- E como está a ilha, muito cheia?
- Mas bah! Nem imagina. Argentinos, uruguaios... só não vêm os chilenos porque ficam mais longe. Mas paulistas, gaúchos... sabe como é!
- Sei...
E trocaram algumas palavras as primas antes de se despedirem. Precisava agora era pegar a estrada e tentar chegar lá com algum tempo de sobra. O necessário ao menos para descarregar as compras, tomar uma ducha, acertar-se com o vestido e partir para a orla da praia para ver o artifício dos fogos. Subiram na 4x4 e começaram a comer o chão que o diabo asfaltou. Bom trecho duplicado quando partia de sua cidade rumo à famosa ilha. Até aconchegar-se lá era um trânsito dos mais estressantes. À medida que se aproximavam do destino final, um afunilamento que trancafiava os carros todos. Uns poucos caminhões que nada de férias neste ano novo, umas duas ou às vezes três fileiras de motociclistas que iam sincronizados tirando finosas dos espelhos retrovisores dos carros de abestalhados motoristas. No balé das motos havia um avanço, mesmo devagar, enquanto a camionete permanecia quieta, na vontade que dava de desligar o motor e manter a mão impaciente no queixo, na pura expressão que designa e define o tédio.
Barbaridade... Soubesse que era tanta a demora tinha saído um dia antes, dois dias antes ou quem sabe nem vinha, se deslocava para a piscina do parente, bebia uma champanhe meia-boca e deu para os doces. Mas não, queria porque queria passar a virada de ano com a companheira na ilha. Elas estavam juntas havia alguns anos e se complementavam, principalmente em renda, que era importante, mas também nas chatas tarefas, ao menos ambas consideravam, de faxina, tirar o pó dos cantos, arredar os móveis e por de volta e fazer almoço. Nenhuma muito dedicada aos serviços domésticos, mas na hora de dormir junto ou passar a tarde a prosear com chimarrão em mãos valia a pena. E queriam o relacionamento que era difícil medir as contas bancárias e birutices da mente sem uma acompanhante. Assim iam ano após ano e naquele passariam porque passariam a entrada da década no litoral. Não só na faixa continental, mas extracurricular, na ilha das ilhas. E suspiros e haja saco para aguentar a serpente retardada daquele trânsito. Fulminou e lançou pragas contra todos aqueles malditos semelhantes de mesma ideia para passar a droga da troca de calendário. Não tinham algo melhor para fazer? Outro lugar ou uma piscina do parente ou a champanhe meia-boca ou? E esticava o olho no exercício da distração de olhar para os carros vizinhos e imaginar quem ia, no que trabalhavam, o quão chatas eram as crianças, que ela não aguentava mais, pois labutou a vida percorrendo de escola em escola, secretarias, bibliotecas e crianças, sim, sempre muitas crianças, das mais diversas, dentes faltando, brigas bobas, invenções, piadas, bobagens de idade, piolhos, ranhos, lancheiras perdidas.
Gostava ela de olhar as placas dos carros e ver de onde eram, isso até facilitava encontrar ou desencontrar, fingir que não viu algum conhecido da mesma cidade dela do sul do sul, mas agora o novo regramento era com as placas que apenas indicavam Brasil, e outros eram Argentina e ainda uns poucos de Uruguay, com Y, o que a irritava. E pensou que muita coisa a irritava, no dia a dia e inclusive ali na véspera do feriado. O sol que ora aparecia, ora sumia. O mormaço, tá calor para caramba e surgem os oportunistas, idiotas, nada melhor para fazer no quadro social do que vender panos de prato e guardanapos de cozinha e toalhas na beira da estrada? E em seguida esse pensamento era desmentido, ressentido, amassado y jugado al basurero. Se envergonhava de pensar isso, logo ela, que sempre militou mesmo quando não sabia muito disso. Não havia lido autoras feministas, mas assim já praticava. E na verdade ao longo da vida de colégios, secretarias, bibliotecas, crianças (muitas crianças) sempre cumpriu com a parte dela dessa educação para empoderar as mulheres. E no seu próprio estilo, que começou cortando e cortando cada vez mais os cabelos até ficarem bem curtos e as roupas conforme ela queria usar, no jeans, mais calças do que vestidos, embora fosse nessa virada usar um vestido, sabe-se lá, para variar um pouco. Usava o que quisesse, não é mesmo?
