15/05/2020

O passado de Dalia

Ela não se misturava com algum grupo de prostitutas das ruas de Mwanza. "Fui excluída das excluídas", ironizava Dalia. A moça tinha 22 anos. Pelo menos quatro deles eram com a companhia de um saco de materiais recicláveis às costas. Mais leve no começo de cada dia, mais pesado antes do recolhimento definitivo. O selecionado hábil dos dedos em reconhecer os materiais mais valiosos entre as sobras que poderiam ser levadas para a indústria da reciclagem, bom grado instaurado pela empresa responsável pela exploração do pescado local. Outras Dalias se multiplicavam na tarefa, com o slogan local de que elas estavam embelezando as ruas nesse serviço a troco de misérias.

Dalia não transparece remorsos, não se arrepende das brigas em que se envolveu e fala que nem queria mais deitar com homem mesmo. Coloca-se em uma argumentação de que a exclusão do grupo das que um dia foram amigas na verdade a concede essa faísca de liberdade, de poder fazer melhor seus horários e não ser violentada por falsos pretextos de que seria paga ao término da relação puramente financeira. "Mas, se eu for atacada hoje nas ruas, acho que ninguém fará algo por mim."

É a visão conformada de quem cresceu nas ruas da cidade grande. O ritmo de crescimento de Mwanza é desordenado. A prostituição é o caminho para muitas Dalias. As irmãs ficaram trabalhando no campo, em uma espécie de escravidão legalizada, a vistas grossas de qualquer fiscalização. Aos 16, preferiu tentar a sorte em Mwanza, segundo maior aglomerado da Tanzânia. A escassez de emprego a levou para a prostituição. A briga com as prostitutas a deixou nas ruas, recolhendo plásticos e papéis e o que mais der sustento. Paga para dividir um quartinho no centro. Uma cama para deitar, um teto para proteger dos envios do céu e porta e paredes para proteger dos homens da rua. Agradece que não é cobrado horário para entrar e sair. Divide os poucos metros quadrados com outras duas companheiras, mas é sempre a que chega mais tarde. Provavelmente mais extenuada também. Sobe o beliche e tenta descansar um pouco antes do sol renascer, na claridade que agulha nas primeiras horas matinais.

Não sabe das irmãs há pelo menos dois anos. Era a mais velha delas, mas sentia que o compasso da liderança estava nas mãos da filha do meio. Havia ainda um irmão, que dedica boa parte da sua curta expectativa de vida a uma mineradora. Dalia tampouco sabe do rapaz, o primeiro a nascer entre as quatro histórias. Dalia se esforça para ler, atesta alguma dificuldade, trava em sílabas, demonstra ansiedade e nervosismo para completar palavras complexas, mas consegue. A leitura segue o ritmo acidentado da sua existência de percalços. Sonha trocar de sapatos, comprar um vestido que destaque a tez mais negra do que a das irmãs, ela pondera.

Dalia é questionada do porquê deixou a prostituição, situação dolorida que ela mesmo aponta como mais lucrativa. A prostituição, segundo Dalia enumera, praticamente traz direitos trabalhistas que o trabalho autônomo de recolhimento para a indústria da reciclagem não lhe competem. Na prostituição, as meninas se organizam em casas específicas, possuem proteção para que não as violentem, são algumas garantias fundamentais para a subsistência. Os ganhos financeiros permitiriam uma troca de sapatos e o almejado vestido.

A moça hesita, demonstra desconforto com a pergunta da saída da atividade. Passa quase um minuto inteiro em silêncio, olhar voltado para o horizonte. Pela janela anoitecida, algumas crianças, provavelmente sem pais ou ao menos provisoriamente desgarradas deles, chutam latas e vão avançando a quadra dessa maneira. Alguns caem no chão, logo se levantam, dois ou três simulam uma briga. Um quarto chega e aparta. A lata vai rolando por mais uns 15 metros, os gritos se afastam, somem do campo de visão. O silêncio de Dalila retorna, interrompido somente por um vira-luta que cruza na direção oposta aos garotos.

