A morte me invita a um tango. Uma milonga estendida, que se desenrola como um comprido tapete vermelho. Um pouco mais escuro, um pouco mais bordô. Ela me convida como escassas vezes sou convidado. Me tira do canto daquele baile onde não danço. Me tira daquele balcão em que o barman só se demonstra gentil para comigo porque estou consumindo. Logo que ele pare de encher meu copo e eu, indiretamente, seus bolsos, ele vai zangar-se.
Mas a morte retira meu olhar daquela pista de dança tão próxima em metros e tão distante espiritualmente. Minha alma velha já não sente-se interessada em misturar-se a esses corpos jovens. A música de edições eletrônicas para o formato final, inicialmente inatingível para os cantores e cantoras e com sons possíveis somente pelo remix, essa música paira distante. Não me invade mais aos ouvidos, não estimula mais meu cérebro e tampouco me revolto por não acessá-la como os demais.
A morte me conduz pelo braço aos fundos do salão, ao pátio para os fumantes. Ela sempre tem os cigarros para dividir. Nunca a encontrarás sem que ela esteja com os bolsos internos equipados por diferentes marcas. Com um estilo e todo o charme que lhe é delegado, ela vai sacar o isqueiro e terminar de acender a chama entre vocês. Os cigarros vão se beijar antes de vocês. O dela já estará aceso sem que tenhas visto, enquanto estava no salão. O seu será aceso a partir do dela, que está semi-consumido.
Ela ignora os acontecimentos em volta e estabelece seu próprio ritmo, o mais arrastado e capturante que pensas e talvez nem possas imaginar. É preciso ser sensível para conhecê-la e muitos se vão dessa vida sem notá-la anteriormente. Para quem a ignora, ela pode até deixar o tempo passar, mas será vingadora e voraz quando lhe der na telha. Mas para nós, sensíveis, ela faz parte da trama. Ela te encontra em bares rústicos com portas de vai-e-vem, seja lá como se escreve isso. Ela te fita no meio de uma festa de musicalidade proporcionada por djs. Enquanto todos saltam com os braços para cima e deixam o corpo entrar em stand by enquanto as canções todas, em todas as caixas de som, te cercam dessa forma, lá está ela, mirando-te, olhos penetrantes.
Ela joga seu charme do jeito que aprendeu em milhares de episódios. Maquiagem caprichada, olhos negros, pele clara, cabelos negros, pupilas certeiras, pistoleira de uma só bala, que ela sabe ser suficiente para derrubá-lo. Ela sabe que é irresistível. Tem o capricho demoníaco de saber que pode fazer o que quiser. É a pior mulher de todas. É a melhor mulher de todas. Justamente por ser a melhor se torna a pior de todas, como não raramente.
Por ser a melhor ali contigo será a pior de todas quando não estiver. Você pensará nela finitas noites, enquanto ela permitir. O serviço que ela começou, ela mesma acaba. Vocês marcarão encontros e será divertido de início. Ela te fornecerá os vícios mais inconsequentes, você estará atiçado pelas mais simples e complexas armadilhas dela. Você vai ignorar seus amigos, porque quer estar junto dela. Você notará aos poucos que se encontra com ela sempre de noite. Talvez em uma ou outra tarde ela surja, como uma adolescente rebelde próxima das escolas, mas nunca em aula. Ela não assiste às aulas, ela te espera nos corredores ou na fila do ônibus. Ela masca chiclete com facilidade e faz bolas grandes que logo estouram, que logo explodem como o relacionamento.
Você desconfia que ela te trai. Mas é verdade que ela tem muitos trabalhos por aí. Você não gosta das roupas negras e depressivas que ela utiliza, mas você não consegue se livrar dela. Ela sempre sabe o que fazer e sempre faz o que quer. Você não sabe o que fazer e nem faz o que quer.
Por vezes você quer se livrar dela, mas não há mais como. Chegará a hora em que ela te mastigou tanto tempo como um chiclete que perde o gosto, e será tarde demais. Você, ou o seu coração, será o chiclete que ela vai descartar. Pode ser prudente e descartá-lo a um lugar discreto, uma lixeira próxima, ou pode deixar ali à exposição, embaixo de uma classe, no chão, ou em qualquer lugar não propício ao descarte.
Vai chegar a hora em que você percebe que não consegue se livrar dela, perseguidora, obsessiva. Ela vai se livrar de você. É o papel dela antes de se arrumar novamente, sorrir maliciosamente ao espelho, com seu piercing no smiley (ela nunca te ensinou o nome certo disso), o sorriso mais diabólico e inquisidor da história. E ela vai repeti-lo, sádica e criminosa. Você era o chiclete, mas está tão sem gosto que deve ser um restolho de nicotina. Apagado e pisoteado nos fundos de uma festa com isolante acústico. E ninguém ouve seu último suspiro.
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