrumento de sopro improvisado com a outra mão para a sua orquestra.
- Tem aparecido clientes, dona Nilza?
- De fato não têm vindo.
- 180 em mãos é uma belíssima oferta.
- Os materiais de construção subiram de preço. Estava pensando mesmo em valorizar mais meu apartamento.
- Mais do que 190?! Estaria disposta a 200?
- 200 é fora de questão - interrompeu Suzana, esposa de Antônio.
O marido abriu as mãos como em um gesto de complacência, de concordância pela opinião emitida pela esposa. Não disse palavra.
- Sim, sim... 200.
- Mas a senhora acaba de dizer que não procuram sequer pelos 180!
- O que não muda o fato de que os materiais de construção subiram, seu Antônio... Conheço seu tipo e você não conhece o meu... Leio jornais e vejo televisão. Só não estou tão inteirada quanto o menino.
Fez um gesto de cabeça em direção a Luis Otávio, que repentinamente elevou o rosto que estava direcionado à tela do celular. Alçou as sobrancelhas decretando sua parcial derrota e voltou a seus interesses no dispositivo que por ora gastava os dados móveis, pois não teria a cara de pau de pedir o wi-fi da senhora. Se é que ela tinha.
- É, não tanto quanto ele, Antônio.
A água ferveu.
Fervia também a paciência do Antônio, que tinha trabalhos atrasados de sua agência, mas, mesmo assim, encaixotado pela sua ansiedade e por alguma pressão de Suzana, resolvera usufruir do sábado para estar ali, disposto a resolver o dilema do apartamento naquela outra região da capital.
- 195 - disparou.
- Antônio!
- Pai!
- Shhhh. 195, dona Nilza. Veja bem, viemos com a sabedoria dos 190, nem ideia que a senhora aumentaria. É dinheiro à vista, é pegar ou largar.
- Vocês têm cachorro?
- Temos - disse Luis.
- Não é um bom apartamento para criar cachorros. - Disse, acariciando o gato imóvel no sofá, alheio ao tom intempestivo da conversa. - Nunca criamos cachorros aqui.
- Até parece que esse seu gato já nasceu aqui.
- O avô dele era daqui.
Para Antônio era como se fossem o mesmo.
- Há outras casas no bairro, apartamento é somente este. Vocês precisam de uma casa, sr. arquiteto - Insistiu a senhora. - Só está à venda este andar porque minha filha, que mora longe, quer me levar com ela. Ela sabe de nada. Não sabe o que é melhor para mim. Quero continuar bem aqui. Respeite uma anciã como eu.
- Conheço o perfil. - Apenas disse Antônio, reticente. - Nós voltaremos. Poderia falar com sua filha sobre o apartamento?
- Não poderia.
- Tudo bem, daremos um jeito.... Nem que seja por 200.
- Antônio!
- Pai!
Antônio se levantou, retirando da gola rumo ao rosto seus óculos escuros. Tentou fazer cara de mal, mas não parece ter levado muito jeito para isso. Parou de súbito, antes que a senhora lhes abrisse a porta, diante da estante tão elogiada anteriormente. Um retrato em específico lhe concentrava a atenção. O rosto esmoreceu por baixo dos óculos escuros, rugas estranhas tornaram sinuosa sua fronte. Ele engoliu em seco, respirou fundo e retirou-se ofegante, ainda dirigindo, por baixo dos óculos escuros, um olhar suplicante para a senhora, que quase o entendeu, que também se tornou vacilante, mas deixou-o ir. Sem mais delongas sobre a conturbada negociação infrutífera.
Cada passo no lance de escadas o levava de volta a 20 anos atrás. Ele segurou as lágrimas. Amava uma das filhas da senhora, teria que negociar com a outra, mas não poderia, seria prontamente reconhecido. Foi naquele apartamento sua noite mais marcante. Naquele apartamento, inclusive, começaria a ser gerado seu primeiro filho. Mas Luísa, a filha da senhora, que estava em férias então com o marido, ela nunca contou de quem era aquele princípio de gravidez. Antônio não tinha emprego, não estudava, não se sentia confiante para assumir tudo o que viesse. Luísa certa vez entrou em ebulição com a família, não resistiria mais ali, estava disposta, com duas bolsas, a sumir de casa, a procurar Antônio, a ver o que poderiam fazer. A pressioná-lo a fazer algo. Ele, que se culpava, mas não se movia.
Ela saiu de carro, parou no primeiro orelhão, telefonou para a casa de Antônio, chamou-o de voz angustiada. A mãe de Antônio atendeu, se preocupou, mas passou-o ainda fora do gancho. Ela contou tudo no tom de urgência. Antônio petrificado novamente. Mas cedeu, disse que ela viesse, que tentariam resolver o que fazer. Mais dois segundos e conseguiu gaguejar para que não fizesse bobagens. Ele poderia buscá-la. Ela insistiu que dirigiria até a casa de Antônio, que a família poderia caçá-la pela fuga inesperada. Olhava para os lados enquanto usava o orelhão e não demorou mais, queria voltar para o carro e não só ouvir, como ver Antônio.