E se envergonhou tanto do pensamento anterior que inclusive resolveu comprar, 3 por 10, maravilha, vão enfeitar a cozinha, talvez ficasse de presente para avó dela, ainda viva, tão velhinha, últimos presentes em vida e, vejam só, um pano de cozinha, sim, desses para secar a louça. Podia ser coisa melhor. Na ilha haveria de ter. Contou dinheiro para ir, mas na ilha sempre tem. E lá há outros vendedores ambulantes e cercam os guarda-sóis. Como que escreve guarda-sol? Isto, em plural? Tanto faz, a fila voltou a andar e ela num passe de mágica, como em uma história em quadrinhos rompeu aquela imaginação distante e posicionou a marcha para uns galopes à frente com a camionete. Havia tirado a carteira de motorista havia poucos anos, na verdade incluso depois de conhecer a companheira. E até gostava daquilo, ela que não se apetecia pelos serviços domésticos, das poucas tarefas não artísticas que lhe alegrava cumprir estava segurar no volante, passar as marchas, pedalar do freio ao acelerador.
Jamais esqueceria a primeira vez em que pegou estrada, mas nada tinha a ver aquela sensação de liberdade e exploração com a exploração do pedágio logo adiante e da demora de todos aqueles motoristas enrolados. Gostava da prontidão das coisas, assim resolvia as questões de sua vida. Seu relacionamento foi de primeira, jamais esqueceria como se conheceram. Se quisesse obras em casa, fazia. Fazia ela própria que de ferramentas ela manjava e as paredes viviam em queijo suíço de tantos furos. E na pressa no combo da ansiedade, controlada ultimamente por mais um de seus tantos remédios, queria chegar logo na ilha.
Queria tanto e criara tanta expectativa que estava assustada. Como a ilha suportaria tanta gente, tanto sotaque castelhano, tanto gaúcho com bombas e ervas, naquela piada do pampeano no aeroporto, anedota que ela tanto gostava? Quantos hotéis e quanto lucro! e aqueles pobres coitados vendendo panos de prato e de cozinha com essas figuras risonhas, ao menos alguém nesse ambiente todo, fora os donos de hotéis. Sorrisos de corujas, de cavalos marinhos e estrelas do mar. Estrela é que não era muito bem-vinda naquele estado havia algumas eleições. Outra vez política, guria? Te sossega.
E ela se sossegava e a companheira, atrapalhada que era, ia ao fundo da bolsa para catar as moedas e facilitar o troco do pedágio. Eram dedicadas as duas. E se entendiam. E assim estava bom. Ao menos estava melhor, não é mesmo? Escolheu a fileira errada e o pac man da ampulheta comeu mais uns 10 minutos naquela quadra do pedágio. Transcorrido isso, faltava pouco ao destino final: a ilha.
Havia inauguração da nova velha ponte. A travessia desativada em novas atrações e fogos de artifício para ver desde o continente. A visão privilegiada obviamente era na ilha, do contrário não haveria motivo de cruzar a outra ponte para chegar até o hotel, do banho, do trocar de roupa, só pensava nisso. Tanto esforço para isso, será que valeria a pena? Mas também desde que via as sobras de lixo à beira do Guaíba em Porto Alegre não quis mais saber de passar a virada na capital gaúcha. Dizia que de gente mal educada já estava farta na própria cidade e queria gente mais instruída nesse momento sublime. Daí desbancava a pensar se novamente estava sendo elitista?
Naquela maçante troca de marchas às paradas de total ponto morto, avistaram a tal da ilha. Tudo eram luzes e sorrisos. A mente avistou aquela cena que talvez fosse alucinação auditiva a percepção de buzinas de comemoração. Fogos é que ainda não eram, tão cedo se tratava. Galgavam naquela procissão antes fúnebre em marcha lenta para uma maior animação, todavia na lentidão mantenedora. Era muita gente. Na memória, fixava o comboio desordenado de carros argentinos, ora em uma fileira ora em outra, com suas fitas amarradas que uma vez ela tenha ouvido falar que se trata das proteções a olho gordo. Para ela, mais uma daquela mania de argentinos.
