Deixava para as últimas horas para resolver o que iria fazer. Ninguém mudava esse seu jeito. Nem os pais, nem os amigos, nem as com quem conviveu, nem a com quem viveu. A noite do 31 de dezembro estava mais fria do que supõe o verão em andamento. Dentro dele também. Não combinou maiores eventos, com a família já longe e facilmente desistindo da insistência nas ligações para ele dar um pulo até lá, que dariam jeito nas passagens e que podia aproveitar esse recesso. Nada disso.
Conferiu os cigarros no bolso da jaqueta mais fina que vestiu por cima e saiu para as ruas. Não gostava desde jovem daquele ambiente de virada de ano pelas ruas que ele tanto apreciava. Eram muitos motoristas imprudentes e maníacos aproveitando a data para suas pirotecnias desvairadas. Mas, a pé, em uma falsa sensação de segurança que resolveu experimentar, sentia-se bem. Caminhadas solitárias apeteciam seu espírito e não ligou para ser um momento em que a maioria passaria em família do jeito que se esforçavam por estreitar relações e ignorar as inúmeras diferenças em cada casa. Ao invés de branco, também vestia preto com a jaqueta jeans por cima. Quando deu-se por conta disso, abriu um de seus raros sorrisos naquela noite.
Observava que a cidade tinha prédios amarelos demais. Notou que havia lixo de menos. Os grandes produtores disso em larga escala haviam se deslocado ao litoral, obviamente. Educação e consciência ambiental é que não seriam a bola da vez por ali. Na maioria das quadras pelas quais caminhou sentiu falta daquela bola de feno ou seja lá o que fosse que rodava pelos faroestes dos desenhos animados e nos filmes de bang bang. Seus pais gostavam muito de bang bang e desatinando, desenrolando o novelo de lã dos pensamentos lembrou-se deles distantes. Foi o mais perto de vibrar trêmulo o lábio e segurar lágrimas naquela noite.
Passou pelas casas e apartamentos de uma ou outra e lembrou da canção el viejo, dos uruguaios da la vela puerca, a banda amiga que aguantaba el corazón, que de fato estava com ele, tenha ou não razão. Pensou nas que foram da cidade e nas que ainda estavam, mas já não estavam e não conseguiu decidir qual situação era mais triste.
Pensou nos churrascos e reuniões que ele não tinha saco para. O próprio gosto musical excêntrico e pouco acompanhado e o tédio que lhe consumia a alma pautavam a desistência e a resistência a tais convites, às vezes cedendo, em um sentimento de obrigação, como quem leva o lixo para a calçada com o intuito do recolhimento e da renovação dos cestos, nas segundas, quartas ou sextas. Além dessas tarefas ainda socializava o multitarefas em questão.
As pessoas não estavam naquela zona antiquada e decrépita da cidade, mas isso não impediu que ele formulasse como elas se apossavam das ruas cada vez menos. As ruas que ele tanto gostava. Os paralelepípedos tão velhos no calçar das travessias que faziam ele exercitar os conhecimentos, ou a falta deles, em História para imaginar se aqueles tinham resistido às patas galopantes das cavalarias ou já seriam dos bondes em diante, renovados ou apenas assentados quando pareciam muito deslocados. E pensou que ele talvez fosse uma daquelas pedras que havia saído do lugar e substituída. Questionou se aquilo era natural e comum e quantos poderiam se sentir assim.
Sabia que aquela época do ano era complicada para muita gente, mas ele estava anestesiado. Gostava muito do termo anestesia. E pensou que poderia estar fantasiado como um tresloucado e ninguém daria bola na solidão daquelas ruas, as ruas que ele tanto gozava. E fez trocadilhos e brincou com essas informações todas. Os trocadilhos que ele tanto criava.
