14/05/2020

O Sonho de Alika

Região do Delta do Níger. Apesar do nome que reverencia o Rio Níger, o trecho florestal aqui abordado pertence ao território dos vizinhos da Nigéria, um dos países mais populosos - e um dos mais pobres do mundo. Mas quase nunca ouvimos falar sobre essas populações, que confundem dialetos e idiomas por regiões esquecidas pelos jornais e telejornais. Cenário perfeito para uns poucos prosperarem, rodeados pela miséria, enquanto não tomamos sequer a bênção ou o castigo do conhecimento. O que se pode fazer?

Alika era uma jovem nigeriana, de comunidade ribeirinha, das margens do Rio Níger. Sonhava a enfermagem ou, se as portas continuassem abertas para sua passagem, por que não a medicina? Mas Alika sabia que isso lhe custaria caminhos intermináveis. Ir para a cidade grande, conseguir entrar para uma faculdade, voltar para socorrer seu povo, afetado por doenças trazidas por mosquitos, pela Aids, pelas contaminações. A mãe envelhece a passos rápidos, contrastando com o canto sereno e despreocupado das cigarras da vegetação cerrada. Alika pensa que nenhuma devastação havia por ali nos tempos da mãe. Dona Iniko vivia debochando do nome. "Aquela nascida em tempos difíceis." Bobagem, pensava ela. Difícil está para Alika e seus dois irmãos menores. Dona Iniko era fruto daquela mesma comunidade, mas de outras épocas. O rio era despoluído e as empresas estrangeiras desconheciam a área para aportar seus maquinários e traquinices.

A floresta cumprimentava a janela de sua habitação. As cigarras eram companheiras de canto. Segundo ela, cantavam bem mais alto. Devem ter tirado o prazer das coitadas. O dela também estava em baixa e não havia jeito de recuperar pelo menos nos últimos dois anos. Revezava com a filha Alika as longas pernadas em busca de água. Apesar de morar a poucos metros do rio, preferiam escalar para uma região mais alta, em busca de maior qualidade no que beber e se lavar. Tarefa cada vez mais árdua pela idade que acometia a senhora. Ela faria 46, se assim fosse permitido. Alika tinha recém feito 24. Os irmãos eram adolescentes. Ajudavam com lenha, iam ao mercado e às vezes tentavam pescar.


Rio Níger (Foto: Anistia Internacional)

Alika também gostava de pescar. Essa era a responsabilidade dela desde cedo, quando vivia com a mãe. O pai morreu jovem, quando Alika ainda não havia trocado todos os dentes e os irmãos não tinham a memória como companheira. O pai foi vítima de complicações de uma infecção. Alguns acham que era o vírus da Aids acelerando a partida do jangadeiro. Dona Iniko apenas emitia grunhidos quando alguma vizinha fofoqueira declarava a polêmica opinião sobre o falecido. Iniko jamais teve debilidade em seu corpo para acusar o vírus e prefere não pensar que tenha sido esse o responsável, que chega a permear o organismo de até 2% dos nigerianos.

A única filha e os outros dois filhos estavam sãos, dentro do possível. O mais novo teve diarreia nos últimos dias. A água que consomem não é recomendada. Nada de água encanada, incolor, filtrada, potável. É a que tem. Para a família de Alika e para outras milhares da região. Se possuíssem acesso a informações via redes de comunicação, Alika, a mãe e os irmãos saberiam sobre o aumento de intoxicações. Os ribeirinhos daquela área da Nigéria podiam optar entre o rio contaminado de óleo e a fonte alternativa, a mais distante, esta com alta concentração de metais. O irmão caçula de Alika não era exceção na estatística.

Os dados coletados geralmente não voltavam para a sapiência dos moradores. Não havia posto de saúde por ali. Hospital só na concentração urbana, quilômetros adiante. Se fossem contratados como mão de obra barata das empresas exploradoras do rio, poderiam usufruir, após muita teimosia, por algum atendimento médico. Embora os serviços de saúde estavam mais interessados e preocupados com os europeus que fiscalizavam obras, visitavam para observar o andamento das empresas e que podiam passar mal em função do forte calor.

