Tenho morado sozinho com minha mãe nos últimos anos. Você vai pensar que meu pai nos deixou, mas ele apenas morreu mesmo, que é alguma previsão possível fazer pelo lado da família dele. A expectativa de vida deles quando encontra a chamada terceira idade é de ir preparando os registros funerários. Pesado, mas é o que acontece. Faz alguns desses anos que eu fumo, então aceitamos cigarros em troca de histórias em bancos de praça. Queria ter vivido mais eventos como Forrest Gump, mas acho que o barato dele era correr rápido. Eu até que conseguia isso, correr rápido, mas conforme fui me tornando adulto as glândulas do suor disparavam e ninguém conseguia deter esses esguichos que irrigariam um gramado de futebol, tá me entendendo? Obrigado pelo fogo. Isso.
Meu avô também corria bem, conta ele, agora virando os 90 anos. O pai de minha mãe. Quando eu ainda o visitava, ele seguidamente contava sobre suas aventuras no exército, em provas de 100 ou 200 metros. Tirou medalha de prata em provas do município e arredores, servindo pelo 9º Batalhão, nome que ainda conservam na sede, basta passar na frente. Sim, naquela avenida que é a principal do bairro, tá me entendendo? Apesar de eu não ser fumante há muito tempo, já não lembro a última vez que traguei com vontade, sentir os pulmões fazendo o que estão prontos para fazer. A gente os maltrata, mas eles dão resultado. São como os oceanos ou os animais criados em matadouros.
Cara, assisti a um documentário que me deixou mal de um jeito, não aguentei 20 minutos. Eu nunca havia desistido assistindo a essas merdas, mas esse me derrubou. Sobre o que era? Ah, sim, era o documentário Terráqueos, com narração do Joaquin Phoenix, o mesmo cara que mora com a mãe fazendo o papel do adulto fracassado no filme Coringa. Este filme Terráqueos é sobre a relação dos humanos com os animais, daí você pensar na espécie que quiser. Eu não recomendo verem, não recomendo, eu não aguentei. As espécies, a natureza, elas estão fritas na nossa mão. A maior parte literalmente. Aquela história de comer morcego tem a ver com o vírus? Não lembro o que eles alegaram, mas nunca duvido. Uma conspiração de vez em quando faz bem, exercita o cérebro de um jeito... Aquele álbum do Offspring sobre Conspiração de Um, acho genial a ideia, me sinto conspirando sozinho muitas vezes. Vasculhei em sites na falta do que fazer e quase acabei levando a camiseta.
Estou gastando seu cigarro e contando nada? Vai precisar me fiar outro para sair algo, agora te prometo. Me dá esse mais amassado, viu como sou camarada? Não vai ficar com a última bolacha do pacote. Essa metáfora da última bolacha toda perfeita é Disney total, tá ligado? A última gruda na embalagem, fica toda detonada da pressão depois de carregar e descarregar o pacote sucessivas vezes, quando eu não esquecia da mochila. Sinto que quando eu como açúcar é que fico assim, divagando diversos assuntos, acendendo luzes na minha cabeça como uma imensa mesa de pinball.
Eu moro com a minha mãe desde a morte de papai. Era um bom homem, sobretudo para os outros, havia nada o que se falar dele por aí. Por muitos anos ele cuidou dos gatos de rua aqui do bairro, bem no final da nossa quebrada. Havia uma casa abandonada, uns terrenos baldios e uma grande antena de telefonia celular. Devia ter uns 30 metros de altura, mais ou menos como um monge em estátua que apareceu esses dias na televisão nesses canais culturais. O monge era bem exagerado, parecia querer se impor à força da escultura, no encaixe das pedras. Se um dia resolve deitar montanha abaixo, só para variar a posição caso dê uma cãibra, soterra centenas de fiéis em segundos. Todos os dias deve ter milhares de pessoas querendo conhecer o monge grandalhão no alto de uma escadaria lá por aqueles lados.
Mas os gatos, os pestinhas comiam tudo que sobrava de nossos almoços e jantas. Antigamente tínhamos rurais criações de galinha. Isso para fora e o galinheiro se saciava de todos os nossos restos, deixando nada para as pombas ou ratos; galinha é um animal devorador para valer. Come até pedra. Quando viemos mais para cidade, no beco dessa quebrada, os gatos foram os responsáveis por eliminar aquele restolho de comida da nossa consciência. Horrível sobrar qualquer coisa quando tanta gente passa fome, tá ligado? É por isso que a gente deve ser camarada e compartilhar cigarros, histórias, o que conseguir trazer conosco nesses tempos loucos.
Meu pai saía à noite para alimentar os gatos. Desde a morte do meu irmão, que eu tinha um irmão um pouco mais velho, ele passou a olhar diferente para mim, de modo que quase elimina toda a tirania dele nos anos anteriores comigo. Eu odiava cigarros quando mais novo, porque meu pai muitas vezes me queimou com eles, quando não me batia com o chinelo. Foram tempos de demissões em massa pelo país, mais ou menos como está ocorrendo agora, mas por outras causas, evidentemente. Mas a causa sempre é a mesma, meu, a ganância e o dinheiro. O dinheiro que traz a ganância, a ganância pelo dinheiro, tá me entendendo?
