Era uma tarde de calor apesar do fim de maio. Cristiane tentava se entreter no passatempo para época: colher e degustar vergamotas. Antes do aroma das frutas entranhar-se na sua pele, a sua mente já estava divagando pela decepção que havia conhecido. O nome da menina era Laís. Ambas compartilhavam muitas situações em comum, com taxas de compatibilidade consideradas altas para as músicas que ouviam e os filmes que assistiam. Quando faltava assunto, sobravam aspectos da arte para entreterem-se em demoradas conversas.
Tudo fluiu tão fácil que nem precisavam do desgaste de encontrar as palavras certas para estender essa amizade para algo a mais. Após se conhecerem na faculdade, a forma como o olhar se desenvolvia falava mais do que as obras cinematográficas de Kubrick ou os livros de Margaret Atwood. Expremiam confiança para seguirem envolvidas como bem entendessem. E elas se entendiam.
Tinham opiniões semelhantes sobre a preservação ecológica. Em testes de internet, a distribuição entre optar pela prioridade para produção ou natureza, para as duas era quase a mesma porcentagem. Laís havia tirado sarro disso porque, para elas, naquele momento, o importante mesmo era a solidão daquelas árvores, onde podiam estreitar a relação. No bosque, descobriam mais do que a cor dos sutiãs e os ignoravam. Decoraram, mentalizaram as tatuagens uma da outra. Soltaram e prenderam cabelos, ao gosto e ao ritmo. E tantas mais coisas que eram assuntos restritos delas.
Em cidade menor, a fama é complicada. Apesar do campus da faculdade estar mudando aos poucos essa realidade, elas ainda preferiam tomar cuidado. Não queriam que a desconfiança dos mais enxeridos fosse confirmada. Seria uma afronta muito grande, Cristiane formada em igreja, com esse nome não por acaso, Laís vinda de fora, se importando menos com ela, mas tanto mais se importando com a companheira que não queria complicações maiores com a família.
Cristiane estava em período triste. A avó começava a regredir as ideias por conta do alzheimer descoberto. A mãe de Cristiane trabalhava durante a infância da filha, faltava pouco agora para se aposentar, mas de modo que a menina passou boa parte dos primeiros anos sob cuidados da avó, dona Eloá. Eram muito apegadas nas companhias uma da outra. A velhinha com pouco estudo, mas com refinado gosto para leitura, havia provocado esse hábito em Cristiane, o tanto feliz porque havia fracassado nessa missão com a própria filha. Era uma realização que a completava.
Mas com essa cronicidade no desandar das faculdades cognitivas, dona Eloá é quem precisava de Cristiane cada vez mais. A moça pegava algum exemplar da estante da avó e lia para confortar a solidão de sua criadora. Fisicamente Eloá também piorava drasticamente, com uma limitação de movimentos que a todos causava comoção.
Dona Eloá e seu Jeremias não viviam mais juntos havia 10 anos. A teimosia de um e a irritabilidade da outra fizeram com que o casamento se esgotasse antes que um deles partisse dessa para viajar ao desconhecido. Jeremias, apesar de teimoso, nunca havia recusado morar em um lar de idosos. Errado. Nunca havia recusado morar naquele específico lar de idosos das paredes verdes, supostamente porque era apaixonado por uma das enfermeiras. Nem os ciúmes por ela dar banho e trocar outros incomodava o ancião. Um boato era o de que Jeremias, em seus gloriosos anos de juventude, nutria caloroso apreço pela avó daquela senhorita de uniformes brancos. Mas falta confirmação autenticada desta tese, que de fato não está em letras garrafais na biblioteca ou nos registros escolares do interiorano município.
Mas onde encaixamos o senhor Jeremias na história toda? Simples, ou nem tão simples, complexo. O vasto coração de humilde senhoria possuía diversos quartos, como um hotel de dois andares. O espaço reservado para a família era reaberto em dias de visita ao lar de idosos. Havia uma suíte a níveis presidenciais para a enfermeira e quiçá sua falecida avó. Mas apesar do término com dona Eloá, seu Jeremias ainda parecia reservá-la ótimas chaves ou até mesmo o quarto principal. Essa é uma hipótese bem endereçada porque, ao saber da notícia da piora repentina de Eloá, o ex-marido sentiu forte impacto.
Visitou Eloá mais três vezes, todas com pouca conversa, fatalmente menos do que ele imaginava nos ensaios aos últimos encontros com sua ex-esposa. Eloá era bastante ríspida e severa. O hotel-coração de seu Jeremias se aproximava da falência. Ficou derretido pelo gelo da então companheira. Tentava consolar-se que a doença do alzheimer estava tratando de liquidá-la. Dessa maneira é que a desatenção com que ele pairava. A culpa não era dela, talvez fosse dele? Sabia que a amava, mas sentia que ela não correspondia. Vagueou por corredores fundos, até as profundezas de onde não saberia mais sair. Labirinto. Investiu seu casamento em Eloá, evento respeitado na época. Anos que pareciam felizes, mas logo não foram. Apenas se aturaram por quantos, como uma estrada tortuosa de anos de trabalho para uma aposentadoria mal paga e curta. Se ao menos tivesse avançado para outras possibilidades (talvez a avó da enfermeira?).
Sentiu-se depreciado como nunca havia ficado, mesmo nos tempos conseguintes à separação de Eloá. Percebeu não ter sido amado da forma como gostaria, nem mais seria. Os cuidados da enfermeira não seriam o bastante para evitar sua derrocada. Durou dois meses e o coração-hotel fechou-se por definitivo. Um duro golpe para a moça Cristiane. A avó naquela condição de piora gradativamente, o avô levado a sepulcro.
O coração de Cristiane estava em pesarosas derrotas acumuladas. Ela sentia-se para baixo. A avó que demasiado havia participado de sua criação naquele estado, o avô acertando a conta com outros portões, julgava ela que os celestiais. Da mãe Cristiane não era tão próxima a ponto de grandes confidências, toda aquela religião obrigatoriamente imputada sobre ela cobrara um preço na relação entre as duas. O pai era caminhoneiro, vivia pelas viagens e também não era a figura mais presente para ter com ela. Sua idosa e fiel confessora com alguma hora não muito distante marcada para partir. O peso iria para os ombros de Laís.
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