Ele achou que não seria pego. Desconfiava de um vizinho que não revirava o seu lixo, mas só faltava aparecer de binóculos na janela, atento a cada movimento. Aconteceu algumas vezes, ele não poderia negar caso a pergunta fosse feita no tribunal. Isto se ele tivesse direito a um tribunal, porque a sociedade o condenaria, na opinião pública, como um crime inafiançável.
Em casa, elas eram bem separadas. Eram pedaços pequenos, que passariam facilmente despercebidos, envoltos nos sacos plásticos descartáveis. Em casa, pelo visto, através dos meses, ele conseguia passar impune. Depois tudo ia para o caminhão do lixo e nunca saberiam quem era o responsável por aquele crime.
Mas um dia ele foi pego na saída da porta do apartamento. Achou que o vizinho, bisbilhoteiro mas alcoólatra, estava por dormir, mas surpreendeu-o parado, preenchendo o perímetro do espaço da porta como um goleiro à espera da chegada adversária. O profanador de azeitona se assustou. Deixou cair a sacola e as bolitas escuras se esparramaram pelo chão. O vizinho pinguço não podia acreditar no que via com seus próprios olhos - auxiliados por lentes de grau 3. As azeitonas preencheram o chão dos apartamentos do segundo andar como se fossem as bolinhas de borracha após uma partida de futebol sete em campo sintético. A prova do crime gritava urgência. O vizinho até gostava dele, mas tal chamado à justiça não poderia tardar. A denúncia precisava ser feita. Primeiro manifestou um grito, não dos mais altos, mas o suficiente para a outra porta daquele andar abrir-se e averiguar a bagunça, a cena imperdoável. As azeitonas deitadas, espalhadas por tudo.
- Eu posso explicar - disse trêmulo diante das testemunhas.
- Vá tentando - encorajou a vizinha do apartamento diante do dele. O alcoólatra era vizinho lateralmente.
- São... São... um amigo jantou aqui. Ele não come. É coisa dele.
- Eu bem que desconfiava - disse o bafo de cachaça. - Você tem hábitos muito estranhos. Parece sempre se esgueirar por esse prédio. É u gatuno - e deu uma risadinha, mas ninguém acompanhou nos sorrisos.
- De qualquer forma entendo que... que sou cúmplice. E na verdade a culpa parece recair só a mim. Mas é dele, eu juro!
- E você não tem vergonha? Encobrir uma porcalhada dessas? Azeitonas fora? - A vizinha estava incrédula.
- Eu... eu... Eu não sei o que dizer. - Roçava a testa com a chave da porta, único item que lhe sobrava nas mãos, que haviam perdido sacola e azeitonas para evidência criminosa.
- É nosso dever não só informar o síndico, mas autoridades competentes - disse o engenheiro aposentado.
- Logo tu! - Manifestou no gauchês mais rude e intimidador que conseguiu. - Um velho alcoólatra com ficha criminosa violenta de atos passados. Até coisa hedionda, velho burguês!
- Tive sim, acusações. Acusações, veja bem. E fui inocentado. Agora isso que estamos vendo. Eu por trás dessas gafas velhas. Isso não se pode tolerar. Eu mesmo saco o celular. - Se prontificava com a língua no canto da boca e os dedos ágeis mas embaralhados a discar o número policial.
- O Vieri tem razão. Uma cena dessas em pleno nosso prédio, diante de nossas portas, de nossos apartamentos, é intolerável. Disque, senhor Vieri.
Nisso, o síndico chegava também grogue, atônito, ao mesmo tempo curioso por aquela movimentação na calada da noite. De sacolas de supermercado na mão, inclusive preciosas azeitonas, ele assistia àquela profanação em tempo real. Bolotas por todo o corredor, talvez algumas mergulhando degraus de escada.
- O qué passa? - Invocava algo fronteiriço em sua pronúncia dos tempos vividos no Rio Grande.
- Estamos diante de um profanador de azeitonas - continuava furiosa a mulher.
- Um profanador de azeitonas?
