23/11/2022

Não quero falar sobre

Voltava de ônibus e prestava atenção ao assunto que me era inevitável ouvir. Um rapaz e uma moça falavam sobre concursos a serem feitos. Depois mais alguém se juntou à conversa, piorando minha realidade enquanto ouvinte. Detestei a forma como abordavam os planos de carreira. Eram centrados unicamente no salário. Praticamente só falavam em números, em cifras. Quanto se conseguiria tirar, quanto poderiam evoluir salarialmente. Números e mais números. Algoritmos retirados sabe-se lá de qual embasamento, algoritmos que surgiam com a imprecisão que os algoritmos não sugerem.

Certa vez li que na França é falta de senso comentar sobre (seu ou outros) salário com outras pessoas. Não sei se é verdade essa forma, essa cortesia francesa para repelir esse chateador assunto. Mas concordo com quem pensa assim. Hoje sofro com a realidade de não possuir um salário digno para minha existência. Meu padrão de vida em nada se encaixa no dinheiro que recebo, de forma que recebo o auxílio de meus idosos pais. Caso eu tivesse um salário mais elevado, não falaria sobre, sob a fiscalização e a aplicação de minha própria pena ao constranger os demais. Ou simplesmente pelo assunto não tomar contornos de meu exigente interesse. Já no fato de eu não ter o tal salário, eu, pobre diabo, quem saio constrangido. Apenas escutava a conversa animada dos futuros concurseiros esperando ansiosamente para a parada de algum deles ser nosso próximo destino, para cessar aquele falatório conflitante com minhas ideias.

Pouco me interessam desses cargos que não vou me candidatar. Aliás, os concursos eliminam a quase todos, com exceção da exceção. O vencedor garante a estabilidade. Todos os demais seguem zumbis a vaguear em busca do próximo concurso em alguma desconhecida no mapa cidade interiorana. Ademais, ms irritava a forma como tratavam empregos burocráticos que por si só já se demonstram maçantes. Mas para piorar o debate era apenas centrado no plano salarial. Nem sequer debatiam os benefícios ou as agruras de determinadas profissões a respeito das reais aplicações e implicações delas.

Falavam de tirar 5 mil limpos. Falavam do custo de vida inviável com 1.500. Calculei com o que posso fazer. Continuei apenas ouvindo e com o olhar direcionado para o lado de fora da janela do ônibus. Queria estar distante na rotineira observação urbana que faço a partir das laterais do coletivo, mas fiquei malogrado minutos pelas matracas.

Depois falaram mal da docência. E pensaram a carreira de professor também a partir do salário. Reduziram uma profissão tão complexa, tão edificante, tão desafiadora, tão enriquecedora a partir da troca de conhecimentos e experiências para uma pobre questão salarial. A profissão de professor que deve sim ser debatida e mais valorizada e não rechaçada de forma rasteira, unicamente a rejeitando porque de fato não paga bem ou não atinge o que pensam por custo benefício. Depois investiram para possibilidade de um emprego na política - "onde poderia mandar". Tá bom. Mandar, criar leis e ter assessores. Agora que me cai a ficha do desejo, da sede de poder que move os humanos. O poder está no dinheiro. O poder financeiro e as portas que se abrem a partir dele. Tudo pelo poder, não pelo prazer, não pela jornada, não por outras coisas, o lúdico que poderia guiar nosso cotidiano. Apenas o dinheiro como farol. Ou o poder de subestimar, subordinar e outros sub a outros humanos. Ser chefe e ter funcionário. Ter dinheiro e de alguma forma escravizar o conseguinte dependente. O sonho do opressor, andando de ônibus bancos atrás do meu, oprimir.

Felizmente em algum momento a conversa acabou. Ou até eu tomei a iniciativa de saltar uma parada antes. O sol ainda brilhava lá fora e minhas ideias buscaram novos bosques para se sustentarem. Quando não podemos vencer o assunto, a possibilidade de puxar a cordinha. Do ônibus, para descer antes.

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