Será que os pássaros percebem a beleza que eles veem
E que gostaríamos de ver?
Descobri a Ana Amaral, Fernanda Young no documentário recente (2024) sobre sua vida, roteirista, escritora que se almejava e considerava assim desde antes da alfabetização. Criativa, rebelde, reconhecendo em si a crítica de que poderia ser egocêntrica, mas quem não é? Lidar de frente com isso é honesto e a palavra que marca sua trajetória: coragem.
Coragem não exclui o medo. Só não sente o medo quem está totalmente medicado, drogado ou já é louco de pedra. Nós com discernimento não somos assim. Fernanda era corajosa.
Viveu entre Niterói e Rio de Janeiro, realidades que ela postulou como próximas e distantes. Aponto palavras e termos que ela própria usou, como autobiográfico. Acho interessante assim, porque rotular os demais é perigoso e quase sempre um tanto injusto. Lamento ou não pelas vezes em que faço isso e também somos vítimas.
O documentário traz passagens frasais de sua vida e história. Dá vontade de conhecer mais de sua obra. Até a inspiração desde os desenhos mais ou menos toscos que fazia, pois ela destaca: os desenhos vêm (na vida das pessoas) antes da palavra escrita. Isso é bem verdade. Seja na história da humanidade, das pinturas em cavernas, ou na vida dos bebês, das crianças, que antes podem desenhar ou reconhecer desenhos do que escrever o próprio nome.
A relação dela com a procura de definições e situações para o amor é tema de autores, músicos, escritores, artistas que veneramos. Em certa altura ela questiona se do vazio enquanto não se ama brotam sentimentos negativos. E não é assim que vivemos e passamos o tempo amargurado em sociedade? Nos preocupando e enchendo-nos de distâncias, ânsias e repúdios; repugnar.
Ela almejou por um tempo de diversão em que não houvesse reticências. E concluiu sobre a liberdade e a cura. De um coração quebrado, a cura é enxergar que não mais se espera pela perfeição que nem existe.
Entre a idealização social da noiva vestida, se deseja na verdade a nudez. Abaixo das maquiagens, das fotos, dos sorrisos falsos, há um ser muito mais complexo. A liberdade é se desprender da imagem que a sociedade impõe. Fernanda enxergou isto.
Com elenco recheado de estrelas do cinema italiano, o longa (2h05) Todo Modo, com direção de Elio Petri, conta os entrelaços de igreja e política na Itália. De forma humorada e exagerada, a tensão ora cresce, ora se dissipa quando figurões da política e da religião Católica se encontram em exercícios de fé, em uma espécie de retiro, distante dos holofotes dos jornais e das grandes cidades italianas.
Após a queda do Fascismo com a derrota na Segunda Guerra Mundial, a Itália passou a ter dois partidos de maior força, um mais progressivista e outro mais conservador, sob a doutrina e a asa da Igreja Católica. Sem usar nomes oficiais sequer para identificar qual seria o Partido do filme, a ligação é evidente. Quando mencionam durante todo o filme sobre afirmados 30 anos de poder, é ao conservador que se referem. Justamente o tempo entre a queda da Segunda Guerra e a realização do filme de Petri.
Os velhos brancos, engravatados e de terno se reúnem em um fim de semana para rezas, mas também, cada qual tramando em seu quarto, para um perigoso jogo de gato e rato em acerto de contas. Dom Gaetano é o padre principal que organiza o cronograma e as realizações cristãs do encontro. Logo ao começo uma cena entre ele e o dito Presidente (provavelmente mencionado assim por dirigir o Partido) dá indícios de uma relação homossexual entre ambos. O filme é repleto de sátiras.
Os políticos e religiosos lavam as mãos nesses encontros. O Partido é tomado por donos de empresas, banqueiros, empresários e influenciadores do sub-mundo financeiro. Do meio para o fim da história aparecem, também de forma satírica, uma verdadeira salada de siglas para tentar compreender quais empresas estariam envolvidas e na reta dos escândalos. A tensão passou a tomar conta quando ocorre a primeira morte. Um investigador é contratado para entrar em cena, enquanto o escândalo ainda é abafado das famílias, dos populares e dos jornais.
Tão logo chega o investidor, os homens de terno demonstram seus temores, suas inseguranças, no velho ditado de quem não deve, não teme. Mas como ali estão figurões dos mais corruptos da Europa, o aspecto de máfia se sobressai e o pânico se instaura. A crítica proposta é conhecida pelos problemas de corrupção que a Itália sempre atravessou, além de burocracias e nepotismos, heranças que parece terem sido bem transportadas com os imigrantes ao nosso Brasil. O nepotismo aparece com maior força em cena para o final do filme, quando cobranças de esquemas vêm à tona e ninguém mais mantém a calma durante o alarido das investigações e consequências.
A ligação entre igreja e política denuncia tanto uma instituição quanto a outra, a do Partido. O próprio Dom Gaetano afirma que se a Igreja Católica logrou êxito nos últimos séculos foi mais por competência dos padres ruins do que dos bons. O suficiente para bom entendedor.
Além dos escândalos financeiros e da possível tentativa de eliminar denunciantes ou opositores, ainda percorrem o filme os escândalos sexuais, outro tormento para as instituições lidarem e se protegerem das investigações e da opinião pública. O comentário sobre o filme vem em imaculado momento, pois recém divulgaram-se os dados sobre as religiões em território do Brasil, com o catolicismo ainda sobressaindo na casa dos 56% das pessoas, queda em relação a outras pesquisas, mas o suficiente para manter vantagem sobre o crescimento dos evangélicos, já representantes de pelo menos um quarto da população brasileira. Os sem religião representariam cerca de 10%.
A ligação entre Igreja e Estado (Política) no filme italiano denuncia as hipocrisias, farsas, inaptidões e desinteresse dos engravatados pelos reais problemas de sua população, enquanto miram lucro e boas relações interpessoais para vantagens exclusivas. Em um momento de crise, após o estopim dos problemas no encontro, alguns dos políticos discutem os problemas e se não seria vantagem então pular o muro rumo à oposição, pois os riscos de permanecer no Partido em crise eram evidentes.
Escândalos financeiros, interpessoais, acusações, falsidade, escândalos sexuais, tentativa de manter a ordem e as práticas de doutrina: tudo isso se encontra nas confusões reservadas ao filme Todo Modo, nome importante e que deve ser prestado atenção para descobre os enigmas que envolvem essas corruptas instituições mandatárias secularmente na maior parte da Europa, antes mesmo de unirem os fragmentos e a Itália ser Itália, visto que o país é relativamente novo, saindo dos impérios e denominações feudais rumo às fragilidades ditas democráticas.
Drama, comédia, suspense e até o terror dos cadáveres estão reservados em Todo Modo, um filme que desafia as instituições regulamentadas a exercer o poder, denuncia práticas obscuras sem citar nomes oficiais, apenas alguns símbolos, sem crucificar quem já não estivesse crucificado há quase dois mil anos do prazo de lançamento em 1976. Aventura sagrada e profana muito bem-vinda na exploração de diferentes temas.
Nota final: ⭐⭐⭐⭐½