- Um incontestável. Assistimos em flagrante, não é, senhor Vieri? - E deixava escapar uma lágrima de fúria no canto do olho.
- Evidentemente. - Terminava de discar o velho. - Alô, policial? Sim. Sim. Sim, no bairro da praia. Uma denúncia estapafúrdia, policial. Um profanador de azeitonas! Sim! Não ouviu errado. Sim, estou tentando ficar calmo. Já passei por um infarto, mas boletim igual a esse não é todo dia, não é mesmo?
O profanador de azeitonas parecia aceitar a denúncia, não obtinha mais reação. O síndico o encarava como criminoso que se mostrava ser. Parecia surpreso, curioso, mas o olhar já inquisidor diante da perversão presenciada.
- Gostaria de denunciar seu amigo, caro cúmplice? - Provocava o velho. A boca entre conversar com os presentes da cena do crime e para o policial ouvir do outro lado da "linha".
- Vou assumir a responsabilidade dessa sacola, mas mais nada! - Exclamava entre conformado e agressivo.
- De evidência só temos essa sacola mesmo... até o momento - dizia a mulher.
- A senhora não se meta! - Disse o profanador.
- Não me levante o tom de voz. O acusado aqui é você. Mais do que acusado, praticamente um setenciado. Espero que joguem a chave fora.
- Se for coisa de chave... - Arriscava um manifesto o síndico, senhor Nilton, para não ficar de todo calado. Havia certa reputação e valores a zelar. Também, embora conhecesse bem e até frequentasse o apartamento do réu, não queria que os demais pensassem que ele compactuasse com a prática criminosa. Isso abalaria inclusive sua posição sindical.
Enquanto o papo se estendia na espera pela polícia, o acusado calculava uma possível rota de fuga. O joelho que o atrapalhava para jogar bola fazia década agora era um problema maior, pois não teria como fugir no lento elevador, em que um cotovelo de Ana do 202 poderia impedi-lo inclusive de entrar na nave. E para descer as escadas, bom, eis o joelho canhoto problemático.
- A polícia vem em cinco minutos, meus caros. - Alertava o tratante da ligação. - Tinham mais duas ocorrências locais, mas esta, naturalmente, discorre em prioridade. - Falava muito polido e tentando transparecer a elegância que suas noitadas de bebedeira faziam desaparecer.
- Já tive um primo detido por questões assim. - Arriscava baixar-se a crista Ana do 202. Ficou com o rosto fora do alcance dos demais enquanto meditava. E acrescentou: - Nunca mais soubemos dele.
- Lembro do conflito pelos tomates. - Deixou marejar os olhos o velho Vieri, já de telefone novamente disposto ao repouso do bolso. - Coisas que nem queremos lembrar. - E ameaçou retirar da carteira a foto da falecida mulher por quem, passadas algumas latas de cerveja ou goles destilados, ele rememorava inutilmente, sem sequer obter o apoio moral dos demais inquilinos.
- O conflito dos tomates, sim... - Acrescentou Nilton, querendo demonstrar experiência com o assunto, voz ativa de síndico, ao mesmo tempo que percebia transparecer demais a idade, algo que ele tentava ocultar ao pentear os poucos fios de cabelo para o lado, na tentativa de disfarçar a crescente calvície.
Vieri, que, apesar de notoriamente mais velho, tinha mais cabelo, se encorajou a prosseguir. - Foram dias angustiantes. Nunca se perdoou aquele desperdício de safra. Muitos agricultores foram enforcados, outros tantos foram depostos de suas terras e o rigor das leis chegou a esse ponto sobre o desperdício de azeitonas. Vocês sabem, se comprou com azeitona, há de comer a azeitona.
- Há de comer - recitaram os vizinhos em coro, com exceção, é claro, do acusado.
Calculando seu tempo de fuga eram menos de dois minutos e meio, se houvesse precisão na previsão de Vieri, até os policiais, armados até os dentes, adentrarem o prédio e, amparados pelas testemunhas, como se precisassem delas para agir com violência, encarassem a situação do acusado, o botando para o chão com revólveres apontados para sua nuca, enquanto o rosto mergulharia no piso, profanando, esmagando, cheirando aquelas azeitonas esparramadas.
