Era piloto da aviação russa havia 26 anos. E tudo levava a crer que não chegaria a Moscou dessa vez. Mais do que essa notícia, o suor lhe corria da testa porque o avião poderia desabar a qualquer segundo no meio das savanas africanas. Andrey voltava da Tanzânia, viagem que há seis anos era sua responsabilidade quase mensalmente. Quando a temporada era boa e se desligava de qualquer outro trabalho na Rússia, viajava quinzenalmente. O assunto no continente abaixo da Europa? O pescado.
No lago Victória, o principal da África e um dos principais do mundo, a pesca estava no monopólio daqueles portentosos aviões, muitos deles guiados pelos russos. Embora trabalhasse com experiência nesse ramo, nesse trajeto, Andrey apenas lutava para entrar no top 10 dos mais viajados naquela rota. A esposa demonstrava preocupação, jamais se acostumava com aquele cotidiano, imaginava o marido como um piloto kamikaze, mal sabendo que quem morria eram os que ficavam no solo africano, devastados na fome e na falta de esperança.
Mas essa missão estava em ruínas. Andrey percebia isso e, religioso que era, beijou sua medalha com afinco, de uma maneira que, acostumado pelos voos corriqueiros, jamais pensou que poderia acontecer. Beijou o objeto metálico, condutor de sua fé, de uma forma apaixonada. Colou os lábios que ressecavam no frio russo ou no calor da Tanzânia. O filme em sua mente transcorria ferozmente, tão fora de controle quanto a pane que tomava conta da aeronave, uma considerada moderna pelo espaço aéreo russo, mas que, na economia de manutenções necessárias, estava comprometida. "Malditos tanzanianos", sabia ele repetir alvoroçado, raivoso, em seu próprio idioma. Queria ao menos um gole de vodca, mas não trazia bebida consigo na cabine. Queria afogar um pouco das dores antes do desastre definitivo.
O último reparo da aeronave foi feito em solo tanzaniano, na cidade de Mwanza, um dos principais portos que leva o pescado africano para a Europa. Por conta da mão de obra mais barata, a orientação de sua companhia aérea havia sido para receber manutenção na Tanzânia. Andrey era experiente, mas nunca foi um ás na parte técnica. Gostava mesmo era da pilotagem, apesar das exigências feitas que aperfeiçoasse seus conhecimentos. Obviamente ele conhecia bastante sobre motores, painéis e turbinas, mas a revisão última estava fora de seu interesse na estadia no centro da África. Preferiu a companhia integral de Hasina, negra esguia de musculatura forte que o fascinava. Dava dinheiro extra para ela, que tanto precisava. Hasina se sobressaía em relação às companheiras na escolha feita pelo piloto russo. Era por conta do porte físico. "Ela é mais forte do que as outras", justificava ele. Andrey teria idade para ser pai de Hasina, mas naquela hora nenhum deles se importava com essa constatação.
Hasina precisava se alimentar melhor e o rendimento não tinha outra maneira de vir. Conseguia entrar para o seleto grupo que dormia com pilotos europeus e não perdia a oportunidade. Era valorizada e Andrey sabia disso, por isso não descuidava sua atenção. Gostava mesmo era das viagens quinzenais, porque sabia que menor era a chance de Hasina tê-lo trocado por outro. Mas sabia que ela tinha, eventualmente, outras companhias. Era o trabalho dela, afinal. E ele não se queixava, tinha família lhe esperando na Rússia. Além da esposa Aleksievna, tinha dois filhos, o mais velho indo para a faculdade e a menina era dois anos mais nova do que o irmão.
Andrey sentiu que não havia mais o que fazer, a não ser esperar a queda. Olhou o retrato dos filhos pela última vez, abrindo a carteira. Lamentou não ter deixado todo o dinheiro daquele pedaço de couro para Hasina. O que carregava poderia sustentá-la por mais de dois meses e seria tempo a mais que ela lembrasse dele e não precisasse daqueles outros porcos desgraçados. Sentia rivalidade e desprezo por dois ucranianos que deitavam com ela. Um antes dele conhecê-la o outro depois. Odiava-os da mesma forma. Para ele, tanto faz.
Não tinha uma foto de Hasina para ver pela última vez. Não poderia estar carregando foto dela, com medo de possível descoberta e escândalo, represália de Aleksievna. Da esposa, sim, havia três fotos. Ciente de que a colisão próxima por acontecer não deixaria vestígios da cabine, jogou-as fora.
