A lei e a ordem pareciam distantes em um Estado (com inicial maiúscula ou sem?) de abandono. Era o centro da cidade em desolação e decadência, evidentemente decrépito. Ainda havia os prédios, mas a iluminação com o envolvimento da noite era precária e caminhávamos a passos incertos, sem saber onde exatamente pisávamos, entre calçadas que nunca foram boas e pioraram de aspecto. Mas sabíamos que o apartamento de Gomes era uma saída contra a desproteção noturna. Ou ao menos costumava ser.
Ao chegarmos na derradeira quadra onde fica o edifício de moradia de Gomes, notamos que a situação das ruas permaneciam a mesma naquele projeto de inferno apocalíptico. É bem possível que a caída da noite tenha acentuado nossas impressões, mas todavia o aspecto era lastimável. O prédio, entretanto, ainda era verde, o que nos permitiu identificá-lo em local exato mesmo à distância. Primeiro notei a ausência de porteiro. Nada do sr. Dornelles ou do outro companheiro que esqueci o nome, mas que era bastante simpático. Tiago! Tiago, ele se chamava. Nada de Dornelles ou de Tiago, aumentando a ansiedade perante tanta consternação. Arquiteturas gastas, pinturas mal acabadas, o ar pesado como se a sede da violência poderia descambar a qualquer instante. A putrefação sanguínea em odor opressivo comum a hospitais muito cheios e consequentemente mal ventilados.
Contornando aquela entrada em breve saguão de edifício, que mais se assemelhava a uma sala de espera, pudemos avançar rumo às entranhas do prédio verde, levemente decorado com pichações internas e vidros em estilhaços de sua desorganizada fachada. Sem Dornelles ou Tiago para trocarmos ligeiros cumprimentos, a tensão permanecia em cada um de nossos rostos. Éramos um grupo reduzido, talvez cinco pessoas contando comigo. Parecíamos muito mais em missão da procura por abrigo do que para uma reunião amistosa. E logo na entrecurva para esquerda rumo às escadarias e notamos não sermos os únicos com essa majestosa ideia.
Moradores de rua aproveitavam a confusão de desgovernada cidade e montavam acampamento nos corredores dos prédios. Tentavam espalhar seus apetrechos de forma organizada para demarcar territórios, alguns ousavam erguer redes como se indígenas. Se distribuíam pelos corredores a cada lance de escada e a maioria permanecia silenciosa em sono resguardado por sacos de dormir, na ausência de colchões ou maiores estruturas de travesseiros. Eu olhava para aquela cena com certa horripilância transparecida, pois recordava o prédio em perfeito estado anterior, com a portaria, com o cheiro constante dos não menos nauseantes produtos de limpeza. Mas agora estávamos cercados pela atmosfera de uma guerra civil e de locais incertos para cada um se proteger.
Passei a pensar que muitos daqueles refugiados dos corredores poderiam ter casas destruídas, ou mesmo hipotecadas anteriormente pela alta dos preços, sem condições de arcarem com os impostos ou com os aluguéis elevados. De qualquer forma, uniam-se no denominador comum de não possuírem mais onde morar. O prédio de Gomes, de fachada liberada pela quebra de vidros, interior desprotegido com a ausência dos guardiões da portaria, tudo isso convidava para que levantassem o acampamento com o que podiam trazer consigo.
Mas Gomes, indiferente a esses pensamentos sensíveis ou disfarçando o melhor que podia, como muitas pessoas costumam fazer, mantinha a fronte em direção a seu apartamento, que ele aguardava manter-se intacto em meio ao furdúncio do mundo externo. Desviávamos dos novos inquilinos da região com passos cuidados, para não os acordarmos e não aumentarem as nossas enrascadas. A luta por espaço poderia se tornar sangrenta ao menor deslize.
Finalmente Gomes conseguiu chegar à sua porta de entrada, em madeira bem talhada, uma nogueira, sem dúvida alguma. Girou a chave esperando pelo estalar crepitante que lhe garantiria o desejado acesso. E ele ocorreu com um ranger contínuo de dobradiça enquanto cada um de nosso seleto grupo se apressava em adentrar ao abrigo de prometida segurança. Nos estiramos sobre o chão, não diferentes aos do lado externo. Alguns proveitosos deram melhor utilização para os sofás, que traziam sobre si as trouxas de roupas dobradas prontas para serem embaladas nos roupeiros, mas que ali seguiam à espera do pó, em partículas que, embora não inicialmente percebidas, sempre se formam na superfície dos objetos.