Pensou nas consequências de seus inegáveis atos e resolveu agir. Ignoraria a presença do Nilton e passaria por cima de todas as dificuldades, incluso do joelho que o ameaçaria tornar-se manco. Valia o risco em busca da frágil liberdade condicional - ou seja, como fugitivo.
Surpreendeu as testemunhas e saltou em desabalada carreira para vencer o pequeno corredor, deixando para trás as portas dos vizinhos em questão (menos Nilton, que morava no andar de cima), vencendo as evidentes azeitonas e ganhando rapidamente a estreiteza dos degraus, que mal cabiam seus pés, que quase não os tocavam, esvoaçante, cintilante fugitivo. A demora das reações demais se confundia entre o apavoro diante da petulância e mesmo a falta de reflexos para agir, pois se tratavam de um homem de meia, quase idoso, um idoso alcoólatra (que passara por infartos, como seguidamente recordava) e a Ana bisbilhoteira e nada atlética, que para serviços mais dinâmicos mesmo de limpeza necessitava do marido.
Os três ficaram atônitos até começarem a se mexer, quando o suspeito (na melhor das hipóteses para ele à essa altura) ganhava a primeira condicionalidade de sua liberdade, a porta do prédio, que abria tranquilamente para quem quisesse sair, mas necessitava de chave a quem quisesse voltar/entrar. Mais sorte ainda ele teve quando outra vizinha, dona Maria de Fátima, entrava também alvoroçada pelas sacolas que trazia fora de horário da farmácia. A corrida desabalada do suspeito fez com que ela tomasse também tamanho susto, jogasse parte dos conteúdos com sacola e tudo para cima e quase emulasse o senhor Vieri com seus micro infartos.
O profanador de azeitonas ganhou a rua. Ele pela primeira vez, já imaginado diante do júri (se houvesse júri), agradeceu à administração municipal pela iluminação pública deficitária, que agora lhe conferia abrigo contra os inquisidores. Enquanto corria pela rua, nem tão rápido que fosse impossível caçá-lo, nem tão lento que o joelho tenebroso estivesse em conforto, notou mais pessoas dispostas a prender o agressor da tolerância, o violador dos bons costumes. O boato, o fato se espalhava rapidamente pelos grupos virtuais. O que era fato logo era acrescido de boatos. O que era boato logo recebia colheradas do fato. A história ia e vinha, misteriosa, aguçadora da curiosidade, chamativa para que os indignados saíssem de suas casas e buscassem a justiça, nem que fosse com as próprias mãos. A polícia estava a par do caso. Duas viaturas já não eram suficiente. Melhor chama reforço para além da praia. O profanador poderia estar saindo do bairro. Situação lamentável para a pacata região, rodeada de coqueiros, palmeiras, acolhedores bancos de praça que os vizinhos utilizavam no cair das tardes para compartilhar conversas, chimarrão nos costumes do Rio Grande depositados ali, além de calçadas largas e geralmente limpas, pois na cidade se honravam as azeitonas e também o hábito de recolher o que os cuscos encerravam por digestão.
Ele foi zigazagueando muros e árvores e bancos de praça. Fugindo da luz. O gatuno fugitivo - e lembrou da risada infame do velho Vieri. O velho maldito importunara seus planos. Ele era o culpado. Ele quem jogava as azeitonas fora. Não teriam provas antigas, mas aquela evidência bastava. Testemunhas. Confissão de crime. Enquanto fugia na carreira que todavia era desabalada, o profanador pensou que poderiam pedir opinião de lixeiros e outros vizinhos e os malditos testemunhariam contra ele. Que havia algo de estranho naquela lixeira comunitária sim e só poderia ser do inquilino do 203. Que era um vizinho esquisito, de hábitos noturnos, insone, que fazia barulhos no apartamento em alguns horários inoportunos. Inoportuna era aquela situação como um todo. Não haveria necessidade de acrescer paranoia. Era concentrar-se nos planos de esconderijo. Lembrou do clássico Homem Nu de Fernando Sabino. Ele não estava fugindo nu, mas, se no conto premiado do escritor mineiro, o protagonista lutava mais contra a vergonha mor do que a condenação da Justiça, ali ele estava, não ficcionalmente, lutando pela liberdade do seu ir e vir, se a polícia repressora não desse um jeito de sumir com ele, profanador das ditas azeitonas.