O co-piloto, Nikolay, vendo a cena dantesca que se desenhava à sua esquerda, apenas balançou a cabeça. Na verdade, o co-piloto pressionava os dedos contra os olhos, querendo ver era mais nada. Estava nesse ramo há bem menos tempo, apenas dois anos. Ao descobrir as falhas mecânicas que se tornaram irreparáveis, gritou, esbravejou, xingou deuses russos e africanos, cuspiu contra o de Andrey e o de Hasina e mandou todos para o mesmo inferno, fosse o frio da Rússia ou o calor da Tanzânia.
Nikolay havia pensado em desistir das missões aéreas no último ano, porque era exatamente o choque de temperatura que lhe congestionava nariz, garganta e estava fazendo um mal danado para o seu pulmão. Mas gostava era da grana que era maior do que qualquer trabalho que houvesse arrumado em Moscou ou Ekaterimburgo. Ao contrário de Andrey, não se apaixonava por nenhuma nativa. Pelo contrário, ele tinha verdadeiro pavor de dormir com uma e ainda mais com o crescente número de mortos por vírus. Se dependesse de Nikolay, levaria somente marmitas da Rússia e nem sequer se alimentaria nos restaurantes de Mwanza.
Preconceito até o talo. Mas nenhuma russa esperando por ele quando voltasse, nenhuma religião para rezar naquele momento. Mandou todos e todas para o inferno. A única crença que brotou naquele piscar de segundos foi que Andrey, infiel, ser humano repugnante em vários aspectos e que fazia parte de sua torturante gama de viagens que valiam só o dinheiro, Andrey havia trazido aquela má sorte. O piloto principal é que merecia queda e que o avião afundasse até o centro da Terra ou onde fosse a primeira parada para o expresso rumo ao coisa ruim.
Andrey sabia o que sempre levavam para a África ao saírem do aeroporto em Moscou. Além da descida para buscar o pescado no lago Victória, em Mwanza, o avião seguia até regiões conflituosas, com um carregamento de armas e munições. "Eram os negócios", ele apenas repetia enquanto contava o dinheiro. E não era pouco. Guardava em bolsos separados, em mochilas separadas, desconfiava do próprio Nikolay, que não ia com a cara dele. Mas ao menos era bastante prestativo, disso não podia reclamar. E jamais assoprou algo na Rússia sobre a sua carreira infiel em terras africanas. Nunca cobrou propina para ter o bico calado. Mesmo assim, Andrey sabia que esses podiam ser os piores. Os que ameaçavam matraquear era molhar a mão que mantinham o silêncio dos sustentados. O quieto Nikolay, não corruptível dessa forma, podia abrir a caixa de verdades a qualquer momento. Mas aquilo nunca ocorrera.
Não que Andrey soubesse.
- Eu falei de Hasina para sua esposa.
A frase, pronunciada de repente, deixou Andrey ainda mais zonzo. Ele pensava justamente em Hasina naquele prolongado momento em que as sinapses estavam a todo pau.
- Desgraçado! Vocês do interior são piores que os da capital. Maldito o seja! Mas dane-se, agora não fará diferença. Só não pense você, Nikolay, que vai escapar do mesmo destino que o meu. Vamos para a mesma merda - vociferou o piloto.
Nikolay pensou que nisso o bastardo tinha razão. Dentre os motivos quase fizeram o co-piloto desistir das extensas e cansativas viagens, estava a descoberta da carga nas grandes caixas transportadas. Como a grana falava muito alto, em tom ensurdecedor, Nikolay nem se importava se o que transportavam logo atrás da cabine fossem materiais inflamáveis prontos para explodir. Não queria saber se eram corpos, armas biológicas ou mesmo uma ajuda humanitária, que aquele povo imploraria na Tanzânia. Nikolay via eram os dígitos crescerem no saldo da conta bancária. E agradecia ao FMI, ao Banco Mundial ou a quem quer que fosse que intercedia por eles naquelas idas e vindas, ou mesmo fizesse vistas grossas, como ele sabia ser o caso das Nações Unidas.
Mas um dia Nikolay escutou demais e soube da presença das armas entre as cargas da aeronave. Óbvio que ele suspeitava, mas agora tinha certeza. E a certeza fez a sua cabeça mexer-se nos degraus das dúvidas. Podia abandonar aquela escada ou continuar a ordenar a vaca de seu sustento, engordando a poupança que o preparava para viajar pelo mundo descompromissado, em uma aposentadoria antecipada e uma velhice confortável. Doce ilusão.
