19/05/2020

Agradecimento a Mariana

Acordei com sono, com a boca seca, com as laterais do rosto, ditas bochechas, dormentes. A primeira coisa que pensei, ao ligar meu barulhento notebook, que um dia me abandonará, é que "sou um eletrônico e um dia falharei definitivamente", meu cruel destino, minha incalculável obsolescência, minha adolescência em desperdícios, juventude nem carnal nem intelectual, tão meia-bomba.

"Sou como um eletrônico e um dia falharei definitivamente."

Quando solicitarem que eu ligue. Quando eu mesmo, quem mais? solicitar que eu ligue e o sistema não vai responder, peça que não foi trocada, corroção geral das funções afetadas, pane e pânico instaurado. Silêncio.

Conversei mais cedo com Mariana. Faz-me bem conversar com Mariana. Mariana que me entende vezes que nem eu mesmo consigo. Mariana falou que a tia está mal, está com câncer. Agravou e os médicos abrem os braços que nada podem. E as pessoas chegam na derradeira pergunta de "e agora?" e é sempre ruim elaborar uma resposta. O tempo agilizando que se conteste logo.

Dissertamos sobre nossos tios. Mais pelos que foram do que pelos que ficaram. Muitos já foram e muitos ficaram. Receoso, explico para ela que me faz um pouco bem pensar que existem os que ficam para consolar pelos que foram, em pesos de perda compartilhada, denominador comum. Ela concorda e fico aliviado, sem alimentar um possível pesar em tão má hora para uma divergência opinativa.

A morte vem buscar, sempre ela, insaciada. Buscou tio meu, casado com a prima de minha mãe. Ele foi fulminado internamente, notebook corrompido, sistema operacional abatido, quando tinha saído para pescar. Essa é a versão oficial. Bebeu quantidades que não devia em horas impróprias por um longo tempo e o preço bateu-lhe a porta tão cedo. Tão cedo o garçom depositou sobre sua mesa a conta e os que em terra ficam permanecem pagando sua ausência. Viúva e filhos reacostumando.

A morte veio buscar tio dela em inesperada e abrupta queda a cavalo. Nunca havia ficado doente, ela me confessa. Ultrajante maneira de surrupiar a vida de jovem cidadão. E assim multiplicam-se as histórias, quem tem famílias maiores sabe contá-las de demasiadas maneiras distintas, com o enterro, as flores, talvez uma solicitação de cremação aparecendo aqui ou acolá.

Tocamos em delicados pontos, cosendo, costurando linha por linha de finosa agulha sobre os aspectos e os preparativos para enfrentar essa terminante adversária morte. Jogamos um demorado xadrez tal qual propôs em filme cinquentista o sueco Ingmar Bergman. Suécia que hoje flerta com a morte, namora e dança bailado extenuante com suas mais de 3 mil mortes em menos de três meses de pandemia.

Pandemia que açoita a repetição de assunto a cada escrita. Quando Mariana abriu conversa, clarão na floresta de pensamentos variados, afirmando que a tia estava mal. Logo liguei o Nordeste, Pernambuco, a pandemia, o covid-19 vitimador. Mas era o câncer, esta moléstia que seguidamente é implorada que tire férias, mas aqui permanece.

Divido com ela que, do abdômen, pelos órgãos internos do sistema digestório, perdi um tio e recentemente também perdi uma tia. Um alastrou de intestinos para outros órgãos. A pele, órgão maior acima dessas dores em aspecto repuxado, amarelado, o proprietário da chaga emagrecido e encaminhado para o encontro imóvel para dentro do caixão. Inevitável. Trocam-se os médicos e a sentença é a mesma e os atendentes de cartórios se acostumam à fisionomias de dor e devem imaginar quem perdeu e quem ganhou nesse tabuleiro esquisito de posições variadas.

"Sou como um eletrônico e um dia falharei definitivamente."

Minha tia, irmã de meu pai, foi consumida pela bebida alcoólica que consumiu por altos volumes em desastrosos anos finais. A perda do marido, a condição de viúva, a solidão, a bebida, a vizinha com filho problemático, os convites, os únicos convites, a aceitação, só dessa maneira, mais uma dose, por que, por que tinha que ser ele, por que, homem tão bom, meu Deus? Meu Deus! Mais uma dose. Cabeça baixada em lágrimas, copo erguido, misturas. Fins de tarde, noites em perigosos banhos em boxes de banheiro, trêmulos, girando, elevador para cima e para baixo e mais para baixo. As pernas em alternado esforço de uma para outra em cada trôpego passo. Por que tudo isso, meu Deus?

"Sou como um eletrônico e um dia falharei definitivamente"

Mas enquanto não acabar-me quero consolar Mariana, a família que não conheço e já considero que mereça as minhas melhores preces, minhas aquiescências, meus consentimentos, meus pesares e apesares, como queiram escrever, pena ondulante, ululante, gritante. Quero consolar Mariana, virtual e distante abraço.

Mariana que passo a conhecer e é indubitável que mereça as complacências todas citadas, essas e tantas outras. Ela que me entende, decifra meus pensamentos por vezes, em leitura ordenada, concisa e coerente, como gostam e operam binariamente os corregedores de redações. Mariana lê em português, inglês, francês e pensamentos. Mariana deve encontrar barreiras para as palavras certeiras, se é que existem? para consolar a mãe, os familiares, o que se pode fazer?

Encaramos a morte um tanto melhor quando não é surpresa, quando não é onda que arrebata pertences nas areias de uma praia, levando dos despreparados os chinelos, as toalhas, óculos, chaves, celulares e guarda-sóis. O sobreaviso nos prepara para o inevitável, nos dá mais tempo de procurar palavras e procurar consolos em nós mesmos e também nos braços estendidos adiante, na espera por abraços. A pandemia sucumbe abraços, a pandemia abre valas, abre peitos, por ora incuráveis. A pandemia, o câncer, a presidência de triste fim de República, de Jair, de meninos João Pedro, de Rio de Janeiros, de rios de mesmas e diferentes nascentes, de afluentes que não se tornam mais navegáveis, da seca que assola. Do Rio Grande do Sul onde não tem chovido e quem ousou falar do Nordeste em outrora? Meu amigo Régis emenda pontualmente que é o desmatamento da Amazônia que fará todo o país sofrer, em efeitos desencadeados, sem o abastecimento de águas. Concordo.

Enquanto não finda meu sistema eletrônico de obsolescência programada para alguma data que não sei, quero consolar Mariana, quero desviá-la dos piores assuntos ou ao menos compartir com ela os piores para que dividamos as dores. Conjuntamente soframos nos nossos diferentes ritmos. Mariana que é mãe, que é amiga, que é mulher de superação de obstáculos, de corridas, de planos, de ir muito além do que a propaganda de canal pago sugeria para mulheres os itens decoração, moda, beleza e bem-estar. Pode até ser isso, mas é muito mais, há de ser, faz tempo, sem retroceder.

Mariana que ao fim desse texto é agradecimento pelas vezes, sem ela perceber, ela ter sido a técnica da informática que reiniciou o sistema, tendo esperado esfriar, me salvou de eu salvar atualizações desnecessárias que me derrubariam. Prorrogou a inevitável perda que virá para todos os corações, como eletrônicos, que um dia falharão definitivamente. Futuros que, ao final de tudo, desprovidos de escolhas, um dia serão conjugados no presente.

Por enquanto, no presente, eu presto minhas solidárias considerações a Mariana, no que posso oferecer e no que prontamente já posso agradecer.

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