03/01/2025

O Medo Consome a Alma (1974)

Rainer Werner Fassbinder foi um dos diretores mais polêmicos da História. Uma ousadia extravagante para colocar em suas histórias e adaptações problemáticas muito avançadas para época, mas que também ditariam tendências na modernidade alemã. Por exemplo, temáticas que abordavam a existência da homossexualidade, o preconceito entre classes, o machismo (talvez a temática entre essas mais presente em chocantes cenas em seus filmes) e finalmente o tema de O Medo Consome a Alma (1974), com a abordagem do preconceito racial na Alemanha. Além dele, é claro, o etarismo, termo que entraria em voga somente renitente décadas depois. Sinais do avançado Fassbinder em trazer, entre um cigarro e outro, as tendências futuras para pautas.

A senhora Emmi Kurowski é uma viúva na casa dos 60 anos que, fugindo de uma inoportuna noite de chuva, se abriga em um bar especializado em receber imigrantes. A música árabe preenche ao fundo as cenas iniciais no nefasto ambiente. Sem jeito, ela pede uma Coca-Cola na obrigação de consumir e consumar sua presença. O imigrante marroquino Ali, que na verdade possuía um nome muito mais longo, mas era conhecido pejorativamente como Ali, é encorajado e retira Emmi para dançar. Os dois passam a se entender rapidamente formando esse casal deveras inusitado.

Se o filme anterior analisado neste canal, o Flor do Equinócio (1958) de Yasujiro Ozu tratava do poder de escolha das mulheres para o casamento, será que observamos tantas mudanças para Alemanha pós guerra, neste espaço na Munique em filme de 1974? A senhora Kurowski, viúva de um polonês, desejava companhia em casa e a chegada do negro marroquino Ali iluminou seus dias, fazendo com a que a solitária veterana logo vislumbradas uma união com o rapaz mais de 20 anos mais jovem.

Mas o preconceito racial aflora em uma Alemanha ainda muito preconceituosa, brotando animosidade desde o prédio onde Emmi vive, passando pela apresentação de Ali aos filhos da matriarca, e até no serviço, onde Emmi trabalha na faxina, na limpeza de um prédio em que cada empregada se dedica ao espaço público de dois andares. No caso empregatício, ainda há uma cena em que uma das funcionárias foi demitida por roubo e a nova contratada é uma moça da Bósnia Herzegovina, que passaria a receber um salário marcos menor do que as demais serventes, justamente e puramente por ser estrangeira, estar menos adaptada ao idioma, às condições de trabalho e aos seus direitos ignorados.

Assim também se sentia o negro Ali, sem nome, pejorativamente chamado por um nome comum aos árabes, trabalhando em uma oficina e, antes de Emmi, vivendo em uma peça de alojamento com outros cinco homens. A oportunidade do casamento desperta uma nova viva e perspectiva em Ali. Mas os problemas cercam o inusitado casal, sempre em cenas duras, cruas e, por que não, cruéis depositadas desde as lentes orientadas de Fassbinder. Em O Medo Consome a Alma - ditado árabe dirigido por Ali a Emmi em uma cena íntima de ambos no apartamento da senhora  - o drama é uma constante, como é constante nos filmes do falecido alemão, o qual ele mesmo adorava aparecer em seus filmes, geralmente com papéis secundários. Dessa vez o bigodudo aparece como genro de Emmi, casado com a única filha mulher da senhora de Munique.

Fassbinder era tão desgraçado que mesmo trazendo essas temáticas contra preconceito, interpreta muitas vezes os personagens mais rudes, agressivos ou preconceituosos. No caso de sua atuação em O Medo Consome a Alma, o genro de Emmi tem um chefe turco e o despreza. Não aceita receber ordens de estrangeiros. Os repudia e obviamente não aceitaria o casamento inusitado de sua sogra com um marroquino.

Sabe-se que mais de cinco milhões de turcos vivem atualmente na Alemanha. Mais outros marroquinos, tunisianos, argelinos como Ali, mais outros muçulmanos de além África, e como a sociedade alemã, passadas décadas, porém poucas gerações do asqueroso nazismo, lida com eles? Preconceitos velados? Cenas escondidas entre as paredes de prédios e apartamentos? Diferenças entre interiores e as grandes cidades como é Munique?

Fassbinder foi marcante no chamado Novo Cinema Alemão e deixou como legado filmes intrigantes como a ousada proposta de O Medo Consome a Alma - não bastasse a escolha certeira em temáticas ainda nos brindou com poéticos títulos de inebriantes obras.

Nota final em 4,5 / 5






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