Direção de Wim Wenders em um filme que propõe vários assuntos, como se espera que decorram as três horas de sua duração. Um assunto só provavelmente seria esgotável em bem menos tempo. A solidão dos personagens é dividida quando um marido agora divorciado pega seu Fusca e o joga contra a água, numa frustrada tentativa suicida. O motorista Bruno, que dirige um caminhão-cinema pelas estradas alemãs, na itinerância de levar filmes e consertos a lugares mais ou menos inóspitos, observou (risonhamente) a cena do incidente dantesco e se propôs a ajudar o pobre "kamikaze", como veio a chamá-lo.
De uma parceria inesperada, o pesquisador, que se separou da mulher em Gênova, Itália, e o motorista, que morava no próprio caminhão, pegam a estrada a refletir sobre suas vidas. O título em inglês ficou como Kings of the Road, em uma tentativa, creio, de tornar a nomeação mais vendável e épica - justamente uma das principais críticas apresentadas no próprio filme, vejam só (imagens do diálogo final aqui trazidas).
Enquanto levava e consertava cinema e salas de cinema pela(s) Alemanha(s) setentista(s), Bruno analisava com os demais trabalhadores da indústria cinematográfica sobre as mudanças, o amadorismo, a falta de estrutura e o caráter do público, muitas vezes, como era comum à época, limitados a filmes pornográficos exibidos em sessões adultas. Salas de cinema caindo aos pedaços e que iam perdendo espaço para televisão - crítica comum em outros filmes, como o brasileiro Cinema Aspirinas e Urubus ou o Cine Holliúdy.
Enquanto rodavam pelas estradas alemãs, a inusitada dupla preparou algumas peças, entreteve crianças, descolou uma motocicleta como as utilizadas em tempos de guerra, e, principalmente para filosofia do filme, conheceu um outro solitário, despreparado para esse novo momento - um marido que recém havia perdido sua esposa, que consumou o suicídio com o choque do carro em alta velocidade contra uma árvore. Os três solitários chegam a dividir algumas cenas, cada qual com seus entendimentos, ruminações e perspectivas.
Bruno parecia o mais calejado, acostumado com seu estilo de vida, mas também revela em cenas suas ambiguidades e ambições. Sempre se sentia saudoso pelas mulheres, então justamente não queria pertencer a uma única. E ao mesmo tempo queria. E assim prosseguia sua vida de estrada. Robert, o suicida frustrado, aproveitou da viagem também para resolver questões passadas com seu pai, em uma nova oportunidade de colocar assuntos pendentes em dia.
As reflexões de No Decurso do Tempo são as mais diversas sobre as escolhas, em que o casamento frustrado quase causa a morte de Robert, causou outra morte por onde eles passaram e deixava sem rumo mais um marido, enquanto Bruno estava livre e preso no existencialismo de suas decisões, nowhere man. Em uma cena interessante, o motorista dos cines, após ter voltado à pequena cidade onde crescera, afirma que pela primeira vez sentia-se pertencente, com um passado, com uma história, algo para agarrar-se, onde situar-se.
Robert, por sua vez, em certo diálogo com Bruno, quando este lhe perguntou quem ele era, que isso interessava, só soube responder que ele era o que são suas histórias. E assim cada um seguia percorrendo seu caminho, construindo a história como as letras que um aluno analisado por Robert, espécie de "pediatra" (como se referiu) com pesquisas de aquisição de linguagem e escrita para crianças, como as letras construíam sua própria história conforme as linhas. No alemão é comum as vogais i - e andarem juntas. Bruno brincou que ele seria o "e" entre eles. As letras compunham histórias com personalidades distintas. O "L", segundo a criança, seria deitado e preguiçoso.
Em um universo muito mais amplo do que as 23, 26 ou sei lá quantas letras em um alfabeto, a humanidade compõe suas posições talvez como se cada pessoa fosse uma letra, não se repetindo, não se restringindo como se todos os "a" ou todos os "f" fossem iguais, mas cada pessoa uma letra em um infinito texto, de infinitas possibilidades. Mas essa analogia, embora ampla, não satisfaz, porque não estamos fixados em posições restritas. Não somos as pedras solitárias, como o "p" de pedra, desta pedra específica, ou mesmo o duvidoso "o" que forma a palavra alternativa "ou". Os seres humanos têm a possibilidade de se deslocarem no tempo-espaço, construindo suas curiosas histórias. Assuntos do filme No Decurso do Tempo.
E o cinema, como um todo, o que conta? O que mostra? O que nos entretém ou traz para reflexão? Wim Wenders fazia suas escolhas marginais.
Nota final em 4,5 / 5
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