20/11/2022

O poeta morto aos 27

Cheguei diante daqueles portões. Perguntaram meu nome por formalidade. Acho que eles sabem tudo. Conferiram meu registro geral na lista deles. Deixaram-me passar. Do outro lado daquelas elevadas portas estava pronto para reencontrar os poucos que conheci bem e também haviam partido. A maioria de mais velhos, bem mais velhos.

Já tinha ideia de algumas reações, que se confirmaram ou não. Tia Hildegart havia sofrido muito para partir aos 80 que eu chuto terem sido sete. Ela foi se apagando lentamente. A mente e o corpo lhe escapando dos domínios. Mas restituiu sua boa forma. Estava saudável e mais jovem até do que quando a conheci na mais tenra idade. Quase não a reconheci. Mas ela obviamente me viu, um pouco modificado pela barba de crescimento falhado e os óculos que eu mantinha a dúvida entre usar ou não.

- O que está fazendo aqui? - Ela me inquiriu. 

Certamente não estava pronta para me ver naquela ocasião. "Pois é", apenas lhe disse.

- Mas é tão cedo para ti. Que absurdo!

- Foram 27 anos. Eu já não estava bem.

- Vivi mais do que seu triplo.

- Também tenho feito muitas contas.

E realmente meus cálculos indicavam que eu havia pelo menos vivido por dois cachorros. São as situações da vida. Ela me abraçou e nos olhamos nos olhos. Um primeiro reencontro familiar.

O irmão de titia era muito mais indiferente. Gastou o dinheiro de minha bisavó na promessa de cursos e formações. Curtiu boa parte da vida em um clima de descompromisso. Acabou a vida muito mais rejeitado. Usou finanças que poderiam ter melhorado a vida de tia Hildegart e minha avó, irmã deles dois.

- Deveria ter aproveitado muito mais - disse ele, com a voz recuperada de uma forma que eu jamais havia escutado. Ele passou por cirurgias de garganta e sistema respiratório que fizeram com que sua voz sumisse, respigando somente filetes de suas intenções de fala. Agora eu o escutava.

E balbuciou mais algumas prepotências que eu quase desejei que perdesse a voz mais uma vez. Estava de bom tamanho aquele reencontro. Lembro que sofri um pouco sua morte, mesmo distante e em uma situação precária a que se encontrava. Faleceu na região metropolitana da Porto Alegre eleita por ele como cidade de sua maior vivência após o nascimento em Pelotas. Aos cuidados de uma pessoa paga para tal função, coube às filhas prepararem o conseguinte velório. Minha mãe e minha tia foram a Porto Alegre em uma ocasião em que minha mãe conheceu o então Olímpico Monumental de outro ângulo, do alto da funerária, casas comuns no saudoso bairro da Azenha e arredores. Estranhou aquele estádio azulado um pouco distante, diante de si pelo vidro como se fosse uma singela maquete de brinquedo.

Tio também era gremista, contrário à minha tia-avó e minha avó, coloradas de olhos castanhos. Ele tinha muito o hábito da leitura e, sapiente de meu apreço também pelos escritores, me encaminhou para sua biblioteca pessoal paradisíaca, a qual revelou que para mim sempre estaria em portas dispostas.

Da minha família, bem recente foi o reencontro com minha madrinha, vítima de um câncer que se alastrou e a comprometeu para eternidade. Passados os 70 e nas condições precárias de seu corpo, ela também havia retomado sua desejada juventude, tão saudosa para ela. Minha madrinha costumava mentir a idade ou ao menos escondê-la. Escamoteá-la também poderia aqui ser o termo empregado. Viveu para fora e sempre cuidou dos pais dela. Teve uma vida até então reservada, apesar das saídas e do apreço pelo álcool, algo que nunca escondeu. Socialmente, como se emprega nas lábias populares.

Me recebeu entre a euforia de rever-me e o lamento da precocidade. Diferente deles, todos finados na terceira idade, eu ainda não tinha década de vida adulta.

- ó, meu afilhado - lhe cabia exclamar a dinda. Queria saber logo o que passou e não passou. Eu, sem graça e esquivo, tinha o que lhe confidenciar e o que esconder. E queria mesmo era sair desse ambiente familiar um pouco asfixiante, ambiente o qual logo eu poderia retornar, já que estávamos todos ali transpassados os portões. Queria descobrir sobre as demais pessoas que conheci.

Mas logo também perceberia minha volta aos entornos familiares, pois das demais pessoas quase nenhum contato tive nem pretendia ter. Voltaria eu para o melhor humor de minha tia-avó Hildegart após ter visto os dois lados dela, em que predominava o humor mais azedado com os convivas. Retornaria com gosto para o convite da biblioteca de tio Hildebrant.