Tá me oferecendo mais um? Acha que mereço? Deve ter concordado com essa última frase, o que me alegra, percebe meu primeiro sorriso desde que nos vimos? Esse é original, é verdadeiro. Antes quis apenas parecer cortês, honesto, atrair sua atenção, mas agora já pode confiar em mim. A gente aprende a disfarçar bem sorrisos forçados tentando descolar alguma coisa nas ruas. Mas os músculos faciais se movimentam diferente dependendo da nossa intenção, da veracidade do fato. E, mais para perto dos olhos, pode ver a diferenciação nas rugas também. Meu irmão mais velho teve formação em biologia, fez um financiamento. Estava terminando de pagar quando o assassinaram por besteira na saída de uma festa. Um mal entendido. Ele nem era de se meter com mulher de outro, soube disso só uma vez. É, ele cursou biologia e não exercia. E aquele maldito financiamento. Mas não, isso do sorriso não aprendi com ele. Embora ele me deu muitos motivos para sorrir nessa vida.
Agora está tão duro viver aqui fora. Esfria e qualquer fogo ajuda, não? Não, não estou pedindo mais, apenas um comentário. Outono-inverno, tá ligado? Em seguida me recolho pra casa, tem o suficiente para jantar e minha mãe me espera. Me espera todas as noites. Está difícil ganhar a vida. Expressão idiota essa de ganhar a vida se só tenho perdido. Meu irmão naquela besteira naquela noite, foi em um sábado, nunca vou esquecer. Acho que peguei pavor de telefone depois daquela madrugada de incertezas, se era ele ou não, se estava vivo ou morto, até confirmarem tudo. Meu pai tinha ido até lá e ele mesmo nos confirmou, minha mãe chorando ao telefone da sala, porque desde a incerteza se era ele ou não, se vivo ou morto, minha mãe não conseguia dormir. Mas os documentos, o RG, a carteira de motorista, estava tudo lá, obviamente era ele, a gente só custa a entender mesmo.
Bom, meu ônibus deve pintar daqui cinco minutos, vou me encaminhando pra parada certa. Você me ouviu bem, às vezes a gente só quer alguém pra ser ouvido e você me ouviu muito bem. Quem deveria estar oferecendo cigarros era eu, mas você vai me oferecer o último e eu vou aceitar, parecendo aquelas crianças que acabam com as balinhas de brinde e a secretária sorri constrangida os pais não ensinarem limites. Meus pais deveriam ter me ensinado mais sobre limites: de como a vida é dura e o que eles construíram ficou para geração passada, a geração deles próprios e agora é minha vez de me acotovelar na concorrência hostil por algo, ônibus lotados, dias que começam cedo e terminam muito tarde. Há quem prefira o metrô nas cidades grandes, mas aqui não tem essa opção, nunca vai ter, e tudo nas capitais parece muito longe. Não saio para as capitais porque aqui ainda temos o imóvel que meu pai construiu e a minha mãe sempre me espera.
E os gatos me esperam, porque, apesar de um ter sido pego por um daqueles cachorros, um rottweiler, há meia dúzia ainda me esperando. Os laranjinhas hoje são meus favoritos, mas os tigrados me lembram a infância, depende como estou nostálgico. Hoje você me ouvir assim me deixou nostálgico, de modo que aceito, sim, o seu último cigarro. Dois minutos para meu ônibus, preciso ir. E ajeitar a marmita dos gatos lá em casa. Antes de irmos, já ouviu aquela música Dani? Dani foi escrita pelo Jimi Joe, mas eu gosto mesmo é do Wander Wildner. É uma das minhas favoritas. Que William Burroughs te abençoe, meu velho.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
-
Filme chinês dirigido por Zhang Yimou. O título em inglês ficaria To Live. Em português, Tempo de Viver. É uma obra complexa em suas 2 horas...
-
Um filme bem ao estilo do finlandês Aki Kaurismaki, cineasta de diversos lançamentos, do drama e da comédia. Neste filme de 1990, a personag...
-
Sigo rendido ao cinema de Portugal. Um pouco surpreso, um pouco não, porque um país com tantos conflitos, contradições históricas e sanguíne...
-
Em setembro de 1980, uma equipe de filmagem aluga um palácio para gravações, internas e externas, em paisagem do interior da Índia. Em volta...
-
O avô de seu bisavô era escravo. Ou era senhor proprietário de escravos. Um escravocrata. Ou era agressor. Bêbado. Marinheiro ou portuário. ...
-
Segundo rápida pesquisa, equinócio é o termo que marca as entradas das estações de primavera e outono, quando os raios solares sobre os hemi...
-
Pelas ruas de Havana Eu me vou desde pequeno Ou me disse uma cigana Ou foi um outro moreno Se não fosse Havana Preferia fosse a morte A San...
-
Um filme contemporâneo de Chile 🇨🇱. Direção de Bernardo Quesney. Uma atriz de televisão tenta voltar à ativa com uma peça ousada sobre a c...
-
As ruas no inverno enrugadas E as folhas desfraldadas Pelas calçadas E os esgotos na cidade ninguém conserta E pelas ruas um carro não dá...
-
Acompanhando uma coletânea com todos os filmes do diretor iraniano 🇮🇷 Abbas Kiarostami, as conclusões referentes aqui se devem até o 7⁰ fi...
Nenhum comentário:
Postar um comentário