Cruzou pelos poucos posseiros daquelas calçadas, esticados em suas cadeiras de praia, pés para fora dos sapatos, celulares em mãos, desatenção constante ao que acontecia em volta e foco no que as redes sociais ou qualquer outra diversão online ofereciam. Estavam a milhas e milhas daquilo tudo, querendo ou não. Saudosos de banhos de mar nos litorais, ou de pessoas que para lá foram ou apenas passatempo melhor do que conversar com aquela tia ou com mesmo com os familiares mais próximos que já haviam esgotado os assuntos durante o café da tarde e a janta era exigência extenuante àquele frágil conector.
Cumprimentou àquelas pessoas que retribuíram um olhar certeiro. Lembrou-se de sua crescente miopia, ou seria astigmatismo? Não entendi muito dessas coisas e faltavam-lhe experiências anteriores para confirmar a resposta. Enfim, turvava-se em visão reconhecer rostos ou mesmo reconhecer o que aqueles rostos representavam, se amistosos, notando-lhe amigavelmente ou nada disso. Saía com a impressão de saudar menos pessoas do que poderia e tentava se livrar desse pensamento, entre tantos outros, por no fundo não ligar para essas opiniões passageiras como sacolas plásticas ao vento. Ou no fundo é que ligaria? Diabos, era como naquele jogo que viu em alguns filmes, que os jogadores de beisebol eram tarados. Agarravam o taco do jogo e quem ficasse com a mão no topo vencia. Era um Pernalonga versus Patolino se ligava para aquilo ou nem. Se ligava para o que ligassem, se é que ligavam.
Pensou na distância da sacola plástica que migrava ao sabor dos ventos daquela noite fria. Friorenta para o padrão da estação. E era pouco lixo que circundava aquela região semi-portuária. "Apenas eu à deriva", e sacou o penúltimo sorriso. Ou antepenúltimo, porque a cena das ruas limpas, as ruas que ele tanto gostava, lhe enchiam o tórax em sentimento positivo. Irrigava as ideias com a ilusão de um menor consumo na sociedade e de uma maior consciência ambiental. Depois prontamente ocultou o sorriso, posicionou uma cancela de trem, alterando os cantos da boca para a mesma tradicional expressão séria, porque lembrava que aqueles moradores filhos da puta apenas estavam no litoral. Sujariam o mar, o que é o tanto quanto pior. Gostava das tartarugas, se sentimentalizava com elas rumando vagarosas nas areias. E os peixes tão toscos, sempre fisgados e o maldito ministro que falou que eles desviavam do óleo nos oceanos. O animal da vez era o jumento, sem dúvida. Devia ser o ano novo do horóscopo dos chineses, o ano dos jumentos, dos jegues, se é que chineses sabiam bem que animais eram aqueles. Desejou que não soubesse. Ao menos nem conhecessem mediante as relações diplomáticas entre os países de economias emergentes. Ao menos a da China era, a do Brasil vá saber que bicho ia dar com tantos jumentos.
Naquelas cenas de poucos resíduos pelos meios fios e cantos e esquinas e embaixo das luzes dos vacilantes postes da região semi-portuária, viu alguns catadores. Aqueles sim se multiplicavam ao longo do ano. Ou já seria um biênio? Tri, se contar após a meia-noite, que se aproximava. O tempo passa. A vida era difícil. Não descartava acabar assim. Ou acabar recolhido por algum caminhão ou catador de carrinho, lixo que poeticamente se sentiu. Não pensava que era um lixo, mas pensou que estava na moda entre os jovens se imaginarem assim, em sacos plásticos impermeáveis, à espera do serviço público urbano para os homens de uniformes fluorescentes para não serem atropelados ou esquecidos pelo camioneiro responsável por dirigir aquele trambolho. Ele já nem tão jovem. Nem tão apto fisicamente para apostar corrida com aqueles heróis do dia a dia que não usavam capas, mas alaranjados trajes.
Quando achou que nada mais tinha para ver e que voltaria pela casa igual e sem renovações para o ano que vinha, apareceu um velho amigo. O Seu Flávio.