Se na rodovia quase tudo parava para depois seguir, na cidade, nas sinaleiras que desafiavam sua miopia ao entrar da derradeira noite, seguia o baile. Até ver o mar a noite já estava cerrada e o sol prometia voltar só no ano que vem, com a garantia do cantor Renato Russo. Escuridão havia bem piores, de fato, porque a cidade estava tomada de fachadas e anúncios iluminados, entre as esperanças do recomeço em janeiro e os resquícios natalinos. Os hotéis pareciam uns com os outros e elas checavam o endereço a todo o instante para não passar do ponto na avenida principal daquela praia. Se dirigiam ao norte da ilha e depois voltariam para o definitivo ponto entre as pontes, a que cruzaram e a que estava sendo reinaugurada na ocasião, onde haveria a exibição dos fogos todos.
Mãos ao céu em agradecimento: encontraram o hotel. Era baixo para o padrão de outros prédios por ali. Tinha quatro andares. A partir disso, expectativa em alta pelo momento que as levava lá, a virada de ano. Realizaram o check-in no automático, mal sabendo que não haveria check-out. Nenhuma desconfiança disso. Malas pesadas escada acima, cama de casal em posicionamento estranho. Nenhum móvel de cabeceira para colocar óculos, carteira ou outros pequenos itens que são bons manter próximos sempre. Chuveiro meio ruim de regular a temperatura, mas podiam tomar na temperatura fria dele desligado, bastando un poquito de coragem.
E coragem pensava ela nos argentinos que vinham de longe por praias mais belas, é bem verdade, mas por águas mais quentes para banho de mar e protegidos com suas fitas amarradas contra os olhos gordos que sabe-se lá de onde vinham. E alguma coisa pesou naquela noite, para além da gordura descabida dos olhares de cobiça.
Após a dificuldade do apronto em chegar ao hotel, dos pormenores dentro do quarto na arrumação, descarrego de malas, banhos frios e trocas de roupas, puderam se dirigir, depois de deixar a chave do quarto na portaria pela última vez, rumo ao réveillon, palavra francesa que ela demorara a assimilar como escrevia. E roía as unhas quando não sabia.
Mas agora roía as unhas por não sabe quanto tempo demoraria até chegarem ao evento da virada de ano. O trânsito da ida, após as pessoas se acomodarem em suas pousadas e hotéis, transformou-se no trânsito da volta. Enquanto elas chegavam na lentidão pelos trechos das avenidas, a pista oposta estava vazia. Agora que voltavam em direção à ponte, na vagarosa e controlada marcha, a pista anterior delas é que se esvaziava. Senhor deboche comum a tantos motoristas escravos do ritmo.
Desafivelar os cintos, cadeira de praia sob o braço, chimarrão na outra mão e bolsa a tira colo. Cataram um lugar estreito, a cotoveladas, em busca de posicionarem as cadeiras onde os joelhos roçariam e a mateira será que teria espaço para ser estacionada? Missão das brabas, gente por todos os lados. Desodorantes vencidos ou não renovados na correrias. Gente, gente suada, altos, baixos, gordas, magras, folgados de se darem ao luxo de sentarem em cadeiras de praia com abertura de pernas em ângulo obtuso entre elas: mas a malvada da audácia! Crianças, crianças às quais ela estava tão acostumada e não mais suportava e se corriam e se mexiam e se empurravam e brincavam de pique e pique-esconde, entre pernas de adultos e uma ou outra árvore naquele terrenão inacabável. E cabia mais ninguém, mas continuavam a chegar.
E não aguentava ela mais aquele ruído, massaroca de vozes, vozerio quase físico no contato, que a cutucava, espremia, comprimia e oprimia e desejou enfim que todos e o ano que viesse fossem ao inferno. Uma visita que fosse, para satisfazê-la em total aperto, que nem sentia o chimarrão nas papilas, nem a companhia ao lado, contida da mesma forma, mas aparentemente mais à vontade. Porque ninguém ali pareceu estar menos à vontade do que ela. E ela ardeu em chamas, abriu a caixa de ferramentas nos mais pesados insultos internos, não descarregados pela boca mas todos, dos mais diversos, de prontidão à mente, embalados para a saída, mas segurados por um móvel atravessado que bloqueava a porta, uma costura na boca. Além do mais, muitos seres humanos conseguem disfarçar melhor e também poderiam estar mal com tanta gente em volta.