Ela penetra no interior de nossos olhos e afirma que vai confessar o passado. Do ponto de vista dela, infestado pelo progresso das mineradoras e exploradoras do pescado, consequentemente poluentes de terras e rios, a cidade passa por um regresso, com pessoas estressadas por empregos miseráveis, desempregados sobretudo raivosos e a violência em disparada. Pensar no fim daquela adolescência indomada é remeter a um período mais esperançoso de Dalia. Era a época em que ainda conseguiu comprar sapatos ou vestidos, embora o abandono repentino da casa de prostituição tenha feito ela sair apenas com a roupa do corpo, um par de sapatos e o despreparo para a sequência de dias mal alimentados, sem saber como voltar a conseguir o dinheiro mínimo que fosse.

A história dela, do seu findar na prostituição, pode ser comum a muitas outras. O chamado roubo de cliente. "Ele nem era grande coisa. Se tinha 14 centímetros era muito", riu por três segundos antes de novamente ocultar o sorriso surpreendentemente branco, comprovação do que ela havia afirmado, uma dedicação especial para toda e qualquer higiene. Dalia possuía dificuldades com a matemática, com qualquer sistema numérico e etiquetador, mas aprendeu sobre tamanhos com os pênis dos clientes. "As outras putas comentavam enquanto nos preparávamos para a noite. Era uma das poucas aulas possíveis naquele ambiente."

Quando Simba (leão só no nome, ela pontua) preferiu Dalila em relação à Latifa, a rejeitada resolveu agir. Debulhou a situação em uma frieza para esquentar no momento que considerou adequado. Esperou até a noite de retorno de Simba ao prostíbulo. Conferiu que ele escolheria novamente Dalila e armou o escândalo. A dona do prédio sentenciou-se pela que organizou o barraco. Latifa era antiga na casa, não trazia problemas, tinha uma clientela que a fazia sempre posição de pódio entre as escolhidas, independentemente da rotatividade das meninas. Dalia interpreta a situação toda como pura birra, sensação de ameaço sentida por Latifa, que via na novata uma projeção superior ao que ela alcançaria nos próximos tempos.

Latifa estava começando a colher os efeitos da curva descendente. As costas doeriam, os namorados-clientes não seriam os mesmos. "Ela brigou comigo, mas logo vai ter que lutar com muitas outras. O império dela começava a ruir, disso não tenho dúvidas."

A fugidia dos campos foi mandada embora pela senhoria naquela derradeira noite. Dalia conta que estava despida, pronta para o ato com o tal Simba. Foi surpreendida por toda aquela confusão. Latifa escancarou a porta, outras duas a acompanhavam, na retaguarda, em guarda para usarem a força, se fosse (e seria) necessário. Dalia foi prontamente arrancada de seu espaço, enquanto o leonino ficou sentado à cama, confuso, pensamento desorientado, o sangue ainda muito direcionado para o pênis para reagir com a cabeça de cima.

Já o sangue de Dalia subiu e as estrideiras perderam-se. Atacou e conferiu boas arranhadas na face de Latifa, fragilizada fisicamente em relação à jovem. Quando as outras duas prostitutas envolvidas já deixavam a retaguarda de Latifa para assumirem o vanguardismo da cena, a senhoria apareceu e, em poucas palavras ouvidas e menos ainda pronunciadas, conferiu a vitória do tribunal para a golpeada Latifa, que havia perdido feio para Dalia nas manobras do ringue.

"Eram praticamente as três contra mim. E aquele otário do Simba ainda parado lá na cama. Merecia um tipo como a Latifa mesmo." Dalia teve a mente turvada pela sequência repentina de acontecimentos, que nada sondavam seu plano noturno. Sair daquela situação de, ao menos para como estava acostumada, aparente comodidade, direto para as ruas, de supetão, foi um impulso totalmente indesejado, uma vertigem que desestabilizou a ordenação de seus pensamentos.

Enquanto tentava assimilar sua demissão, sua expulsão da residência, os griteiros da voz de Latifa, considerada insuportável, nas palavras dela, faziam coro contra as decisões que ela deveria tomar a seguir. A estratégia de Latifa era fomentar a bagunça, escandalizar ainda mais à dona e às companheiras, estas já de partido tomado pela prostituta mais velha, uma eleitoreira de carteirinha que, sabia Dalia, já havia provocado uma expulsão anteriormente.

"Não sabia bem o motivo da outra mandada embora, eu não a conheci, apenas soube superficialmente da história. Mas aí reconheço minha descompostura de ter jogado mal essa partida. Eu deveria ter tomado conhecimento dos perigos que significavam qualquer envolvimento com a Latifa. Descarada e invejosa, um dia vai ter o que bem merece. Volto a dizer que o império dela vai ruir, se é que já não ruiu, nesse tempo todo..."

Noite ainda bastante presente na memória da ex-camponesa, Dalia teve condições somente de reunir mais um par de sapatos e sair para uma clandestinidade desprotegida. Conta que duas das companheiras de prostíbulo ainda foram até a porta e disseram que havia mais coisas que a pertenciam. Mas Dalia estava tão chocada com o ocorrido que resolveu, perante aquelas vozes ecoando em seus ouvidos, não olhar para trás. Não quis voltar nem para o que lhe pertencia. "Até hoje não recolho materiais naquela rua. Na verdade, evito aquela área, o quarteirão, o máximo que posso. Só gostaria de saber se Latifa já foi derrubada de seu trono."

Novamente sorri, dessa vez plenamente vingativa. "Mas era tudo muito superficial. A história de que éramos protegidas lá era balela. Cliente que pagasse bem comprava até o direito de nos agredir, nos dar uns tapas. Ouvi muito dessas estórias e algumas comprovaram: possuíam machucados no corpo que não mentiriam."

E volta a mostrar os dentes. "Olhe aqui, no meu pulso, foi daquela noite. Alguma daquelas putas me torceu o braço. Não consigo fazer pleno movimento, olha..." e demonstra girando o braço, de uma maneira que a mão não obedece como se espera. "Minha mão virou rebelde como uma garota da Tanzânia deve ser."

Depois daquela noite, tentou se refugiar em outro prostíbulo. Mentiu que não tinha experiência na área, mas, pelo contrário, progredia na atividade e não demorou para colecionar novos clientes. Se Talifa era pódio ameaçado no prostíbulo anterior, Dalia decolava sua carreira para a liderança na segunda empreitada. Causou inveja em novas companheiras. E elas se uniram às antigas.

Certo dia, o sol ainda estava lá em cima e Dalia foi logo identificada no acesso ao seu novo bordel. Uma das companheiras da primeira casa noturna correu para espalhar a novidade para as outras. Isso afetou Latifa e suas subordinadas, além da própria senhoria do primeiro prostíbulo. "Estamos com quedas nos lucros."

Dois dias depois, quando se direcionava para o trabalho, na preparação para o que se tornara outra noite interrompida, a ex-camponesa foi novamente abordada de surpresa. De um carro, provavelmente de algum cliente das inimigas ou até do esposo, do fixado da dona do outro bordel, foi recebida a pedradas. "Mas só uma me acertou, infelizmente em cheio." Dalia mostra a cicatriz próxima ao supercílio esquerdo.

Aos gritos, em uma confusão de vozes, Dalia reconheceu e assimilou o que precisava para encerrar sua carreira de prostituição. Se fosse pega em serviço novamente, seria degolada. Ela conta que pouco estremeceu perante as ameaças. Mas mostra a decepção de quem chegou ao posto de trabalho e em seguida foi demitida.