Flávio era também um catador de recicláveis, mas muito além disso, tinha grande coração e sabedoria e experiências e conhecimentos ao todo. Estava longe por quase duas quadras, mas sua visão ficou bastante nítida, como em um milagre ainda natalino, como se voltasse ao tempo que enxergava sem qualquer necessidade de lentes, mas além disso a esperança e o otimismo a olho nu. Flávio, apesar daquele serviço desgastante em que inclusive deveria estar se dedicando até aquele fechamento, estava em postura bastante ereta da coluna e demonstrava vigor físico. Devia ter uns 50 anos.
Aquilo o reanimou. O brilho de cds velhos ou plásticos ou alumínios refletiu pela esquina antes de Flávio dobrar, provavelmente rumo à sua casa, no fim daquele nostálgico e pesaroso bairro. A luz formulada por aqueles materiais irradiou-o, chocou-o em cheio, atingiu-o certeiro. Foi como um feroz sorriso. Ou, ao contrário de feroz, era como o mais amigável convite para continuar. Pensou em visitar Flávio outro dia, o quanto antes naquele ano que se iniciava com a meia-noite. Mudou rapidamente de ideia e correu as quadras que faltavam. Correu como não havia corrido naquela noite. Correu como planejava ser necessário apenas se viessem para assaltá-lo sob aquele luar tímido entre as nuvens, o que não ocorreu. Correu jovem e esperançoso e otimista e cheio de si para passar mensagens positivas ao velho lobo do mar Flávio sabe-se-lá o sobrenome.
Ao chegar na derradeira esquina, não mais o viu. Fuçou olhares, não fixou, ficou como um átomo gasoso em desespero, no seu processo de ionização não achou Flávio. Onde se escondera? Teve vontade de gritar, mas achou que estava imaginando coisas. As alucinações auditivas viraram visuais. Nem enxerga mais tão bem para ver Flávio e seu saco de trabalho tão nítidos a tamanha distância. Delírios. Mas gostou e mentalizou aquilo como um sonho acordado dos mais belos, apesar da contestável aparência do velho herói. Não ligava para isso. O coração dele fazia valer. Decidiu que o procuraria no próximo ano e cumpriria promessas. Eram absolutamente necessárias.
Como um cão de rua, refez seus passos em direção à proteção contra os fogos de artifício. O mais luminoso e duradouro estava de novo com ele.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
-
O filme norueguês "Doente de mim mesma" (2022, direção de Kristoffer Borgli) é comparável ao de maior sucesso recente, A Substânci...
-
Todas as linhas estão Escrevendo saudades em vão Tô cansado de esperar Que você recarregue Cansado de esperar Você Meu car Reggae
-
Sou um poço de ironia O horizonte é um monte Um monte de geografia O horizonte que aponte Um monte de biologia Apesar daquela tátic...
-
Te procurei em todos nasceres do sol Você fugiu em todos nasceres do sol Talvez você nem desconfie Se não um sol ao menos meu farol Senti ...
-
Mediante as mudanças em políticas de inclusão na Europa e nos Estados Unidos durante os anos 1990, o autor jamaicano Stuart Hall propõe ques...
-
Acompanhando uma coletânea com todos os filmes do diretor iraniano 🇮🇷 Abbas Kiarostami, as conclusões referentes aqui se devem até o 7⁰ fi...
-
Segundo rápida pesquisa, equinócio é o termo que marca as entradas das estações de primavera e outono, quando os raios solares sobre os hemi...
-
Preguiça de começar o texto. Quem nunca? Quem sempre? Quem de vez em quando? Sim, sim, de vez em quando. Vida dividida em blocos. Hora da re...
-
O filme japonês 🇯🇵, dirigido por Yusuke Kitaguchi, conta a história de duas garotas (ou serão três?) com dificuldades semelhantes e difere...
-
Por mais que eu me distraia, alguma hora tenho o inevitável encontro comigo mesmo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário