28/01/2025

Semana para Sempre

Assisti a mais um filme com tons biográficos. Ratcatcher (1999) ou O Lixo e o Sonho, que se passa em Glasgow, na Escócia, demonstrando a vida de um garoto chamado James, descobrindo coisas da adolescência, enquanto a greve do recolhimento acumula sacos de resíduos, ratos e mais problemas do que aquela comunidade pobre e operária já necessariamente passaria por.

Passei essa semana com minha vó, a única semana em nossas vidas sob essa condição de só nós dois. Me sinto tão culpado de várias formas. Ela sempre morava com minha tia e finalmente a liberei para passar férias no litoral de Santa Catarina, enquanto fiquei a cuidar de vovó. Lembrar que em 2022 elas tiveram a condição de morar com o restante de minha família em Santa Catarina, mas decidiram voltar ao estado mais ao Sul do país.

Essa semana com minha vó fez eu me sentir culpado de, embora ajudá-la, não poder fazer tudo por ela. Tudo mesmo. Embora eu saiba que ela se sinta mais útil, mais viva podendo exercer coisas que sempre fez pelas casas onde morou. E também penso que esses dias em que pode se contentar apenas com a vista dos prédios em volta pelo centro e pela televisão, em que ela prefere o entretenimento do SBT, ignorando a assinatura dos canais por assinatura, que não são baratos e chegaram a ser contestados por nosotros (eu e ela).

Me sinto culpado porque, principalmente, o distanciamento sentimental com minha avó se deve, além de minhas condições mentais, à falta de uma experiência anterior que nos unisse em tamanha proximidade. Essa semana possibilitou isso. Jogamos cartas nesse último dia a sós. Ela se divertiu com minha companhia, com a cerveja e com as verdades que compartilhamos, eu me diverti, além disso, por ter ganhado o jogo com certa tranquilidade, em um placar elástico de 15 a 4 no pife. 

Além de adiar essa experiência entre avó e neto, ela agora em seu 92⁰ ano sobre a Terra, me sinto especialmente culpado por esse distanciamento ter me feito pensar, por vezes, que talvez não fizesse a mim uma grande diferença a sua partida. E hoje encontro minha avó muito mais próxima, mais humana do que nunca. Às vezes naturalmente provocativa e sonsa, como características do signo de leão, mas com uma vontade imensurável de acertar, de agradar, de me acompanhar disposta. Algo sem palavras para expressar o bom relato de seu companheirismo, nessa semana em que quase perdi por vezes o bom cabo da paciência, mas sempre consegui mantê-lo, como com outras pessoas talvez não conseguisse, e assim o convívio foi satisfatório e na agradabilidade do companheirismo.

Me sinto culpado pelas vezes em que pensei minha vó como o número de sua idade, agora recordista em nossa família ao cruzar seu 92⁰ ano. Mas ela, muito além de um número, é uma bela história de vida. Filha mais nova do imigrante alemão alcoólatra. Filha talvez preferida entre as filhas por ser a mais jovem, mas não mais do que o moço da geração delas que teve direito a investimentos para estudos e intercambiar fora. Minha vó tem quase nenhuma formação escolar e, mais do que isso, trabalhou de servente em escola por muitos anos. Característica do emprego essa ela levou para vida, sempre muito prestativa e disposta a ajudar os outros, sem luxo e apaixonada pelos pequenos gostos, refeições e momentos familiares, como sei que gostou dos que passei com ela.

Fazer algum paralelo com o filme que assisti. A agonia toma conta dos espectadores ao verem o lixo que se acumula em Ratcatcher, as crianças brincando em riacho poluído, com ratos e todo tipo de exposição a doenças. Minha avó jamais deixaria chegar a esse ponto. Acho que se fosse escocesa dessa época, sairia de casa ela mesma para colher o que conseguisse de lixo, em nome da vizinhança. Uma senhora inacreditavelmente disposta, que sobreviveu a tombos físicos, de cair na calçada ou em casa, a tombos que a vida pudesse lhe pregar em peças desagradáveis. E chegou para me orgulhar, para me atender, para eu me sentir quisto e amado, em pleno seu 92⁰ ano. Se cheguei a duvidar o impacto que teria sua futura partida, à qual nos programos de uma forma ou de outra, agora me é indubitável o poder que as recordações me trarão e tratarão dessa nobre senhora, de seu riso inconfundível, sorriso fácil e surpreendentemente fotogênico, acima até da beleza, cabelos vastos, feições grandes e simpatia simples. Pudera eu ser mais de ti do que o sangue que também sou.

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