"O vocalista do Green Day, Billie Joe Armstrong, utilizou uma imagem de Porto Alegre, do Túnel da Conceição, durante a sua participação no festival Together At Home, na noite deste sábado. A foto da entrada túnel esvaziado apareceu ao lado de outras imagens de cidades na mesma situação. Billie Joe cantava “Wake Me Up When September Ends”, um dos sucessos do Green Day.
Com diversos nomes famosos da música, o festival online é uma homenagem aos trabalhadores de saúde que atuam no combate à pandemia causada pelo novo coronavírus no mundo. Além da música, o evento também conta com a participação de profissionais de saúde, que intercalam falas entre as apresentações."
Fechadas as aspas para a notícia publicada no jornal gaúcho Correio do Povo, em 18 de abril de 2020. O túnel da Conceição invoca diversas lembranças e memórias em mim. É um ponto fácil de situar no confuso mapa de Porto Alegre. Para mim, interiorano, sempre difícil de identificar, mesmo depois do aprendizado das regiões e alguns bairros, muitas das melhores saídas e entradas, sobretudo no assunto trânsito. Pois tranquilamente localizo o agora mais famoso túnel em uma representação qualquer das aberturas de ruas e avenidas da capital rio-grandense.
O sentimento de familiaridade com o Túnel da Conceição aumentava a sua responsabilidade para comigo. Agora éramos conhecidos. Passar da Avenida da Legalidade, que insistem em branquear castelo, contornar a rodoviária municipal de Porto Alegre e logo engolir-se à escuridão das entranhas do Conceição. Aquela zona hostil margeada dos altos prédios, desacostume a quem vem do aberto pampa, do terreno plano monótono na cor que se estende até onde alcança o par responsável pela vista.
Todavia, o Conceição era um ponto de cores e até o californiano Billie Joe notou. Contrastante ou confirmante daquela atmosfera plenamente urbanizada? As cores que se desenham são as pichações e grafites por sobre a sua pintura original. Regiões hostilizadas por vermelho sangue, por branco sêmem, por redundante cinzenta cinza de cigarro, por escuros vultos que vagueiam no cair das noites. O amarelo cego dos faróis velozes, instantaneamente substituídos no vir e vir. Falta verde e sobram cores nas paredes. Conceição de mensagens legíveis ou não, entendíveis ou não, selvagens sim ou sim. Conceição da urgência, da emergência da ambulância que cada ambulante traz em si, em rituais silenciosos pela sonoridade ensurdecedora entre humanóides urbanos. Mas afinal, o que é punk rock? Um olhar do Billie Joe, um túnel da Conceição? O túnel é punk, o túnel é punk e espanca a visão; quando vazio, como nos preenche?
Carrego comigo, e na maior parte da família, apenas sobrenomes alemães. Um empréstimo polonês para a origem duvidosa dos Venzke, os estrebuchados poloneses apelidados de Venceslau a cruzar fronteiras no norte alemão. Fugindo à rasteira regra, o sobrenome de minha avó paterna era Conceição, mas meu pai e meus tios não possuem esse registro, levando com eles somente o sobrenome paterno, o alemão de meu avô. Obviamente que se fosse alterada a ordem para o sobrenome materno ter maior importância, a não ser que nós decidíssemos o ponto histórico dessa ruptura, toda a história poderia ser alterada em nomes e alcunhas e, por que não? apelidos. Não cabe a nós esse arrojado objetivo, mas pontuamos que os portugueses Conceição de alguma maneira estavam presentes nessa grande biosfera que é minha árvore genealógica.
Em tempos pandêmicos, como os ocorridos em 2020, a falta de notícias ou relevâncias, para além dos aspectos da saúde - ou falta dela -, tornaram grande acontecimento a aparição do Túnel da Conceição assim mundialmente, em evento dos mais mencionados do período. Uma vírgula de orgulho bairrista-gaúcho em meio ao período que pontuou o fim de tantas vidas. Pois bem, é que o Túnel da Conceição (esforçado orador em tossidelas para trocar de assunto - ou manter assunto), o Túnel da Conceição faz parte do cotidiano de milhares de portoalegrenses e metropolitanos que entram e saem da cidade diariamente. Mesmo aqueles mais desacostumados ao movimento pendular cotidiano, a recordação de fins de semana, idas e chegadas, sal e queimaduras no corpo ou a busca por pegar onda, enquanto Armandinho e outros somente imaginam como seria pegá-las no Guaíba.
Quem vem do interior, como é o meu caso, também rapidamente acostuma-se a essa paisagem, cartão postal de recepção, que parece, à sua forma e conservação, explicar que Porto Alegre, seguindo exemplos de outras capitais ameaçadoras, não é para amadores. Os olhos impressionáveis ficam a tentar captar familiaridades da última passagem nele, ao mesmo tempo que buscam novidades em termos paisagísticos, novas inscrições nessa arte criminal metropolitana. A disputa de espaço nas paredes. A disputa de espaço entre os veículos, o trânsito ligeiro que impede ao motorista a nossa mesma gama de impressões, ele focado ao trabalho, eu deixando o imaginário percorrer-me, perambulando pela horizontalidade de garganta do túnel e seus exteriores verticalizados em edifícios. Uma composição inesquecível e modificável, entre janelas abertas e fechadas, gradis que protegem os internos e se tornam ainda mais ameaçadores a nosotros visitantes; hominídeos rotativos entre gorros, cigarros, corcundas, bolsas, pressas direcionadas ou passos calmos sem direção, carrinhos de supermercado, produtos, cadernos, relatórios, rolex, celulares, pastilhas, drogas, isqueiros, moedas, anéis, unhas roídas, sujas ou manicurizadas.
Foi em uma das vezes em que eu saía de Porto Alegre, após passar um longo período de três dias. Era meu costume não turistar pela capital gaúcha por períodos maiores do que esse, me enchendo de nostalgia, me apertando a ânsia de retomar dias como aqueles, de aprendizado e experiências inéditas. Quando voltava da zona norte da cidade, quase na Alvorada, e vinha em transporte público pela Manoel Elias que desembocava na famosa avenida Protásio Alves, eu erroneamente imaginando que decorava seus pontos de ônibus, prédios e pequenas aberturas comerciais, quando meu olhar fugidio pela janela cansava de tudo que estava fora e queria focar em quem estava a meu lado. Ouví-la falar sobre o urbanismo porto-alegrense era música em formato milonga, eu felicitado pelo sotaque antes fronteiriço alegretense e agora cada vez mais capitaneado pela cidade marginal ao Guaíba. Aquele sotaque que me intrigava, mas me familiarizava por tanto escutá-lo por três dias; aquele sotaque que ainda posso evocar na mente, se me concentrar, de vez em quando. O urbanismo que ela me relatava complementava o curso de arquitetura que ela recém havia se graduado.
E eu, fiel perfil estrangeiro, cumprindo com minhas obrigações de hóspede em comportamento diante dos familiares, com minha mala preta pousada entre meus pés, com as pernas em síndrome inquietas, precisava agir para convencê-la de meus objetivos. Ainda pela Protásio Alves o primeiro investimento, o reclínio das cabeças, o movimento ritmado do pescoço e de músculos faciais. A dúvida até hoje de, pós-ressaca naquela matinê, como havia se comportado o meu incerto hálito?
Mas, para o final da linha, com os prédios a aumentarem andares e o nosso tempo acabando, com a aproximação do meu reconhecido Túnel da Conceição, solicitei a ela que repetíssemos o ato, somente pela recordação. Talvez eu pensasse mais no futuro, que aqui está presente agora, do que naquele proveitoso momento, hoje engendrado em cofre das memórias passadas.
Postados em pé na rodoviária, lado a lado, pela terceira vez ela me permitiu a união bucal, esta em tom de despedida. Sorriu para mim e retomou o caminho de casa, ela da zona sul à zona norte, na quase Alvorada, mas antes mesmo do populoso Rubem Berta. Enquanto isso, eu voltaria ao pampa monótono com o olhar novamente perdido pelas janelas de outro ônibus, esse de viagem, com meus fones de ouvido a embalar novas miragens.
Tudo isso na mesma salada somente pela fugaz passagem pelo Túnel da Conceição? Vocês podem estar perguntando ao final dessas romantizadas linhas. Acontece que ambos éramos muito fãs de Green Day. One more time, thank you, Billie Joe Armstrong.
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