Fui um dos primeiros a chegar nos bancos que cercam as plataformas de embarque e desembarque da movimentada rodoviária. O ritmo das capitais. Pousei minhas bagagens ao chão, no equilíbrio de minhas canelas para não tombarem e ao mesmo tempo tomando o cuidado para que não tombassem para frente. Mochilas abarrotadas de coisas dificultosamente colocadas e que me fizeram agradecer por ceder a nenhuma pressão interna de compra nas feiras ambulantes. Os tesouros dos briques à beira do parque em ótimas peças de artesanato ou imitando as principais artes do mundo da música pop e do rock. Como comprei nada dos interessantes materiais, foi possível alojar meus pertences em estreitos e disputados espaços.
Enquanto verificava o sobrepeso que me livrava das costas ao poder sentar-me com as bagagens no solo, notei a movimentação peculiar de um outro futuro passageiro. Também alocado para os desconfortáveis bancos de madeira, ele partiu em direção à plataforma de concreto onde os ônibus param, vão e vem, e pousou uma mochila preta por ali. Despreocupado em sua pose marrenta de óculos escuros, ele retomou sua posição original em recuo da plataforma rumo aos bancos. Observei-o de canto de olho, sem dar bandeira, sem despertar alarde. Fingindo tamanha despreocupação como ele devia estar fingindo, pois logo veio-me à tona o motivo da sequência de atos do homem: é uma bomba.
Olhei para o lado se mais alguém teria notado a tal petulância. Logo na rodoviária, em um domingo, em dia tão movimentado. O recuo dele para fumar um cigarro e depois sumir em direção à área de comércios e restaurantes da rodoviária não deixou-me sequer sombra de dúvida: era um terrorista. Como cresciam os tipos de atentado naquela época, a Europa vinha em polvorosa com tais acontecimentos. Museus e prédios franceses, descontrole dos metrôs aos centros históricos da Espanha, de Madrid a Barcelona. A Alemanha dava pronunciamentos para evitar surpresa sobre. Os Estados Unidos que nunca haviam superado o atentado contra Nova York em 2001. Todos esses países ocidentais servindo de exemplo e quintal para o que iria acontecer ainda naquela tarde.
A cena cinematográfica estava feita, o sol a brilhar de fundo, a mergulhar defronte às lentes amareladas de meus óculos escuros. Eu seria tão suspeito quanto ele. Inclusive uma de minhas mochilas, a preta, se assemelhava demasiadamente à depositada pelo farsante, pelo vigário. Maldito seja. Pensei em acometer-me contra os demais cidadãos. Esbofetear rostos de maneira incrédula e obrigar-lhes a abrir os olhos: "como não viram esse criminoso agir! bem diante de vocês!". Exclamar-lhes, fazer o maior alarido que me fosse possível.
Eu que já havia àquela altura e naquele ano pensado em tirar minha própria vida, muito me aborreceria terminá-la assim à beira de uma plataforma rodoviária, vítima de uma tragédia de âmbito nacional pelo número de mortos e mundial pela audácia do autor. Certamente aquela mochila preta reservava um dispositivo interligado a um disparador que o meliante executaria a uma distância segura. Disfarçado ele com seus óculos escuros para perder-se na multidão e nos caminhos sinuosos da metrópole rumo ao oeste da cidade para escapar pelo interior. Agora que ele havia sumido da vista eu nada poderia fazer. Será que serviria de mártir? Será que só eu havia percebido a ação criminosa? Será que se eu escapasse, recuando para longe dos estilhaços da bomba, seria suspeitado nas investigações por passar características vagas e imprecisas sobre o autor? Mas para que precisariam de mim, se as câmeras de segurança registraram tudo? Se é que registraram.
O tempo estava acabando, os ônibus do horário das 16 horas estavam começando a encostar no destino de recolher passageiros. Certamente programou para a hora do embarque, quando os motoristas estão conferindo os bilhetes e as demais malas estão ali para formar uma salada de opções confusas para se entender o motivo do estrago. O suor me escorria pela testa e pelo lombo; se eu saísse dessa, teria a obrigação de dar um jeito de trocar de roupa dentro do ônibus. Mas que ônibus e que futuro? Seriam mais atingidos os passageiros de minha cidade ou daquela serrana? Como sairiam nas estatísticas? A comoção nas rádios e telejornais locais. A imprensa internacional e as agências de notícias rumo ao contato, a dificuldade do idioma. As entrevistas sensacionalistas e emocionadas. Tudo isso com meu aval, minha cumplicidade, minha ineficácia em como combater. Cansei.
Me levantei para tomar uma atitude a respeito, os passageiros se aproximavam e eu não podia mais deixar daquele jeito. Poderia salvar vidas e ser reconhecido com medalhas de honra no mais puro e singelo heroísmo. Calcei-me de coragem e pus-me de pé. Não mais via de canto, mas ouvi de canto uma voz que se aproximou para junto de um senhor baixinho que sentado esperava, as pernas curtas que mal deixavam os pés alcançarem o chão enquanto as balançava. Senhor negro de barba e cabelos que restavam bastantes grisalhos.
Qual não foi a minha surpresa em reparar, agora sim de olhos, que aquela voz era advinda do delinquente de meia idade e óculos escuros. O patife estava regresso. "Um real pelo banheiro da rodoviária! Mas pela dor de barriga que tive valeu cada centavo. Obrigado por cuidar da mala" e aliviado dirigiu-se para sua bagagem e para o embarque. Ao menos o ônibus não era o mesmo que o meu.
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