Em um cruzamento, tudo acabou. Uma colisão direto na porta da motorista. Do carro e da jovem pouco sobrou. Luísa recém havia saído de seu bairro, mirando o carro em direção ao outro lado da cidade, para o bairro e a casa do Antônio. Ele estranhava e se desesperava pela sua demora. Resolveu, após uma hora, refazer o caminho que ela faria. Quanto mais corria, mais se esforçava, maior era o desespero. Demorou uma hora e meia para chegar ao local do acidente. Estavam finalmente recolhendo o carro. Apesar do impacto do acidente fatal, Antônio reconheceu o carro de Luísa. Ainda havia sangue no asfalto. Luísa e do que viria a ser o bebê, Antônio nunca mais viu.
Chegou a ir para o hospital, só não entrar no IML. Reconheceu, ao longe, a família de Luísa. Teria medo de ser reconhecido por amigos mais próximos dela. Quando viu alguns se aproximarem da família, fugiu. Sem estudos e sem empregos até então, foi direto para sua casa. Avisou a mãe aos prantos que precisava partir. Arrumou sua mala. Disse que não era culpado de crime, mas poderia ser apontado por gente influente que lhe manchariam a já desgraçada vida. Beijou a mãe e procurou pelo primeiro ônibus.
Os amigos de Luísa tinham dúvidas, assim como os pais da jovem. Ela era bem requisitada e o Antônio, daquela festa, era um possível palpite, mas o com menos pinta de assumir a paternidade. Para o comentário para aqueles lados da sociedade, para os donos daquele prédio inteiro de quatro andares, estava no final da fila. Mas Luísa não contava quem era o pai da criança e as suspeitas começavam a ficar mais fortes. Apenas duas amigas de Luísa sabiam. Ela havia confessado para Manuela e Lissandra. Com a súbita morte da amiga, em que a família confessou o desespero todo da situação do dia, foram ao encalço do tal Antônio, que nem costumava frequentar os mesmos círculos de amizade.
A irmã mais velha de Luísa trabalhava fora, mas em cidade próxima. Tinha sido informada de toda a fatalidade e pegou o primeiro ônibus. Quando chegou na cidade, Antônio, azarado de tantos azares, ainda estava aguardando que o seu partisse. Ele havia perdido o anterior por cerca de três minutos. Após quase hora por ali, o ônibus da irmã de Luísa havia chegado. Ela desceu, ele iria subir. A instantes, a metros da porta, trocaram longos olhares. Antônio achou que já estava era vendo fantasma. Não bastasse, a jovem talvez tivesse gosto semelhante da irmã falecida. O olhar entre os dois demorou o equivalente a séculos, naquele conta-gotas de segundos. Ele finalmente embarcou. Ela botou na cabeça a tragédia toda que teria que enfrentar e seguiu, tão atônita como qualquer outro envolvido na trama familiar, embora não fosse exatamente a pessoa mais próxima da irmã.
A família entrou em desespero, culpou indiretamente o pai da criança que nunca nasceu, pela morte da jovem Luísa. Afinal de contas, o motorista do carro que colidiu com Luísa também havia falecido. Não poderiam culpar outro morto. Poderiam, sim, mas procuravam pelo vivo. Aliás, a confusão no hospital que salvou Antônio foi pela quantidade de parentes do outro condutor e, no calor daquele dia, quase que as reuniões de pessoas pelos motoristas opostos que se fecharam naquele cruzamento termina em briga na porta do hospital. Ficaram no quase.
Quanto à família, não podiam criminalizar de botar cartaz de procurado contra Antônio, mas Manuela e Lissandra, que sabiam dele, informaram a irmã. Ela reconheceria. O contato visual foi tão forte que Antônio nunca esqueceu. Voltou a ver a Maurília, irmã de Luísa, na televisão, chorando pelo falecimento da irmã. Ele entendeu toda a cena da rodoviária. Queria distância dela... E conseguiu. 18 anos morando longe, morando fora, esperando todas as poeiras possíveis baixarem.
Reconstituiu a vida. Teve um outro filho, com a Suzana, com quem se acertou. Nunca esqueceu Luísa, muito menos a trágica história. Voltou à cidade com a desculpa de retornar para onde nasceu. Ele já havia perdido a mãe. Ela e os irmãos com quem nunca mais teve contato. Era um foragido daquela catástrofe. Foi morar para outro lado, mas viu pelas ofertas um apartamento à venda. A família de Luísa, que era dona de todo aquele prédio importante, agora tinha apenas um apartamento. O pai de Luísa morreu, muito pelo desgosto, resumiria. A velha se mantinha forte sozinha, ou quase isso, capenga por aqueles degraus e longo corredor, cada vez mais longo, pelo túnel do tempo e por conviver sozinha com o avançar da idade. A Maurília, que começou a se tornar cada vez mais durona como rocha, apenas queria que a mãe vendesse de uma vez o andar em que vivia e fosse adiante. O prédio era decadente, mas a velha senhora, dona Nilza, queria continuar vivendo por ali.
Mãe nunca esquece e o nome Antônio também não seria esquecido. De tão comum, deve ter culpado uns quatro ou cinco por pura paranoia naqueles anos todos. Os Tonis e Toninhos e Tonhões que se cuidassem. Nenhum chegaria perto de Maurília. Ela estranhou a procura daquele apartamento velho em zona pouco comercial, pouco industrial da cidade, embora pacata, uma família, gente ainda no ápice por viver e se socar por ali. Imaginou a briga daquele Antônio com a tal Suzana para forçar a mulher a dar as caras por naquele imóvel. Antônio, outro cabelo, outra barba, o mesmo nome.
Por precaução, por instinto maternal, por suspeita aguçada, telefonou para Maurília.
- Acho que o encontramos.
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