20/11/2022

Caminhada rápida por novembro

Caminhada rápida para buscar itens básicos de sobrevivência (frutas) no calor de novembro. Fui pelas quadras que agora tão bem conheço, deslizando a cada bloco até a fruteira que eu esperava encontrar aberta. Mas não encontrei. Tive que fazer o retorno disfarçadamente para meu diminuto público como se ali não fosse meu destino inicial. Não me permito essas pequenas vergonhas, embora sofra hoje com as maiores. Ou o nervo de minha maior catástrofe não se chamaria pudendo.

Enfim, contornei por outras quadras, arriscando trajeto que ainda pouco tenho conhecimento, desviando pela Rua Três de Maio. Ela apresentou calçadas irregulares como as outras, com uma subida pouco íngreme e o calor cobrindo a rua fortemente, como uma capa aprisionadora. Pelo caminho, aos fins de semana, é normal topar pelas ruas com catadores de papelões ou plásticos. Procuro tentar identificar o que cada um carrega em seus carrinhos de ferro ou charretes. Observo que alguns carregam apenas o saco, em quantidade bem menor que seus companheiros. Outros batalham em carregamentos cheios, sol a sol, chuva a chuva. Lixeira a lixeira. Já os vi conversando sobre se o trajeto em questão valia a pena ou seria perda de tempo. Interessante a comunicação. Um ajuda o outro. Não adianta passar por onde outros vários passaram. Mas lixos e luxos se misturam também.

Medi meus passos na hora de passar por outra venda. Calculei que infelizmente chegaria quase emparelhando ao cidadão de carrinho quase cheio (ou seja lá a qual limite ele se submeta na árdua luta diária). Entrei finalmente na venda e perguntei em voz baixa sobre as frutas, que me foram apontadas uma a uma até completar minha pequena missão. Enquanto aguardava que o senhor de cabelos grisalhos me servisse mais um copo de salada de frutas, o trabalhador que passava simultaneamente à rua havia desaparecido de minha vista. Não voltaria a encontrá-lo nesta ocasião, mas possivelmente em outra, pelo bairro revisitado.

Em posse das frutas, dei o dinheiro, recebi o troco e segui minha breve caminhada com o destino de volta. O calor estava de rachar e eu certamente não aguentaria grandes distâncias, com o menor que fosse o carregamento a suprir. Ao cruzar pela esquina da Almirante Tamandaré, onde foi oriundo o importante movimento Sofá na Rua, avistei lá para baixo da quadra um par de pessoas, sem conseguir identificar de quem se tratava. Poderiam ser crianças brincando, poderiam ser usuários de droga à luz do dia, ou somente adultos desiludidos, cabisbaixos, sentados ao meio fio a refletir. Todas as possibilidades, embora antonímias, me evocam uma tristeza, uma espécie de nostalgia.

Caso sejam crianças, lembro que minha infância não foi nas ruas do centro ou em rua alguma. Muito mais tempo eu passei em casa, com saídas ou na companhia de meu pai para jogar bola, ou na praia, mas nunca muito distante da casa de meus tios no Balneário dos Prazeres, vulgo Barro Duro. Esse distanciamento das ruas causa-me essa nostalgia. Não tenho mais esse tempo que passou, jamais o teremos de volta. As crianças ainda terão, sabe-se lá a qual custo futuro nesse mundo incerto. Mas meu tempo foi esmigalhado, sobra-se nada entre os dedos das mãos. Tudo que pode ser evocado desse tempo está no campo do imaginativo.

Outra possibilidade levantada de quem seriam aquelas pessoas ao longe no semi-abrigo do sol foi de que se tratavam de usuários de droga. Proposta oposta ao povoamento da solitária e desértica rua com crianças. Os usuários de droga tem-se falado - não tenho visto - andam por espaços na rua Benjamin Constant. Mas não só por ela. Recordo que na própria Três de Maio, em direção ao bairro ferroviário Simões Lopes também estão. Procuram lugares isolados para seus cultivos e usos. Podem procurar vítimas, para saciar seus vícios. Não seria bom dividirem o espaço com as crianças que também especulei. Apostas diferentes.

