19 de maio de 2024

O Sacrifício - de Andrey Tarkovsky

"Com amor e fé, Andrei Tarkovsky" - é a dedicatória ao final do filme de 1986. O diretor russo também em uma passagem da película lisonjeia, exalta o que seja "inocente e profundo". Este é um dos melhores filmes da história do cinema, não tenho dúvida.

Para começar, quem é o Alexander, papel principal de O Sacrifício? Um ex-ator de teatro sueco que conquistou sua esposa assim, mas cansou de representar. E pelo que é visto, no filme também representava o papel de marido, pois eles pouco tinham a ver. Alexander passou a ser professor de estética em universidade, historiador e escritor. Seu amigo carteiro Otto inicia o filme lhe entregando uma parabenização pelo correio, vinda de antigos amigos do teatro. Relembram quando Alexander representou o marcante príncipe Michkin, de O Idiota, de Fiodor Dostoievsky. Também havia representado Ricardo, de peça de William Shakespeare. Tempos passados que Alexander havia superado para viver sua vida refugiado em outras profissões e naquela distante casa de campo. Aliás, as paisagens e o ritmo lento filosófico são marcas fundamentais dos filmes de Tarkovsky. Para os menos pacientes para as mais de duas horas de película, pode-se acelerar o tempo em 1,25x sem medo. Mas as paisagens são de tirar o fôlego. Uma sintonia com a natureza morta viva, viva morta digna das melhores pinturas do naturalismo e realismo russos. Variadas cenas permanecem paralisadas evocando como que aos melhores quadros a que tenhamos conhecimento.

A grande paixão atual do protagonista era o filho pequeno, noviço para idade do ancião Alexander. Na tarde de seu aniversário, o sueco é surpreendido com a notícia de que a terceira guerra mundial estava para acontecer, que as ogivas nucleares devastariam toda a Europa e não haveria lugar seguro. O que fazer? Diante do desespero, Alexander despe-se de todo e qualquer preconceito e, a partir do pedestal mais rasteiro possível, anseia por conversar com o Deus máximo, isso após em início arrastado - como são os belos filmes de Tarkovsky - haver mencionado que nos tempos modernos até rezar as pessoas haviam desaprendido. 

As citações filosóficas sempre constroem os polidos personagens em ação de Tarkovsky. Enquanto estava com o pequeno filho no mato ao plantaram uma simbólica e solitária árvore japonesa - pois o menino era fã do Japão - Alexander debatia sobre os rumos tomados pela humanidade em um monólogo que até a ele entristecera e incomodara. A humanidade avançou tecnologicamente apenas para seu proveito e conforto, mas segue com a brutalidade dos tempos mais remotos. Quem são os verdadeiros selvagens? Quem destrói o outro e o mundo? O sentimento catastrófico trazido por Tarkovsky permeará diversas obras escritas e cinematografia a partir desse tempo. O que se pode fazer em um dia que é transformado de passeio em bosque entre pai e filho, em pleno seu aniversário, para o fim eminente do mundo? E quantos fins do mundo nos deparamos até hoje, diante e entre guerras que ainda não são nomeadas de terceira mundial, enchentes, catástrofes e demais eventos apocalípticos no coração de cada um? Quem está seguro de encontrar as coisas como estavam antes de sairmos de casa? Como agir quando o mundo, quando o jogo, quando a vida muda todas as perguntas e nos exige de prontidão novas respostas rápidas?

Alexander promete o maior dos sacrifícios. Vai mudar radicalmente de vida caso a sua e de seus familiares, amigos, humanidade sejam poupadas. Para isso, o carteiro Otto, diante da prece desesperada do professor, envia a missão destinada a Alexander. O plano de trocar de vida a iniciar pelo sacrifício de seu trágico casamento: a mulher confessava no iminente fim do mundo que era apaixonada por outro. Caso a missão secreta enviada pelo carteiro seja cumprida e a humanidade seja salva, Alexander promete abrir mão da casa, de seu conforto de aposentado em seus aposentos e de qualquer contato com outros humanos. Promete um eterno voto de silêncio, capaz de ultrapassar os limites de qualquer indiano Ghandi. Alexander, um ex-ator em seu papel fundamental para raça humana. E quem de nós nunca se sentiu assim diante das maiores tragédias gregas, no conversar no teti-a-teti com os deuses do olimpo?

A angústia sentida perante o fim dos tempos, a missão calcada em um jogo labiríntico de caça, em que Alexander não pode ser notado pelos demais familiares, em sua fuga, em seu desamparo, em seu desespero. Não vá de carro, Alexander, eles podem ouvi-lo e acabarem com a missão ultrassecreta. Vá de bicicleta. Com a danificada bicicleta do carteiro, entre lodos e barros tal qual um soldado de patente baixa em missões entre as trincheiras.

O filme ainda é cíclico. As cenas de início e final se fundem, se arrematam entre bicicletas e a tranquilidade, inocência do menino perante a natureza. Profundo e inocente como havia a pista de Alexander no início da película, admirado em seus estudos sobre as formas humanas antigas ao longo da História. A humanidade foi profunda e inocente em conhecimentos pelo permear dos séculos. Hoje nunca fomos tão destrutivos, com antigos sentimentos mortais capitalizados pelas armas mais poderosas desse nosso visto universo. Somos capazes sim de abduzir: abduzir a vida animal com a extinção e poder temos também de abduzir a vida humana. Alguns têm a humanidade ao alcance da mão, do foguete, do disparo, do botão.

Só Alexander conversou o que conversou, viu o que viu. E se a humanidade estivesse em nossas mãos, qual seria o tamanho de nosso sacrifício? E nas nossas pequenas vidas, constituintes desse todo, quais os sacrifícios que podemos fazer por um mundo melhor, nem que seja por nós e nossos próximos?

O SACRIFÍCIO (1986)

Direção: Andrey Tarkovsky










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