E ela continuou a correr os olhos para onde fosse, milhares e milhares de pessoas vestidas de branco. Ela detestava aquela combinação dantesca que a lembrava o que de pior havia sob a face da terra, em reuniões das klu klux klan. E observando esse mar de gente próxima ao mar de verdade, com o aproximar da meia-noite e mal tinha trocado palavras com a companheira, que bebericava o chimarrão, roncava a cuia, servia de volta, entregava a ela, que terminava e seguiam nesse ciclo durante os passageiros minutos. No mar de gente, aquele mar branco, enjoativo como um mingau, no bolor de sotaques castelhanos, paulistas, gaudérios, locais e amaldiçoou que aquilo acabasse, que pudesse sair dali o quanto antes, embora nem que quisesse conseguiria se deslocar decentemente em meio à multidão.
Então, instantes antes do foguetório, sentiu o chão começar a ceder. E pareceu-lhe ser a primeira a notar, mas logo o vozerio perceptivo crescente e preocupante, apimentado da histeria. O chão da ilha estava cedendo. Não, não seria possível, mas então o quê, terremoto? Não, não, começou a ver a ponte ficar levemente mais alta, ela tão artística, tão observadora, era real. A ilha começou a ceder, mas ceder o que, minha Deusa, teu Deus, como era possível? Como uma balsa gigante, ancorada e desgovernada rumo ao fundo, as pessoas se apalermaram e não conseguiam conter-se, os das pontas tentando fugir, mas correr para onde se quanto mais se adentraria a ilha, mais longe ficariam da saída? E ao mesmo tempo as pontes bloqueadas, as pessoas longe de seus carros, em estacionamentos, ou vieram de táxi, ou de transportes via aplicativo, ou mesmo caravana de ônibus. O apinhado de gente cedendo junto com a terra, como areia movediça gigantesca, a natureza repondo o que era seu por direito, sem aguentar mais tanta e tanta gente em sua superfície. Um exame criterioso de pele, de epiderme e xô e xô e saiam daqui.
Os foguetórios começaram a meia-noite e deram o toque tragicômico, o gran finale ao espetáculo, enquanto muitos pulavam na água e tentavam nadar contra as correntezas, imaginavam que era uma saída, para quem estava na terra que era segurança, a água parecia calma, mas era violenta, muitos se afogavam, outros perceberam como a água avançava às multidões e foi um caos total. Ela assistia àquilo atônita, perplexa que seu sonhar e seus maldizeres ou ao menos mal-pensares é que causaram a tremenda confusão, a catástrofe impressionante, a tragédia de maior proporção, a cidade praticamente sugada ao oceano, em carros, prédios históricos e novos e os que seriam construídos em anúncios luminosos de outdoors e na internet e em grandes estratosféricos condomínios. Nada mais disso existiria e tampouco elas. Sua companheira tentou puxá-la pelo braço, mas para onde? Voltava a se perguntar ou nem isso fazia, estupefata, entorpecida pela visão do que era inexistente à realidade.
E a cidade a sugou, como engoliu milhares naquela noite. Poucos escaparam, velozes mais do que furiosos pela ponte, com os fogos de artifício ao fundo, em clímax de orgulhar Hollywood e seus fãs. E uns poucos por embarcações próximas, em uma tamanha sorte ou competência de ali pular, ali contar e ali pilotar barcos, em verdadeiros cardumes de refugiados. Tudo isso virou história e aos olhares do mundo só não virou lenda pelos raros registros de sobreviventes via tecnologia, nas imagens do famoso termo "cinegrafista amador" nos telejornais e pela rede mundial. Aquele foi o último dia do último ano da ilha, a ilha que atlanticou e não viu a década seguinte. Foi a primeira das muitas consumidas por esse processo da natureza reparar o desenfreio da humanidade.
01/01/2020
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