Quem atendia à população em formato de visita eram médicos praticamente voluntários, vindos das Nações Unidas ou outras organizações, raramente com patrocínio empresarial. Eles percorriam as comunidades, davam atendimento prioritário a quem já possuía chagas em desenvolvimento, mas atuavam também como médicos das famílias, indagadores e coletores de amostras e dados, pela qualidade de vida e pela pesquisa. Procuravam mapear e entender o que poderia melhorar. E era muita coisa, evidentemente. Equipes de 10 a 20 profissionais teriam que dar conta de mais de 200 mil moradores em situações semelhantes, estes de menos de dólar diário para reverter em comida na mesa. Mas os incansáveis médicos davam algum jeito de limpar o suor da testa e seguir em frente, via sacra de dias e noites.

Galão ou cestos sobre a cabeça e Alika tropeava com o maior cuidado para buscar água, desviando da mata cerrada, cada vez menos, em função da quantidade de árvores derrubadas. Driblava os obstáculos estirados ao caminho dos pés, que experimentavam os mesmos sapatos desde os 18 anos. Apesar da longa distância, ela conservava a opinião de que a ida era mais demorada do que a volta, quando a sede já havia sido sanada ao chegar ao reservatório. E enchia-se de orgulho por poder ajudar a mãe e aos irmãos, principalmente ao enfermo. Ao mesmo tempo pensava na possibilidade da água ter deixado o menino com febre e os problemas digestórios. Entretanto, nada poderia ser feito. Era torcer para a qualidade da água ter melhorado em relação às doses anteriores. Para sanar o que ela própria poderia ter prejudicado. A vida na Nigéria era cheia das contradições, pensava Alika. Fazia poucos dias que os médicos haviam visitado aquela parte da comunidade. Se não haviam voltado para seus países de origem na Europa, só uma caminhada maior do que a busca por água para entregar o irmão aos cuidados de hospital. E, da forma como o irmão estava debilitado, não conseguiria chegar até lá. Qualquer transporte por terra seria cobrado. A opção mais válida era esperar por uma repentina melhora. Tentar um chamado para um incerto transportar do garoto até a cidade poderia custar dias de punhados de arroz à mesa.

Apesar da visita esporádica dos médicos, a cada semestre, na forma otimista, ou só anualmente, de maneira pessimista, Alika sentia falta mesmo era de Gunter e Gustav - ela achava engraçado a semelhança dos nomes. Os dois eram responsáveis pelas relações públicas da grande empresa estrangeira que explorava o rio. O que eles tinham a ver com Alika e a família? Acontece que Gunter e Gustav entraram em contato com a comunidade a partir de algumas lideranças. Para ser mais preciso, falaram com seis delas, entre os moradores, Alika, que dominava bem o inglês. Ela era sempre muito curiosa e autodidata em grande parte de seu aprendizado. No que eles se propuseram a ouvir os principais anseios da região, entenderam que um posto de saúde, básico que fosse, seria fundamental para atender aos chamados mais urgentes. Além disso, a radiocomunicação poderia acelerar a travessia de enfermos agravados, estes rumo à cidade. Mas uma disposição fixa de médicos no coração da floresta, em região que ligasse e contemplasse o maior número possível de cidadãos, quebraria galhos tremendos. Medicações, atendimentos, medições, desinfecções, curativos, testes para detectar doenças. Os ganhos seriam inigualáveis.

Entre muitos europeus que possam mamar nas tetas da empresa nos ramos de relações públicas, organizadores de reuniões, eventos, celebrações, comemorações de resultados expressivos para eles (...), Gunter e Gustav estavam selecionados para conversar com aquela região pelo esperado ensejo de quererem melhoras na saúde pública. Os resultados coletados pelos poucos médicos que faziam as visitas chegaram ao conhecimento da grande multinacional exploradora do rio. Alarmantes subidas de 40% de contaminações por óleo ou metais, 60% de casos de febre, muitos sintomáticos das primeiras aparições da fome. Era isso, um posto de saúde amenizaria os problemas. Talvez até vitaminas ou fortificantes manteriam a comunidade mais ativa, visto que alguns trabalhadores da mão de obra fabril saíam daquelas moradias, iam e voltavam diariamente. Não se poderia perdê-los assim facilmente.