Enquanto infiltrava-se astuto no mundo das severas sombras, ouvia os ruídos apetitosos dos sedentos por justiça com as próprias mãos. Deveria ser apenas delírio e paranoia que até tocha de fogo, como nos clássicos antigos filmes em preto e branco ele viu moradores carregarem. Porém o breu das ruas em que se metia era tão pesado, que ele mal enxergava 10 metros adiante e as tochas ou as mais modernas lanternas de led ou celulares viriam bem a calhar na busca, na caçada dos cidadãos.
O blasfêmio tentou um golpe de mestre após praticamente sair dos limítrofes do bairro. Fazendo um caminho inverso, mas por outras ruas, seu destino era voltar para casa, onde os cidadãos estariam ou dispersos ou já tomando remédios para dormir após tamanho infortúnio. No caso de Vieri, a pinga daria conta de romper com a disposição do vizinho de porta. O profanador perdeu a noção do tempo em que esteve fora do apartamento. A madrugada conforme se estendeu também dava traços de entrega. Os primeiros raios da manhã apareceriam tímidos.
Sem exagero, já apareciam em poste que outro, em muro que outro sua foto estampada com direito a código para acessar maiores informações do caso. A polícia, mesmo em cidade pequena, estava a toda em prontidão. O próprio acusado não recordava a última vez que algo hediondo como profanar azeitonas havia ocorrido não só naquela comunidade, mas no estado, tido como dos mais seguros do Brasil. Um crime como esse poderia, inclusive, tentar ser abafado, sumindo com o indivíduo, ocultando o corpo. A internet, nesse caso, poderia jogar a favor dele, pois o caso em poucas horas já estava registrado, porém, tão rápido como eram divulgadas, as informações também poderiam sumir e dele não se saberia mais. Pensou em familiares distantes. Será que lembrariam dele? Exigiriam investigações que não ocorreriam? Além do mais, a opinião pública pouco ligaria para um criminoso desse calibre. A maioria setenciaria que o que tivesse ocorrido foi justo e que o inferno, ou o que o valha, lhe aguardava.
Se aproximando dos fundos do prédio, faltando apenas mais um muro, tentaria ele se esconder pelos fundos da garagem até que pudesse, de repente, arrancar com o próprio carro, na distração dos que ainda rondavam por ali. Não era o melhor dos planos, ele admitia, mas o labirinto de ruas o levava para casa de volta. À chave do carro tateada no bolso, era possível, sim, interceptar o carro e tentar uma fuga motorizada. Claro que ele tentou arrombar um ou outro carro no caminho, obviamente sem sucesso pela falta de prática. Mas profanar azeitonas, blasfêmia dessa forma era bem pior.
Pulou o último dos muros que o separavam daquela aparente breve segurança. Um vão atrás da garagem, suficiente para escutar e até cuidar visualmente movimentos da garagem do prédio, que, apesar do escândalo, precisaria aparentar alguma normalidade na rotina. Se o quisessem eliminar, como poderia ser o plano, ele imaginava, não totalmente desconexo da realidade, a vizinhança teria que persegui-lo, mas sem um total de alarde - além dos nada discreto cartazes que o próprio fugitivo já havia visto. Estaria ele procurado em rodoviárias?
Enfim, saltando de volta para propriedade que englobava aquele microcosmos de condomínio, tomou um susto tão grande ou até maior do que os condôminos haviam tomado na noite anterior. Diante daquele espaço, daquele recôncavo, daquela câmara, daquele vão que talvez muitos nem sabiam existir atrás da garagem/estacionamento, ele viu o que os olhos demoraram a crer: eram sacas e mais sacas de azeitonas. Azeitonas profanadas por quem? Por seus vizinhos.
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