01/01/2021

Perdão às andorinhas e gaivotas e maçanicos

Após assistir ao filme de Manou, a Andorinha, animação que me parece ser de origem alemã, com direção e produção e um impacto coletivista interessante para o imaginário de crianças, jovens e quaisquer pessoa, tenho observado algumas revoadas, bandos cruzarem o céu. Liberdade deles, livres de impostos, tarifas, custos, ordens e horários. O instinto e o pacto do bando a favor dos indivíduos, conjuntos que planam com a beleza de suas asas. Eles nos sobrevoam enquanto buscamos ganhar a terra, um pedaço para chamar de nosso ninho, protegê-lo dos demais, nos isolarmos em algum canto, contra os furtos de fortunas e contra a pandemia vigente. Para ganharmos os céus só por meio dos aeroplanos tecnológicos, cujo conseguimos adentrar através de passagens aéreas caras, fora de nossos orçamentos, também por conta da logística de dias de trabalho e férias. Há também as imagens de satélite chegando para nós através da imensidão. Mas aí estamos presos diante da televisão, sobre as almofadas do sofá da sala de estar.

E os pássaros acima de nós. Manou e as demais andorinhas, seu irmão gaivota e as demais gaivotas (Manou era adotado). Da minha cadeira de praia no interior de nosso restrito pátio, cercado pelos muros e cercas elétricas, olho para os bandos enquanto nossa gata, Melissa, me faz companhia, deitada sobre o piso que considera mais adequado para suportar o calor do verão nesta virada de ano. Por uns instantes, cometo a heresia de admirar mais aos pássaros do que à preferida Memel, nossa companheira desde 2017. Entre bocejos e semicerrar de olhos, Melissa encontra o mundo dos sonhos, enquanto me pairo a reflexões.

Conversava mais cedo com uma professora de Nutrição que está na Costa Rica sobre a condição dos latino-americanos terem melhores noções de coletivismo do que a ilha brasilis, na qual vivemos. Enumerei alguns pontos, como desde as origens com a vinda dos europeus, a demora pela independência e a prorrogação do período escravocrata até muito recentemente. Como a população ainda não parece associar a força que possui, as possibilidades, os lugares que merecem. As relações ainda parecerem muito trancafiadas e hierarquizadas, entre patrões/senhores e funcionários do proletariado. As noções faltando. A consciência de classe em falta. A consciência dos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras, as conquistas operárias, tudo isso muito distante do entendimento. Nosso sistema educacional que não aborda esses direitos, as influências externas (principalmente dos Estados Unidos) que nos complexam e nos encaixotam como vira-latas. Nossa extensão territorial e a desarmonia entre as regiões, a falta de unidade para garantir a luta e as vitórias que dela poderiam surgir. Estamos tão distantes.

Enquanto isso se recolhem Manou e as andorinhas e as gaivotas acima de mim. O maçanico do banhado também em formações negras no céu. A leitura do final de tarde é do livro Troca d'Armas de Luisa Valenzuela, uma argentina sobre o período conturbado da ditadura militar em seu país. Protagonismo na cabeça de personagens mulheres sobre como enfrentam os complexos da época, seu espaço, suas lutas, seus amores, suas vivências. Luisa é uma exímia escritora, fácil de se elogiar, difícil de digerir, tamanha qualidade do que transpassa para o papel. O livro me parece raro, tive que cadastrá-lo no site Skoob. Espero que mais pessoas acompanhem meu futuro julgamento de cinco estrelas para sua obra. Pelo incrível que pareça, o livro tomei de escolha após um início insatisfatório, quanto ao ritmo apenas, tomara, de Dou Por Vivido Tudo Que Sonhei, da também sul-americana, porém chilena, Isidora Aguirre. É a procura pelas vozes de nossa América através da crítica social. Escritas sensíveis, mas que apresentem conteúdos denunciadores, contextos sociais efervescentes, turbilhão de sentimentos em ebulição - no momento desta escrita fervidos com o disco das melhores dos norueguesas do A-Ha.

De volta para a professora de nutrição, ela acompanha meu raciocínio e ratifica que os fatores do individualismo brasileiro são mesmo os que apresentei. Deve haver tantos outros, obviamente. Nós lamentamos ambos com a novidade do primeiro dia do ano tendo sido um (mais um) vídeo irresponsável do atual (ó, céus, por quanto tempo? quero voar com as andorinhas e gaivotas e maçanicos) presidente da república. Ele salta de barco e sai a nadar em direção a banhistas, onde é muito bem recepcionado pela desgraçada cena. As aglomerações nas praias durante a pandemia colocam em xeque meu pensamento positivo sobre elas. A natureza segue bela, formidável, quanto mais intocável melhor. A humanidade a tudo polui. Além das embalagens e bitucas de cigarro, a novidade é a troca constante do contágio pelo novo coronavírus. Os mares e seus habitantes, as andorinhas, as gaivotas e os maçanicos que nos perdoem. E me deparo a finalizar a tarde com o declinar da noite e o pensamento que logo a espécie humana se extinguisse, esses pássaros tomariam conta do ambiente. O mais incrível parece que seguem sobrevivendo, levando jeito, se reinventando apesar da presença humana. Enquanto não destruirmos de vez o planeta, muitas dessas espécies seguirão planando sobre nossas cabeças. Outras, mais restritas a ambientes dizimados como o Pantanal não terão a mesma sorte, mas novamente que nos perdoem as andorinhas, as gaivotas e os maçanicos do banhado.

Às vezes enfrentamos os demais, às vezes nos refugiamos. Constantemente atacamos a natureza e naturalmente ela nos contra-ataca.

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