Gunter e Gustav (e literalmente companhia limitada) frequentavam a região para estudar a área, os preparativos necessários, as conversas com a equipe de engenharia de como ficaria melhor o prédio para o atendimento dos nigerianos. Os dois eram enfermeiros na Europa e acabaram passando em concurso para essa nova função, que estava realmente bandejando cargos por Alemanha, Bélgica e Holanda, principalmente. Alika se interessou muito em investir o seu inglês com os dois rapazes, pouco mais velhos do que ela. Enquanto a moça africana tinha 24 anos, os alemães possuíam 27 e 26, respectivamente. Conversavam sobre suas histórias de vida, sobre as poucas semelhanças e abissais diferenças de seus países.

O interesse pela medicina era comum entre Alika e os dois rapazes. Apesar de não exercerem havia mais de dois anos a profissão de enfermeiros, os Gugu Boys partilhavam suas experiências e conhecimentos. Alika gostava muito de aprender e sonhava suas próprias oportunidades.

Em uma tarde, se sentaram à beira do rio, não muito longe da casa de Alika. A mãe desconfiava daqueles rapazes andando com a filha, dizia que homem branco nunca prestou, que só exploravam a região, derrubavam árvores, poluíam o rio e os poucos negros que eles empregavam eram com pagamentos miseráveis. Mas os alemães gostavam de Alika e ela nem preciso dizer que apreciava a companhia deles.

- Eu costumava pescar muito enquanto minha mãe sempre foi de ficar em casa - Alika olhava para trás, certificando que adiante a progenitora se misturava ao sombreado das árvores na tarde que rumavam ao término.

- Mas nem há muito o que pescar aqui - estranhava Gunter.

- Isto porque a poluição do rio, causada pelo óleo, vem acabando com as espécies.

- As águas aqui eram mais claras? - quis saber Gustav.

- Eram quase tão transparentes quanto esses braços de vocês - e ria Alika sobre as veias azuladamente visíveis, principalmente de Gunter. De repente conteve o sorriso aberto. - Agora a água está muito escura. Não enxergamos os peixes e eles devem estar enxergando cada vez menos vida.

Os alemães se entreolhavam. Apesar de estudados, parecia que só essas poucas palavras de Alika para abrirem os olhos sobre a poluição descabida que desaguava no Rio Níger.

- Vamos até a área do novo posto - sugeriu Gustav.

- Vamos - os demais concordaram, alçando as pernas que balançavam próximas à tranquilidade do trecho do rio.

A caminhada era insignificante àquela que Alika fazia por água. Em menos de quatro minutos, estavam na área destinada ao posto médico. Algumas árvores haviam cedido espaço - no eufemismo - para o quarteirão armado para receber moradores. A área estava toda delimitada. As bases alicerçadas permitiam que as primeiras paredes fossem erguidas. O futuro se mostrava promissor. Alika conseguia imaginar o posto de saúde tomando forma, erguendo-se branco contra o verde das ramagens. Nem precisava forçar a imaginação para ver os jovens recebendo medicações e fortificantes e vitaminas. Os médicos com certeza iam reclamar da pouca quantidade de água ou da qualidade ruim que era servida. Assim, o abastecimento da região seria prioridade. As preocupações seriam reduzidas um tanto.

Alika só parou de sorrir com os olhos ao se despedir dos garotos. Gunter e Gustav se retiraram, pensativos ainda sobre a poluição do rio. Se flajelando internamente pela ignorância de não terem percebido a gravidade da situação naqueles lados da Nigéria. Enquanto os alemães partiram preocupados, prontos para falar com a gerência e contatar com proprietários, Alika era apenas sonhos pelo projeto do estimado posto de saúde.

Esse também era o sonho de Gunter e de Gustav. Estes mais contidos, obviamente, não tinham a mesma vivência e seria impossível comparar a atribuição daquele investimento para eles e para Alika, que vivia desde pequena, nascida e criada, naquela região por quantidade infindável de anos esquecida pelos avanços da medicina europeia. Mas, liderados por Gustav, a dupla de alemães quis falar com seus superiores sobre a poluição demasiada do rio. Levaram esporro e ainda tiveram a inteligência minimizada e ironizada pelo vice-presidente da companhia, que os chamou de enfermeiros burros e incompetentes. "Tantos meses naquela droga e não viram que aquele rio é de corroer um ser vivo." Acabaram ambos demitidos.