De Santa Catarina também tive tios que partiram. Os bem-humorados gostavam do álcool. Um deles bastante saudoso de minha parte, justamente o mais jovem de nascença daquela fileira de tios. Ele até recuperou um cabelo desconhecido de quem só o viu na idade adulta. As entradas preenchidas. O sorriso no rosto era o mesmo. As piadas e os deboches também. Era bom revê-lo dessa maneira.

Uma dessas tias, a que morava em Laguna e daquela cidade havia nos deixado um tremendo vazio ao passarmos pelo ou cerca do bairro em que morava, essa havia reencontrado seu marido, amor de sua vida. Eles tagarelavam bastante. Era o esporte de ambos. Falavam de deixar o interlocutor torto de tamanha verborragia. Agora novamente juntos poderiam exercitar o falatório na revista a amigos do casal e também conhecendo novos ocupantes daqueles nimbos esvoaçantes.

Um sentimento me acossava tristeza, o fato de ter sido o mais jovem pelas famílias de pai e mãe a morrer. O lanterninha. O Xavante na Série B 2021. O Juventude na Série A 2022. Nem passar dos 30 - no caso, para eles, pontos - era a piada que eu utilizava na época. Nos pontos corridos realmente acumulei muito pouco de vivência, embora tenha ido a uns shows, namorado ao fim da vida e presenciado alguns eventos esportivos, mais vistos do que jogados.

Para mim, era inútil comparar minha curta vivência com as de meus antepassados, com as pessoas de gerações anteriores, as primeiras que encontrei ao cruzar os enigmáticos portões. Queria eu interagir de alguma forma com os que presenciei em escola e vivências juvenis, mas poucos eram, na verdade, os que conheci e haviam partido.

Vitor era um dos que incomodavam na escola. Nome comum na boca dos professores e até de conhecimento de coordenação e provavelmente direção - embora a idade avançada das diretoras impedisse que se dedicassem a finco às questões de cada insubornidado aluno. Vitor era um menino negro, como haviam outros meninos negros na escola, principalmente naqueles últimos anos em que estudei. Não chamaria tanta atenção em uma lista de destaques entre os estudantes, pois, embora matreiro e provocativo, haviam outros mais matreiros e provocativos, creio. Ou me equivoco. Pois melhor lembrando é possível que ele encabeçasse uma lista semelhante à dessa hipótese. Fato é que não se pensa um sujeito desses morrer tão cedo. Mas as estatísticas estão aí e suas escolhas contribuíram ao fatal desfecho. O envolvimento com drogas posicionou Vitor nesse ranking de um dos primeiros a nos deixar. Eu já não sabia mais sobre seus paradouros, mas confesso que também não foi a maior emoção que experimentei, saber que esse havia partido e por conta do motivo descrito. Envolvido com o tráfico, foi baleado pelos infratores que estavam dentro de um veículo. Cena de filme. Vidros baixados, cano devidamente posicionado enquanto o vidro desaparecia no pequeno vão que lhe cabe. Onomatopeias, talvez algun escândalo na vizinhança. Aquelas escadas pintadas em meios fio de verde, e com a calçada propriamente cinza do concreto, foram tingidas do vermelho-sangue. Vitor partiu muito cedo. O vi de relance. Estava de boné pra trás, sorriso não mais metálico, olhos arregalados como bem me lembro. Era novamente o Vitor dos tempos de escola. Não sei se me reconheceu, pois não éramos de mesmos convívios.

Outro Vitor, de primeiro nome João, também havia morrido durante o período da escola. Este nos pegou de surpresa. Eram férias e o garoto branquelo de topete e poucas palavras, estava nos campos com sua família. Acabou dizimado em um episódio o tanto quanto estranho. Ao manobrar um trator, acabou tombando roda em um buraco e não conseguiu manobrar o veículo de volta. A capotagem o feriu gravemente e dizem que a própria expressão facial não serviu para o enterro. Uma tragédia que mobilizou a comunidade, mesmo que ele talvez não estudasse mais em nosso espaço para o ano seguinte. Era tido como um bom jovem. Repito que de poucas palavras e, para aqueles mais arteiros, servia de obediente para planos mais ousados. João tinha alguns amigos que ainda devem lembrá-lo mesmo década depois.

Outro caso que aqui recupero é mais recente. Um ex-namorado de irmã de amigo. Foi encontrado assassinado em uma estrada da cidade. Foi encontrado dias depois de seu desaparacimento. Sempre aquela história. Alguém passava pelo local, sentiu o cheiro que se alastrava por metros que já deviam ultrapassar dezena. Um pouco de investigação e eis o corpo. O reconhecimento. A notícia que paira nas páginas policiais de nossos jornais impressos locais. Este jogava futebol muito bem, pelo menos para época. Mas também recordo que jogava conosco, que éramos mais jovens. Portanto, ele se sobressaía. Demorei a associar o nome quando o vi em notícia pela internet. A foto bateu um pouco com minhas lembranças e eu já não tinha mais dúvidas. Lamentei o ocorrido, ele que eu nunca mais havia visto. Sempre chocante redescobrir pessoas em ocasiões caracterizadas por um ar tão denso e pesado. Ao mesmo tempo, não cometerei a hipocrisia de ocultar que também é uma excitação, uma adrenalina se sentir parte de um ocorrido dessa magnitude. Também é um momento em que as pessoas abraçam os seus, agradecendo pela atrocidade não ter passado com nenhum deles. Poderia ter preservado o nome de todos, mas pelo menos deste preservarei. Mas, ao que me consta, ele havia passado, sim, a casa dos 30 anos, diferente da minha pessoa.

