Fortaleza. Virada da década, ao menos em movimentos culturais, porque cronologicamente os historiadores apontam as viradas para o ano 1 de cada década ou século, já que não se iniciou a contagem em ano 0. O hotel era consideravelmente luxuoso e a poucas quadras da orla, de onde o espetáculo, para Debord nenhum colocar defeito, seria de muitos fogos de artifício, este ano com redução no som, em consciência coletiva. Bom indicativo.
Mas o próprio hotel, através de sua área, de seu pátio, até da beirada de uma piscina, exibiria seu próprio evento chique. A música embalaria a trilha sonora do especial momento. Pessoas vestidas de branco, muitas delas, o que ela nunca gostou, mas aceitava e poderia bebericar alguma bebida doce que satisfizesse o paladar e o desejo alcoólico ao mesmo tempo. Além do mais, contava com parte da família e nem sempre era fácil reuni-los. Em uma praia, nos moldes atrativos ao paradisíaco, então, nada mal. Nada mal.
No alto de seus 20 e poucos anos e uma faculdade concluída, seu gosto musical era eclético. Variava dos populares brasileiros da mpb mais erudita ao que se ouvia aos pés e cristas de morros, das favelas elevadas geograficamente no Rio de Janeiro às mais planas de São Paulo e outras capitais. Gostava de desfrutar esse choque cultural, absorver o máximo possível de sotaques e até olhar aos lados em busca de alguém. Sem muita esperança de pesadas buscas, mas desde que a satisfaça no contar de alguns causos passados, delírios presentes e planos futuros, tudo em pequenas doses. Bebe, apenas beberica, na verdade, vai ficar tudo bem. Brindar taças e trocar o número de telefone para envios de algumas mensagens, ainda bem que a internet substitui os sms e torpedos, mas mesmo com esse elemento facilitador não vai entrar em contato contigo mais do que quatro vezes no próximo ano, vai fingir saudades, vai sentir saudades reais, mas nada demais, depois passa e encontrarem-se, salvo alinhamento coincidente dos astros, ano que vem talvez, tal qual uma canção dos paulistas do CPM 22.
Mas nem esse alguém estava lá. E além dele não estar, cavaleiro andante, prometido, príncipe do cavalo, sapo transformado, barba aparada vestido de branco, havia mais coisas erradas em seus sonhos. Quando já achava a festa lotada demais, mas seus pensamentos e a ansiedade futura do ano porvir a fechavam em um engavetamento, havia outros a se desenharem. Procurou despertando do sonho acordado e só encontrou o irmão muito distante. Paladino mais velho, que muitas vezes, antes de se mudar de cidade, por idade, por emprego, mostrava a ela o caminho, agora tentava irromper as pesadas portas cruelmente cerradas. Os consumidores da festa haviam sido trancafiados, sem saídas de segurança, pois os organizadores, com o aval dos donos do hotel, como soube-se depois, só permitiriam a retirada das pessoas pós duas horas, quando já houvessem agastado o considerado suficiente por suas estadias. Tamanho absurdo que nem os hospedados estavam autorizados a ir, que fossem, buscar uma bolsa, algo esquecido em seus quartos prédio acima. Ultrajante.
A revolta se sobressaiu ao clima natalino, cada vez mais naftalino em cheiro e este transformando-se mesmo em pólvora. Multidão em polvorosa que tentava convencer os estaqueados seguranças. Começava em com licença, veja bem e avançava para galopes de uma cavalaria sedenta de romper com as regras pastelonas se não viessem a se tornar trágicas. Com o diz que diz sobre a situação e as pessoas querendo explorar outros banheiros, além das limitadas estruturas da lotada festa, com os convivas sequiosos por tomar um ar fresco rua adiante, mas nada tirava os brutamontes das entradas cadeadas.
Empurra-empurra, portas de vidro, a liberdade logo além, o dj ignorado, uma versão do Dennis ou de algum outro desses, ou seria o injustiçado Rennan da Penha, enfim, qual era a senha para sair dali, para ao menos os primeiros chegados, os apoquentados à beira das portas, estes poderem sair e liberar as passagens, mas eu paguei, faça o favor, maldito, desgraçado, tu vais me agredir, você não sabe com quem está se metendo, meu tio é advogado, sou filho do vereador da cidade a 130 km daqui e
Finalmente o primeiro spray de pimenta quando, antes das portas de vidro em centenas ou talvez milhares de cacos, rasgou-se em pedaços a paciência dos seguranças, que partiram para, após a obediência insensata ao pé da letra das severas ordens, uma violência de cunho fascista. Abuso de autoridade. Abusos dos mais diversos.
Ela viu o irmão sangrar e quando deu por si também sangrava pois arrebentou-se o portão envidraçado como a um dique de uma barragem, mas ao invés da água, a água que até aliviaria os sintomas do gás de pimenta, o que veio foi uma saraivada de vidro, espalhando-se como os resquícios de balas de borracha. Ela sentiu a dor, o ano novo, a vida nova que mal vinha e travestia-se assim esfarrapada em frangalhos. A busca dos atalhos pela manada que atropelava os semelhantes. Todo mundo praticamente vestido de branco, lembrava-se ela depois que até exigência era para acessar o que antes parecia um longo e largo pátio para eventos. E agora aquela gente toda ali, no efeito das bebidas, na neurose crescente, na paranoia coletiva. Alguns mais ou menos sensatos, se é que sensatez era substantivo em questão, celulares em riste, foto aqui e gravação ali enquanto o cartão de memória permitia de haver provas para o tribunal nem tão próximo futuro quanto a meia-noite que bateria ignota nos relógios de pulso e nos telemóveis. Mas haveria de acontecer, certamente que haveria, pois, não lembra? O tio daquele era advogado e, mesmo assim, advogados já estavam por ali e mesmo aquela estudante de direito e aquele calouro.
E aquele calor todo, humano, irracional, dantesco, aos diabos, o inferno em portas abertas para onde tudo aquilo iria dar? Os libertos olhando de fora do tumulto o saldo, famílias separadas, seguranças e convivas feridos, com a certeza de que com a vinda da polícia alguns detidos, bodes expiatórios, laranjas, como estava em moda naquele período. Ela com o ferimento nas costas, o irmão com a dúvida de mexer todos os dedos, a mão que sangrava, o desespero. As sirenes, policiais ou ambulatórios que abriam caminho e prioridade a mulheres, crianças não haviam pela classificação indicativa, mas idosos alguns e que passaram mal, o coração, o ciático, o pandemônio. Foi horrível, foi. Foi intenso, sim.
Repercussão direta, entradas ao vivo pela madrugada nos telejornais. Os impressos lamentando não haver edição no feriado para mostrar as mais diversas chagas de uma sociedade desmedida em regramentos e consequências. A poucos metros dali, os fogos de artifício seguiram a programação pré-estabelecida. Os organizadores da queima maior tampouco sabiam do que se passava. Aquela ficou conhecida como a noite em que as roupas brancas tingiram-se do mais vermelho dos sangues. A poucos metros dali, as ondas seguiram seu curso natural, mas ninguém do hotel pulou sete delas.
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