Primeiro que, contextualmente, escrevo este texto após saber de denúncias contra o escritor Neil Gaiman e outros, o que me faz sempre pensar na perversão, nos bastidores terríveis dos Estados Unidos da América a respeito de escândalos sexuais, o que se pode ampliar para o cinema, para os escoteiros e sabe-se lá o que de pior entre as paredes das casas. Uma sociedade doentia e que venera o sexo de uma forma que creio ajudar a deturpar os cérebros naturalmente deturpantes.
Todo esse contexto a respeito porque trata-se novamente de um filme dos Estados Unidos, passado em Nova York de 1945, recém acabando o grande acontecimento secular de Segunda Guerra. Um soldado chamado Joe chega de seu acampamento para passar dois dias em Nova York, a maior cidade do país, com mais de 7 milhões de habitantes, divididos entre Brooklyn, Queens, Manhattam, Richmond. Joe nunca havia estado em NY e, ao que parece por seus movimentos surpresos, nunca havia estado em cidades grandes. Surpreso com o tamanho dos arranha-céus que ele poeticamente classifica como coletores de nuvens, surpreso inclusive com o movimento simplificado e repetitivo das escadas rolantes.
Joe atabalhoadamente tropeça em uma jovem logo na chegada rodoviária e acaba quebrando o salto do sapato da moça, algo meio cinderélico. O encontro casual entre os dois evolui para se tornar a trama do filme, exclusivamente português para se chamar Ponteiro da Saudade, ótima tradução, diga-se de passagem. Solitário, Joe depende da moça para conhecer as primeiras atrações nova yorkinas, o que, vá lá, entre Central Park, museus e largas avenidas dotadas de diferentes transportes, dá o tom do que seria a corrida norte-americana para mostrar seus sucessos ao planeta durante a Guerra Fria. Mas não quebremos totalmente o encanto do jovem casal com politicagem (não muito).
O filme causa uma tremenda angústia ao pensarmos que o encontro casual transformado em desencontro em repetidas cenas poderia terminar a qualquer instante, sem redes sociais, endereço ou mesmo local de trabalho em que pudessem se reencontrar para prosseguimento. Se perdem entre bondes, ônibus, metrô, galerias, pontos turísticos de encontro.
Mais do que isso, o drama/romance parece criticar a vida militar de desencontros para viver longe da família, dos amigos, das amantes em acampamentos distantes, missões injustificadas, viagens para Europa: Joe iria à Inglaterra, ao que recordamos. Em apenas dois dias, esses jovens querem mudar suas realidades e transformar a insegurança e incertezas em algo mais absoluto. Joe parece mais acertivo de seus objetivos com a jovem Alice, enquanto ela, carregada de dúvidas, um tanto quanto consternada de apaixonar-se rapidamente por um militar, põe-se em dúvida diante de sua amiga e companheira de apartamento, além do papel social, sempre fundamental nessas escolhas.
O drama do soldado que precisa seguir em missão, mas torna-se determinado em, naqueles míseros dois dias, concluir missão antes de sair-se para Europa. Quase século depois e podemos pensar de que valem tantas escaladas longe de quem os ama e os faz viver, seja em Vietnãs, Kuwait, Iraque ou Afeganistão.
A segunda metade do filme se desenrola em burocracias de que o casal tenta desenrolar um apressado casamento, vá lá politicagem, não se sabe se em obscuro desejo de desburocratização e de provar que os jovens nessa cultura ocidental ao menos tem o privilégio das escolhas, mesmo impulsivos e apressados, que diabos, além desses jovens personagens e dos mais velhos burocratas organizadores de certidões, exames de sangue e, finalmente, casamentos, há nenhuma supervisão dos distantes pais de Joe ou Alice, que somente comentariam com eles após registradas as atas. É um contraste tremendo a vidas interioranas e de países asiáticos ou de prevalência da cultura muçulmana, por exemplo.
Havia prometido não misturar a tocante história dos jovens com politicagens, mas depois me tocou inevitável. Perdoem-me. O filme traz fragmentos bastante realísticos e outros um tanto forçados, mas sem obstruir totalmente seu brilho. Os encontros após desencontros são angustiantes e de tirar o fôlego. A chance de dar tudo errado era evidente, mas Joe e Alice estão imantados do magnetismo do cinema de finais felizes. Será? Pois a vida militar segue e os Estados Unidos da América, mr. Trump, segue em escalada internacional para separar os corações apaixonados de Joes e Alices, ou o nosso Green Day também não lançaria 60 anos depois uma música pedindo para ser acordado após o fim de setembro.
Entre escândalos sexuais de uma sociedade doentia e corrompida, entre queimadas criminosas ou má administradas na questão climática, que eles tanto deixam passar, os malditos ainda escrevem algumas histórias de amor que valem-nos 1h30 de atenção e conformismo, de amolecimento do conteúdo miocárdio e mansidão da mente.
Céus, eu e minhas notas altas
Nota final em 4,5 / 5
Direção de Vincente Minnelli
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