Respirávamos ainda ofegantes das aventuras do lado externo daquela segurança, tentávamos absorver a nova camada de ar, certamente menos densa do que a respiração grosseiramente desenvolvida de instantes atrás. Nossos pulmões, tais quais motores de carros forçados pelo engate de menor marcha, se aliviavam no exercício do ir e vir do ar. Ao que pareceu, nos primeiros momentos ninguém arriscou palavra sobre tudo aquilo que se passava, antes em movimentos delicadamente inéditos, agora diante de nossos olhos, no resguardo incendiado da memória recém recebida.
Apesar da população crescente pelos corredores e espaços que eram conhecidos por reproduzir o eco dos passos e quaisquer sons, em meio aos vazios, o prédio mantinha um silêncio ensurdecedor. Enquanto retomávamos o estimado fôlego, ouvíamos apenas o zumbir de nossas próprias vozes, através da narrativa interna que carregamos como pensamento. Ou seja, cada um ouvia a si mesmo e não arriscava palavra que rompesse esse cordão muito bem traçado e produzido, como uma teia em fibra ótica.
O anfitrião se adiantou perante nós.
- A coisa não estava assim.
- Como começou? - Perguntei em voz barganhada.
- Há algumas semanas. Perderam o controle. Governo. - Gomes tinha dificuldade de formatar as frases àquela altura.
O nítido aspecto apocalíptico que tanto me apetecera em filmes e livros agora estava diante da gente, formulando uma solução de alta contenção de adrenalina disparada ao sangue. E eu queria manter o sangue dentro de mim, não espirrado em jorros como poderia acontecer em qualquer batalha campal a ser travada pelo lado de fora daquela bonita e grossa porta de madeira talhada.
Estávamos no oitavo andar, mas o que notei minutos atrás é que havia mais uma infinidade para cima naquelas escadas nem tão quadradas, nem tão de caracol. Elas davam vista para os espaços reservados acima, mas não eram de contornos arredondados. Não sei como melhor me explicar, necessitaria de um engenheiro naquela pitoresca construção para descrevê-la. Mas o que acontecia era uma ocupação andar a andar em que os novos moradores procuravam se organizar entre seus bandos, entre suas famílias, entre seus pertences batalhadamente acumulados.
- E se os seus vizinhos foram despejados? - Perguntei novamente, dividindo o pensamento com os demais, que mantinham-se quietos.
- É possível. Mas não estabelecemos contato.
- Você é meio eremita. Falava com eles nem antes, acha que isto é São Paulo. - Brinquei. Gomes não riu. Nem os demais, que pareciam seres inanimados. Pensava o que estava acontecendo ali.
Procurei sinais de arrombamento, ou ao menos tentativa, na porta do apartamento de Gomes. Nenhum sinal. Ao subir o desgastante lance de escadas em oito andares, também não havia notado os sinais de apelo contra as entradas, mas é bem verdade que estava concentrado demais naquela visão sinistra de acampamentos inteiros de refugiados e para não pisar porventura em algum deles, causando tumulto. Só sabia, àquela altura, que a situação estava periclitante, densamente crítica.
Gomes abriu a geladeira e mostrou alguns produtos que desde já me preocupavam em data de validade. Queria lembrar da última vez que deixei meu bairro, mais distante ao centro. Meus pais, minhas duas irmãs, por onde andariam e em que estado de segurança em meio àquela calamidade generalizada. Os três demais componentes de nosso grupo, que pude analisar melhor naquela pausa, também eram nossos amigos. Havia uma menina chamada Jasmine e que estava bastante quieta. Tinha o olhar concentrado para baixo, enquanto mantinha a coluna bastante ereta apesar da possibilidade de maior repouso sobre o sofá.
Jones e Claudia ficaram próximos um do outro, em tamanho silêncio também. Eram grandes amigos e geralmente agitavam as rodas de conversa, mas o panorama estava muito diferente. Naquele caos, lembrei do professor Eduardo que sempre mencionava sobre as lojas de colchões e as garagens desocupadas nos edifícios enquanto milhares de pessoas vagavam e procuravam espaços desconfortáveis para dormir nas ruas. Não mais, professor Dudu... não mais.
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