Alika esperou por tardes e mais tardes o regresso dos simpáticos alemães. Os homens brancos mais simpáticos que ela conhecera, sem dúvida. Saía de casa e esperava muitas vezes no terreno abandonado onde sairia o posto de saúde. No começo, outras mulheres e alguns garotos iam até lá, lamentar com Alika. Alguns a chamavam de mentirosa, que ela prometeu grandes fundos e aquela obra nunca mais teve tijolo colocado. Mas a maioria compartilhava de seu sofrimento, percebia o modo inculpado da jovem. E todos sentiam falta da saúde que não era prestada a eles.

Com o passar dos meses, Alika ficou cada vez mais solitária, plantada nos entornos do mato crescente, com os ramos alcançando o topo das paredes que jamais ganharam teto. A única participação humana ali eram as lágrimas derramadas pela jovem, diante do abandono do posto prometido.

Ao chegar em casa com a água naquele dia em que novamente lembrava do posto que salvaria vidas, viu a do irmão em apuros. A febre havia piorado drasticamente, a contaminação intrometia-se naquele organismo de maneira arrasadora. Entranhava-se no garoto a chaga mais demoníaca. A mãe não quis acompanhar Alika na viagem com os irmãos. No olhar do filho caçula, a mesma expressão do pai quando havia morrido de infecção. "Não há mais o que ser feito." E viu o barco da família partir rio abaixo.

Alika e o irmão remavam pelo menor. Já era noite quando o grito ensurdecedor de Alika acordou humanos e animais na mata à beira do rio. Talvez alguns heroicos peixes, se é que, na escuridão da água, sabiam diferenciar a noite do dia. Em uma árvore alta, disparou uma passarada em bando, fugindo do impacto sonoro. Para longe do Rio Níger.

Quatro meses depois...

Desde o enterro do caçula, Alika jurou ódio a todos os homens brancos. Traidores. Da poluição do rio, da exploração da região às falsas promessas. Estava tão ensandecida com tudo aquilo que havia passado que pensou em expulsar os médicos da ONU na visita seguinte. Só tapavam sol com a peneira, nada faziam para mudar aquela realidade.

Cinco médicos se aproximavam da casa de Alika. "Que fossem para o inferno, os que estão vivos estão todos bem nesta casa, podem seguir para os vizinhos", pensava ela.

Dois médicos estavam mascarados e iam na frente. Ela nunca tinha visto eles vestidos daquela forma, ocultando o rosto. O modo como caminhavam também foi peculiar para a percepção da nigeriana.

Quando o ódio já brotava florescente em seu coração e começava a transmitir as impressões até a pele, Alika estava a 20 metros dos médicos. Os dois que iam na frente pararam. Olharam para Alika e ela para eles. Tiraram as máscaras.

A jovem ficou perplexa, absolutamente confusa. Gunter e Gustav pararam com as mãos para baixo, colocadas à frente do corpo, em um sinal respeitoso. Não baixaram a cabeça e seguiram olhando firmes para Alika.

- Soubemos. - Disse Gunter.

Alika teve toda aquela tarde para ouvir a versão de lamento dos alemães. De intuição forte, um dos motivos pelos quais lutava para ser enfermeira ou médica, ela percebeu a verdade no semblante dos estrangeiros desde a retirada das máscaras, antes mesmo da palavra flechada por Gunter.

Após passos vagarosos, os deles desconfiados e não os dela, se aproximaram até juntarem as testas e as lágrimas salgarem o mesmo metro quadrado em que os três ficaram sem pronunciar palavra.

Após a morte da mãe e com o irmão adulto e empregado, Alika foi estudar medicina na Europa. No episódio, a Organização das Nações Unidas, ao conhecer sua história e suas reivindicações, não mediu esforços. Gunter e Gustav seguiram sempre amigos da jovem visionária. Faltando um ano para encerrar o curso, Alika promete retornar de vez para o Rio Níger, na comunidade de sua morada na Nigéria. Além da ambição maior por despoluir o rio e expulsar mineradoras e petrolíferas estrangeiras, seu sonho é terminar o projeto do posto de saúde. Ali, no mesmo lugar, a menos de quatro minutos da sua eterna casa.


Rio Níger, em trecho entre Mali e a Guiné. É o terceiro maior rio do continente africano, com mais de 4.000 quilômetros
(Foto: West Africa Travel Guide)

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