24/05/2020

aos desgarrados e indigentes

Os que se alimentam com três ou mais refeições por dia, dormem sobre colchões confortáveis, lençóis limpos e recolhem-se sob abrigáveis cobertores, estes acreditam que investe-se, gasta-se, eles dizem, demasiado com programas de assistência social.

Acrescentaria no mesmo molde apresentado que aqueles que vivem da fartura, estão anestesiados pela boa-aventurança, eles creem que escrevemos demais sobre a morte. A morte e todos os seus apêndices, uma morte que seja de julho de 1943, presente no sabor dos cafés por décadas conseguintes. A morte e seus sub-produtos derivados. A morte que cessa mas atrela tantos fios, emaranhados, teia das lembranças, pode paralisar o produtor original da obra, morto, mas não seus reprodutores.

Morte que arrebata, desconfigura, ou mesmo aniquila uma nascente de rio, mas seus afluentes seguem correndo. Quem convive com um rio, fonte de inúmeras vidas, não o esquece. Vida que nele colhe, banha, pesca e, nas mais severas sedes, bebe. Vida submergida, visível quanto maior a transparência, mas vida mais complexa de como existe, resiste e sobrevive quanto mais turva for a água.

Comentava sobre a morte de deparei-me aqui com a vida. Intervalo para refletir sobre como uma morte pode impactar em tantas vidas, principalmente tratando-se de um rio e seus afluentes.

Chamou minha atenção um trecho de Erico Verissimo (vertiginoso rio!) - curiosamente aprendi que sem acento em seus nomes - sobre o papel do escritor em tempos de violências, ganâncias, ditaduras. Segundo o escritor de Cruz Alta, autor da trilogia de O Tempo e o Vento, Senhor Embaixador e Incidente em Antares, o propositor dos relatos deve segurar uma lâmpada para minimamente clarear os fatos e verdades, expor as situações. Humildemente, confere que deve-se manter essa lâmpada acesa. Caso apague, que seja substituída, lamparina, fósforos riscadas, velas em riste, até a última chama, clarividência sobre registros ocultos em tempos obscuros e trevosos. Fermento eu que assim são os tempos ao gosto do poder. Prometo a devida abertura de aspas a Erico Verissimo ao final desse registro.

Sobre os destrinches da imaculada morte, escrevo para a familiarização daqueles desgarrados, filhotes sem colo, personagens de José Louzeiro, sem mais passeios sobre ombros, beijos sobre testas e em outras superfícies. Escrevo aos renegados de suas terras, exilados de seus solos. Improviso meus ditos, para muitos, malditos, para afirmar que estamos em lapsos juntos, em fendas adjuntos, em becos articulados, na coragem de, hoje, em comum seguirmos em frente. Escrevo para imputar, impertinente, o dedo no buraco da bala que te atingiria, enquanto, hipócrita, planejo a lejos, meu próprio fim.

Escrevo para velar os mortos, os idos, os vindos e os teimosos a continuar vir. Escrevo obituário frequente, como se obturações eu dentista prestasse. Escrevo, agente funerário de um cem número de gente. Escrevo em memória dos não identificados, indigentes, filhos negados, desconsiderados pelo que fizeram ou deixaram de fazer no tempo passado. E, num segundo, piscar de olho presente, a terra os envolve para o comum acordo de putrefação, que desfia e desconfigura pobres e ricos, em um ritmo biológico decompositor de denominador comum. Diferem de onde os enterram, embaixo de quais ou de nenhum mármore, mas na praça das memórias, onde crianças correm guiadas pela bola, vendedores de pipoca e algodão-doce vendem, idosos cruzam braços e pernas e charlam, mascam vergamotas e fuminam cigarros, é nesta praça a gosto popular que muitas vezes o mal ranqueado em serviços funerários recupera e impera um posto superior aos mauzoléus extravagantes em cemitérios.

Talvez no próprio enterro já se apresentam parâmetros que permitam tal sonhada (ou mesmo desejada?) comparação. O reconhecimento de um marido, de uma esposa, de um filho, de uma filha, de uma mãe, pai ou pessoa amiga. Atendendo a nenhum desses cruciais aspectos ao final da vida, que tamanho despoder paira sobre o mármore de congeladas impressões! Que infindável despropósito se desprendeu, se desencadeou na companhia de seus contemporâneos concidadãos. Neste caso, minhas senhoras e meus senhores, que aqui nada posso fazer e até me atribuiria a vergonha se minhas paráfrases os encontrassem.

Todavia, através das distorcidas histórias, narrativas sobre esses infaustos e infortúnios de mal aproveitadas vidas humanas, que me chegariam essas histórias aos ouvidos, eu tentaria, em uma purificação de alma, o exercício do perdão. O perdão, sobretudo aos indigentes, fontes tão logo secas, ninguém conseguiram / puderam cativar, nem pela última vez.  Teu Deus saiba que sim, em meus melhores e mais luminosos momentos, eu tentaria olhar por eles. Para todos e para cada um.

E, nos meus piores e mais rugosos, funestos e desgraçados momentos, eu procuraria deles me afastar, dispensando ou ao menos reduzindo o tempo gasto em julgamentos maldosos, seletivamente perniciosos e derivados. Que, se possível, os perdões sejam concedidos. Inclusive o perdão a mim, por ser assim.

"Sempre achei que o menos que um escritor pode fazer, numa época de violência e injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões e aos assassinos. Segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do resto. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos o nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos nosso posto"
Erico Verissimo

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