O terceiro grupo eu mais me identificaria, entre os adultos simplesmente cansados ou desolados, apenas tirando um tempo para organizarem os afazeres, as ideias ou a vida como um todo. Sentados à beira da calçada, mirando os próprios sapatos gastos. Mirando os gastos em contas de cabeça ou de acordo com o que lhe sobra dos bolsos. A vida adulta talvez não seja tão mais difícil do que a imaginada quando se tem a idade dos de primeira hipótese. Mas é um acúmulo de situações com as quais lidar. Ainda estou estudando, preciso comprar o que me alimenta, o que visto, o que uso como produto de limpeza, corporal ou do apartamento. Mesmo os mais pobres, ninguém se imagina apenas catando papéis ou plásticos pelas ruas desertas de um fim de semana no centro da cidade, mas esta é a realidade de milhares, talvez milhões de brasileiros. Eles aumentaram pelas vias urbanas nos últimos anos, pessoas que perderam casas ou tiveram que ir à caça de como se virar no cotidiano, atrás de trocados que já não servem e precisam notas de dinheiro. O que se compra hoje em dia com 50 centavos? O que se compra hoje com dois reais? A nota de dois reais anda tão surrada quanto as desaparecidas de um real, as verdinhas substituídas pelas generosas moedas.

Hoje crianças brincam, amanhã também serão adultos desolados. Alguns perderão bondes pelo caminho e serão os usuários das ruas desertas em busca de vítimas, em busca de como saciar os vícios criados. Mas mesmo os não viciados precisam dar um jeito nesse estranho vício que o corpo possui em se alimentar, nessa mente viciada em tentar ser alguém, em traçar e conquistar objetivos nesse mundo complicado, de sonhos que se diluem, de perguntas que mudam e nos deixam com respostas insatisfatórias em nossas mãos suadas, marcadas e a cada dia um pouco mais calejadas com as agruras enfrentadas. A distância entre o que se sonhou e o que se viveu, as folhas que caem, as flores que murcham, os cães e as pessoas sob a terra. Os olhos baixos, o vento que assovia, o andarilho que passa distante, pessoas que fingimos não ver. Pessoas que também não nos veem, pessoas que nos ignoram, pessoas que fingem não nos ver. Pessoas que cruzam por nós em tardes de calor em novembro.

Pessoas que descascam frutas, pessoas que também são as mesmas que servem o troco do dinheiro que circula de mão em mão. Crianças que brincaram de ser polícia ou ser ladrão e mais tarde algumas delas prestarão concurso para serem policiais, mas outras serão ladras mesmo. Alunos que viram professores, pessoas que jogam o lixo fora e talvez no futuro tenham de catá-lo. Pessoas que separam o lixo e pessoas que não separam. Pessoas que jogam coisas proveitosas fora e pessoas que esgotam as possibilidades de consumo dos recursos, de reutilização. Pessoas que nos chamam atenção, mas jamais lembraremos ou jamais saberemos se realmente já a vimos ou se é a primeira vez, porque certamente as cartas se repetem entre as ruas atravessadas em sinais de pare, em carros freados e sinais vermelhos. Rostos marcados e rapidamente desmarcados. Rostos com marcas que somente a própria pessoa saberia explicar, entre a violência, o sol, o tempo, o trabalho, as rugas, as lembranças, as fantasias e as desilusões. Rostos voltados para baixo e que me impedem de vê-los enquanto passo pela Rua Almirante Tamandaré seguindo pela 15 de Novembro, me brotando dúvidas insaciáveis e pouco relevantes. Quando o sol está muito forte, tendo a sair sem óculos e ficar na penumbra de respostas que a quase todos pouco importam. 

Rua Almirante Tamandaré, local de nascimento do Sofá na Rua e deste singelo texto
Foto: Divulgação / Sofá na Rua




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