Queria beber nem que fosse um pouquinho do veneno, o mesmo que o porteiro tanzaniano posicionava na ponta das flechas, caso houvessem invasores na sede deles. Sabia que aquele pobre coitado ganhava um dólar por noite para se expor aqueles riscos, enquanto eles dormiam em lençóis limpos, sobre camas de colchões macios. "Ainda que ele ganhasse um adicional noturno...", pensou enquanto desejava que aquele porteiro-segurança não fosse apunhalado pelas costas, literalmente, como ocorreu com o anterior no serviço. Aquela violência tão próxima ao alojamento de russos e ucranianos era mais um dos ameaços que o fariam desistir, mas nunca desistiu, cabeça dura e gananciosa. Agora era tarde demais.
Enquanto Andrey voltava a beijar a medalha, o avião beijou o solo às 16h48, horário da Etiópia. A colisão derradeira foi próxima à capital daquele país, Adis Abeba. Segundos antes de tudo virar chamas e a dupla ser conduzida para outro plano, o plano de Andrey foi liberar a carga que carregavam. Cerca de 40 toneladas do peixe perca-do-Nilo, o predador que devastou as espécies originárias do Lago Victória.
40 toneladas indo ao solo antes deles com o avião. O peixe originário do Lago pertencente ao país da Tanzânia, geralmente só é consumido na Europa, a preços refinados e extravagantes. A maior parte da população da própria Tanzânia, que muitas vezes auxilia no pescado de alguma forma, não tem os dólares necessários para consumir o seu produto. Aqueles milhares de quilos do peixe caíram próximo à capital da Etiópia e logo a notícia se espalhou e o povo local correu para buscar o que sobrara do peixe, para muitos, mais do que as refeições habituais podiam oferecer. Era comum muitos africanos comerem somente as sobras, por exemplo as cabeças, enquanto a parte plenamente comestível, por assim dizer, da perca-do-Nilo trocava de endereço, rumo a outro continente, para jantares chiques ao som de violinos. As cabeças eram vendidas na Tanzânia em mercadões, expostas ao chão. Quem nem isso conseguia, podia tentar a sorte na quantidade impressionante que apodrecia em lixões, na companhia de aves e outros predadores, ou mesmo larvas e outros decompositores.
O piloto Andrey tomou a decisão de liberar a carga antes que ela explodisse consumida pelo fogo, porque, após muitos desvios corruptíveis e de adultério conjugal, resolveu seguir sua religião em um último momento. "Jesus gostaria assim".
Os 162 quilos somados de Andrey e Nikolay sumiram com as ferragens, em função da atividade combustora da colisão. Das 40 toneladas da perca-do-Nilo, pelo menos metade foi aproveitada pelo povo etíope, auxiliados pela traição feita pelos mecânicos e engenheiros tanzanianos, que sabotaram o avião dos considerados tiranos russos. Os etíopes não sabiam a causa do acidente, mas agradeceram por dias e noites pelo presente vindo dos céus.
12/05/2020
Assinar:
Postar comentários (Atom)
-
O filme norueguês "Doente de mim mesma" (2022, direção de Kristoffer Borgli) é comparável ao de maior sucesso recente, A Substânci...
-
Todas as linhas estão Escrevendo saudades em vão Tô cansado de esperar Que você recarregue Cansado de esperar Você Meu car Reggae
-
Te procurei em todos nasceres do sol Você fugiu em todos nasceres do sol Talvez você nem desconfie Se não um sol ao menos meu farol Senti ...
-
Mediante as mudanças em políticas de inclusão na Europa e nos Estados Unidos durante os anos 1990, o autor jamaicano Stuart Hall propõe ques...
-
Acompanhando uma coletânea com todos os filmes do diretor iraniano 🇮🇷 Abbas Kiarostami, as conclusões referentes aqui se devem até o 7⁰ fi...
-
Segundo rápida pesquisa, equinócio é o termo que marca as entradas das estações de primavera e outono, quando os raios solares sobre os hemi...
-
Preguiça de começar o texto. Quem nunca? Quem sempre? Quem de vez em quando? Sim, sim, de vez em quando. Vida dividida em blocos. Hora da re...
-
O filme japonês 🇯🇵, dirigido por Yusuke Kitaguchi, conta a história de duas garotas (ou serão três?) com dificuldades semelhantes e difere...
-
Por mais que eu me distraia, alguma hora tenho o inevitável encontro comigo mesmo.
-
Depois de ler Correio Literário - ou como se tornar (ou não) um escritor, em qualquer merda que eu escreva está a polonesa Wyslawa Szymborsk...
Nenhum comentário:
Postar um comentário