Ela estava na parede da lavanderia. Minha mãe suspeita que sempre entrem pelo túnel intitulado ralo aberto da pia daquele cômodo. Seja lá como ela nos encontrara, a barata estava entre o vão da porta de correr e a parede, bem pousada na vertical. Traçamos um plano, chinelo em mãos, para que dali ela não escapasse. Como mesmo fazendo a porta de correr deslizar, a barata deslizava junto, mãe optou pelo spray SBP e ele deu resultado. Fique de brinde a propaganda. A barata caiu tonta pelo lado lado oposto e pude exterminá-la de vez na segunda chinelada, grudando-a ligeiramente ao tapetinho de entrada da lavanderia. Eis seu fim.
A partir da constituição desse homicídio e ocultação de cadáver, com breve lavagem no manchado tapetinho com o corpo da vítima, pensei nas baratas que são assim exterminadas diariamente. Pensei nas que eu gostaria de exterminar e pensei, infelizmente, nas que na verdade são exterminadas pelo sistema diariamente. Não bastasse minha conexão de raciocínios com essa temática, a primeira pessoa que cruzou a última quadra da rua onde moramos foi um carregador de sacos de lixo reciclado, conduzindo seu carrinho de mão com as costas arqueadas, como deve ser feito o movimento, situação que leva muitos a reclinarem a postura até se adaptarem de maneira corcunda. É a reclinação da humilhação, enquanto muitas pessoas reclinam suas cadeiras de praia, na praia ou à beira de piscinas. É o serviço árduo que lhes sobra executar como ganho de vida, por mais quanto tempo nunca sabemos.
No país, os preços sobem, se fala em gás de cozinha em preços acima de 86 reais logo hoje. A previsão para este temerário 2021 é que ultrapassa valores exorbitantes, como até 150 reais. É o fim da classe mais pobre. Mais um dos fins. Como um internauta comentou, se não for para morrer de fome, será tentando fazer o fogo com garrafas de álcool ou como for possível diante de estapafúrdia situação. É o botijão de gás, é o dólar acima de 5 reais e 50 centavos, é a gasolina voltando ao patamar dos cinco reais também. O Brasil definha em vários pontos em uma economia ladeira a baixo. Paulo Guedes talvez nem consiga transformar aqui em caos total do Chile, em projeto extenso de cunho liberal realizado lá. Ou talvez derrube tudo de uma vez de forma meteórica, relâmpago.
As baratas. Guedes seria uma das baratas em que eu teria o prazer de desatar uma chinelada contra. A corja ministerial e governante em vigência, idem. Não hesitaria exterminar as baratas como ato honroso, de justiça, de libertação, de bem-feitoria a todos os necessitados deste extermínio: imensa massa da população. Mesmo que nos asfixiemos com o spray liberado para a caça a esses malditos, seria um martírio em que teríamos tanto a comemorar e saudar o responsável por esse grandioso ato libertador, de renovação, de esperança, de tempos melhores. Ao contrário, vemos os ratos e as baratas se multiplicarem, invadirem nossos bueiros, saírem de nossos ralos, cercando-nos pelo box do chuveiro, pelas pias, pelas panelas, pelas canecas, pelos armários, pelas despensas. Alguns ratos pulam, outros são pegos, mas o sistema segue em pura manutenção. Até quando será assim? O 2022 terá poder de reação propício para o que necessitamos? Por quanto mais tempo aguentaremos? Fingiremos aguentar, enquanto há quem assim não possa, carregando carrinhos de mão pesados, perdendo benefícios, oportunidades, sendo soterrados em tremendo e edificante genocídio?
Estamos cercados, nosso spray em mão hoje não basta, precisamos de muitos exterminadores, precisaremos novamente das ruas. Jogo de xadrez entre a salvação de casos em pandemia a transcorrer e reformas políticas urgentes. Pressões e manifestações para impeachment. Até quanto mais suportaremos? Contra as baratas, enquanto fingimos que está tudo bem ao limparmos novamente nosso tapetinho de entrada, mas de onde não me sai da memória o ser ali antes esmagado. O cadáver pútrido em decomposição. A junção das ideias que não me alivia nem me deixa em paz.
Outras vezes penso que sou a própria barata. E quem não somos? Por vezes, embora haja casos que mereciam mais ser esmagados e há casos que estão sendo diariamente, urgentemente esmagados, sou eu quem está entre a sola do chinelo e o tapete de entrada. Entre a parede da lavanderia e a porta de correr. Sou eu, sou eu quem ocupa o cargo de inseto, de salário afrontoso, de resistência aos percalços, de prisão em minha mente que me oprime mais do que as baratas do poder.
Só por vezes estando no lugar das baratas todas para desatar esses nós e transcorrer essas linhas. Agora estou suando. Entre meu sangue quente humanista e meu sangue frio de barata.
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