Filme de Chris Kelly, que demorou seis anos para ficar pronto. Isto porque o acompanhamento foi completo durante um período belicoso entre os cambodianos e o primeiro ministro Hun Sen. O tema do documentário é um projeto audacioso de prédios ao redor de um lago, parcialmente até aterrado, enquanto os moradores, originários ribeirinhos, eram obrigados a deixar suas casas, que subitamente seriam destruídas enquanto eles seriam mal alocados ou até não indenizados. Um ultraje das ocupações por projetos de construção civil desordenada, tema comum para países ditos em desenvolvimento quando áreas propensas à ocupação são invadidas pelas multinacionais e/ou projetos mirabolantes, geralmente em busca do lucro acima de quaisquer preocupação com o meio ambiente. Assim, a capital do Camboja vivia essa situação que afetava dezenas, até centenas de famílias.
O Camboja é um país asiático pouco abordado nos noticiários, mas todos os tristes relatos foram gravados, aliás, uma modernidade a serviço da prestação de provas por parte dos interessados em demonstrar as ações truculentas da polícia e dos subordinados ao tiranismo governamental, enquanto pequenas veias de ira rebelde pulsam para tentar evitar o colapso de comunidades, como a ribeirinha demonstrada. A presença de celulares nas mãos da humilde comunidade, e até do monge protagonista na trama, chama a atenção, pois também se imagina como eram as injustiças cometidas em protestos antigos em que apenas a palavra de ordem oficial era válida, sem provas a refutar.
"Nós monges dependemos das pessoas. Se elas não têm o que comer, nós também não temos", afirma o monge Luon Sovath, espécie de protagonista no documentário cambodiano.
Quanta diferença dessa visão humilde do monge para o chamado evangelistão que se tornou o Brasil, com os pastores a extorquir a população mais carente com dízimos e contribuições abusivas sobre o salário dos mais pobres, necessitados de auxílio e com suas parcelas mínimas surrupiadas.
"Eles não querem que os monges se envolvam em questões sociais. Mas, para mim, as questões dos aldeões são minhas questões."
"Existem 40 mil monges no país e o comportamento deste pode comprometer a reputação de todos. A religião agora pertence ao governo."
Quando um julgamento era armado para condenar os considerados baderneiros - que apenas defendiam seus direitos de moradia e terra - um dos oficiais apresenta uma lei escrita que afirma que os monges não podem participar de protestos, manifestações políticas, greves ou quaisquer movimentos que causem desordem ou conflitos. "Você acha que esse é um comportamento correto para um monge?"
"Como defensor dos direitos humanos, amo a todos igualmente. Quero viver em um país onde todos sejam respeitados. Minha missão é proteger vidas como o Buda tem a missão. Eu prático o budismo mais puritano" - insistia Sovath, que começou a ser perseguido, ameaçado de excomunhão e prisão, retaliado até com ameaça e morte, até finalmente passar um tempo fora do país, em asilo político nos Estados Unidos, onde seu celularzinho servia de câmera agora para os prédios da grande Nova York e suas orações e palavras de fé e solidariedade serviram a discursos para público político, jantares e alguns noticiários internacionais. A situação do Camboja e a injustiça não poderia passar totalmente impune. Ou poderia, vide a desgraça da ocupação e destruição das terras palestinas, envolvendo milhares, até milhão de pessoas?
Segundo estimativas, cerca de 95% dos cambodianos professam a religião budista. Ou seja, seguem preceitos e respeitam as colocações dos monges. Sovath era uma voz de liderança muito respeitada pela comunidade afetada. A simples presença dele encorajava os locais a lutar pelo que consideravam certo e justo.
"Logo não existirão mais pobres aqui. Eles não querem gente como a gente vivendo em sua bela cidade."
Para parte final do documentário, cenas fortes são registradas quando algumas da moradoras, sendo mães de crianças, haviam sido presas. Passaram meses fora, encarceradas e as crianças tomaram voz ativa, com uso de alto falantes e participações em protestos: além de defender as casas, defender suas matriarcas.
Isso lembra um filme nacional que falava que deveriam derrubar as pátrias pelas mátrias, trocando de forma inteligente a origem e o sifnificado geral da palavra. Interessante. As crianças, cada vez mais novas, lutavam por seus direitos, pelo direito à moradia e de voltarem a conviver com suas mães. Imaginem a agonia mútua entre essas diferentes gerações das mesmas famílias afetadas.
Outro ponto peculiar do filme sobre o Camboja é quando um representante do primeiro ministro do país, ou da prefeitura da capital, algo assim, reserva um discurso, um suposto acordo com os moradores, mas, quando convoca alguém para falar em nome da comunidade presente, escolhe uma pessoal com quase nenhuma relevância ou liderança para as moradoras. Essa pessoa leria uma carta de agradecimento ao governo. Ela é calada pela plateia que protesta sua eleição como representante popular. Isso ainda serve de pretexto para o político acusar os moradores de serem desunidos. Sendo que foi o governo que elegeu aquela representante, provavelmente com alguma espécie de propina, com a compra de sua opinião mediante alguma vantagem presente ou futura. As demais moradoras alertam para as câmeras: "bem que ela andava sumida. Deve ter se vendido ao governo". Quantas pessoas passam por situações semelhantes no Brasil e em outros países? Quando o dinheiro compra opiniões, votos e decisões políticas, seja de pessoas atingidas na moral, na qualidade de vida, ou até ou principalmente nos congressos entre os magistrados. Nas decisões de juízes subornados. Subordinados a patrões visíveis ou invisíveis.
O filme cambojano ajuda a explicar porque o Camboja, de quase 20 milhões de habitantes, aparece entre os Estados mais pobres, desiguais e pouco democráticos, corruptíveis na Ásia. Uma oposição direta aos bons resultados, por exemplo, da promixidade de Singapura, conhecida por altos padrões de tecnologia e redes de internet. Quando se observa de longe, se costuma arrematar países e populações com preconceito, estereótipos e unicidade, como se as pessoas também fossem diretamente responsáveis por seus governos e decisões. Porém, de perto, caso a caso, se percebe a imensa desigualdade, a falta de transparência, critérios e complacência com o povo. São milhões de injustiçados pelo mundo. Sejam trabalhadores em regime análogo ao escravismo, pessoas impedidas de voltar a suas terras e casas, de professar suas crenças e hábitos. Com olhos semicerrados, a ONU e outras organizações monitoram tristes episódios. Nós, sempre que possível, aqui abordaremos.
A nota final para o Doc Primavera Cambodiana, que inclusive ocorre em época muito semelhante, adjunta aos protestos iniciais brasileiros de 2013, ou da mais famoso Primavera árabe na Líbia, a nota final fica em:
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Visto em Julho, 2025.
Disponível no MUBI
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