Dalia afirma que as prostitutas votaram pela sua expulsão. Piadista, concluiu que a democracia funcionava melhor nos bordéis do que nos governos africanos. Segundo ela, o episódio que as demais tomaram conhecimento somou vários fatores. Descobriram que ela havia mentido, pois não era recém vinda do interior, já conhecia os artifícios do trottoir da prostituição. Além dessa moralidade pregada com ou sem calcinhas, as companheiras sentiam-se ameaçadas pela falta de clientela para elas, com o brilho que resplandecia de Dalia. Por último, usaram como pressuposto o fato do prostíbulo estar desprotegido com a presença de Dalia. Ela atraía confusões, como o episódio das pedradas, que manchou de sangue a calçada defronte e a reputação do bordel. Doces ironias.

Expulsada desses serviços, a ex-camponesa cogitou procurar pela família nos interiores tanzanianos. Relembrou que sua saída para Mwanza também foi em tom de expulsão. Reconheceu que não seria quista no interior caso algum rumor de seus casos de prostituição chegasse ao ouvido das irmãs ou do irmão ou mesmo da mãe, que ano depois ela descobriu que havia morrido. Excomungada dos prostíbulos e de futuro incerto nos campos, descobriu a possibilidade de tirar seus recursos através da reciclagem, um novo ramo que surgia. A propaganda era alegre e acolhedora: "Ajude a tornar a cidade mais bela."

Dalia conta que pouco se importa com a limpeza externa da cidade, de suas ruas, porque a proliferação de lixo dentro das casas, dos prostíbulos, das terras arrasadas com as mineradoras e dos rios com as demais empreiteiras, tudo isso faz com que o trabalho dela seja minimizado como a sucata arrecadada, que é prensada e passa por uns processos lá até sua reutilização possível.

Apesar das dificuldades de uma leitura firme, concisa e de desconhecer o significado de algumas palavras, Dalia entende que sua vida é como um processo de reciclagem. "Joguei a prostituição fora e me sinto reutilizável, mas nem sinto falta de deitar com homem. Raramente encontro algum livro jogado fora, mas, quando aparecem, são um tesouro, é uma satisfação. Tento ler e entender melhor o mundo."

"Em seguida que fui demitida, pensei em continuar com a prostituição por conta própria, eu precisava comer, me alimentar. Mas seria muito perigoso. As ruas, por si só, são assim, é evidente. Eu ainda carregava o peso de duas ameaças nas costas. Prefiro carregar só o saco de reciclados nelas. Sim, sei que posso ser agredida gratuitamente, morta em qualquer noite, acordar com a boca em formigas, mas trabalhando dessa maneira que estou, os riscos diminuem consideravelmente. Os ganhos são menores também, mas é uma redução que acho que vale a pena passar por ela. Enquanto eu conseguir comer e ter o meu quarto..."

A entrevista, que parecia pontuada em final, foi interrompida pela porta, que, após uma breve batida, se abriu. Era a primeira das companheiras de Dalia a retornar da noite. Ela suava nas mãos e as mexia freneticamente, de uma maneira nervosa. Imaginava que fosse a minha presença enquanto entrevistador, o gravador sobre o único móvel fora as camas, que servia como mesa, à qual elas compartilhavam todas.

- Dalia, precisamos conversar. - Pausa. - Ele é de confiança?

- É, sim, é só um entrevistador. Contei mais para ele do que para vocês duas de aqui. Podem ter certeza.

- É que estou tão nervosa. Sei que você não concorda com isso... Veio do campo e a família de vocês deve ter muitos princípios a zelar. Mas... é que a grana está tão difícil para me manter aqui. Atrasei pagamentos nos últimos dois meses... Mas eu... Eu vou ter que trabalhar em um bordel.

- É aqui perto?

- Não, é longe até. Parece que trocou a dona recentemente. É uma tal de Latifa.

- Precisamos conversar.


Centro da cidade de Mwanza, na Tanzânia

(Foto: skyscrapercity.com)

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