Obviamente vamos passando pelos metros que nos separam do portão dos vivos e vamos relembrando. Outro cujo nome iniciava com P era também muito bom jogador e posso afirmar que de atuações contra pessoas de sua mesma faixa etária. P ainda é relembrando por amigo(s) em comum nas redes sociais, talvez passado seu aniversário de nascimento ou de morte. Joguei bola com eles em algumas oportunidades. Eram mais velhos, mas confiavam em meu trabalho de guarda-redes. Jogávamos muito no Ginásio do Spieker, finado complexo esportivo - sendo bondoso - na baixada da escola estadual Assis Brasil, com entrada pela Avenida Juscelino Kubitschek. E que saudade das boas peleias que não voltam mais e do tio, de aspecto boliviano, que cuidava a quadra, recebia os trocados e também fazia ligeiros e protocolares trabalhos de limpeza no espaço.

P era um de nossos melhores jogadores. Agora misturo completamente a memória com os acontecidos. Não gostaria de ser injusto. Mas pode ter sido uma internação por drogas ou pode ter sido apenas de sintomas psiquiátricos bastante agressivos. Pode ter sido também separação familiar, problemas com envolvimento, como com padrastro, por exemplo. Posso misturar todas essas sentenças até a derradeira ocasião que o vitimou com um tiro policial na cabeça. Ele estava atendido em um hospital e foi agressivo com enfermeiro. O caso voltaria para ações policiais e eles não tiveram dúvida, na hora H, em disparar. Com a bala na cabeça, perdíamos P definitivamente para partidas que nem cogitávamos jogar, mas hoje sentimos falta. Seus amigos mais próximos, sem dúvida, choraram essa perda. Eu novamente fiquei em choque, novamente atormentado pela estranha excitação que exponencia essa sensação de conhecer e fazer parte, de alguma forma, da notícia. Ter algo a acrescentar, ter algo a relatar, a compartilhar com outros que ficaram sabendo ou que só ficaram sabendo justamente porque, em algum momento, colocamos esse assunto à tona.

Mais do que dele, de minha parte, relembrava nostalgicamente esses bons momentos. Quando me sentia útil na função de guarda-metas. Quando era requisitado, às vezes insistiam, pela minha presença. Mas eu sempre me sentia meio deslocado, independente do grupo, na hora das conversas, tanto pré como principalmente pós-jogo. Não fazia parte de nenhum grupo de forma mais fechada ou definitiva. Mas gostava de me sentir útil, de imaginar as partidas como grandes decisões, de ficar relembrando meus lances. Rememorando quando a adrenalina baixava e voltava para casa. Colecionava roxos nas pernas, dores e boas sensações provindas delas. Colecionava defesas, atacantes que saíam decepcionados, às vezes surpresos por eu conseguir ter agilidade ou inteligência para buscar onde jogariam a bola. Era sempre um prazer. A vibração da bola colidir contra seu corpo, contra sua perna, contra seu braço, até defesa de cabeça que eu já havia feito e, comum que era por vezes, sofrer uma bolada no rosto, justamente posicionado onde seria dado o arremate a ser bloqueado. Faço voltas assim relembrando de minha passagem, para chegar ao ponto que a turma de P havia inovado um apelido para mim: Van der Sar. Um goleiro que gosto em um clube que detesto, o Manchester United. O holandês realmente possuía história, embora tenha também bloqueado o caminho vencedor do meu Grêmio em 1995.

Outros nomes eu havia recebido anteriormente, entre Victor, do Grêmio, futuramente do Galo, Lehmann, o próprio Van der Sar e até De Gea, outro do United, até pendurar as luvas. Passei os últimos anos de minha vida saudoso desses jogos e das defesas que praticava, e de como eu conseguia me movimentar de forma satisfatória. Ali, naquele céu, ninguém me conhecia o suficiente para ressuscitar tais momentos e eu teria de esperar mais anos por isso. Tampouco sabiam de minhas habilidades descritivas e inventivas de analogias, tais quais as que aqui presto em carta de minha chegada ao outro lado dos portais gloriosos - que tanto nos prometem. Assim foi minha chegada ou assim será, ou ao menos assim espero que seja, pois minhas malas parecem cada vez mais arrumadas para o inevitável destino.


Nenhum comentário:

Postar um comentário