Pele clara como a lua e no restante era soturna como a noite. Entretanto, era uma figura bem quista nos meios por onde andava, apesar de ser considerada estranha ou, no mínimo, peculiar. Ela era uma amiga fiel para os momentos mais difíceis, aqui repito depoimentos que me foram passados. Aconselhava em conversas demoradas de meia ou mais de hora. Assim era bastante requisitada quando a coisa apertava e se mostrava solícita em prontidão. Essa característica principal, tão repentinamente ressaltada, mostrava sua voraz vontade de ajudar o próximo. Não se limitava aos amigos, portanto até as noites de bares e os raros acompanhamentos que fazia em festas rave resultavam nisso. Ela percebia um mundo em que muita gente necessitava de cuidados ou o mínimo de quem as ouvisse.
Laís entrava na fase dos 20 e poucos, um tanto chocada pela passagem do tempo, mas "faz parte", como ela própria poderia frisar ao final de suas reflexões. Quando não encontrava saída ao labirinto de fauno, o "tanto faz" poderia ser invocado para o término de seus raciocínios, como quem se cansa da leitura e pousa delicadamente o livro com a fita vermelha a demarcar a página onde cessou-se a atividade de correr os olhos pelas linhas.
Ela tinha o hábito das tatuagens, mas sua grande paixão eram os piercings, personagens centrais de nosso enredo. Ela preferia a noite e preferia o frio, de modo que sempre imaginei sua cidade-natal como alguma regravação brasileira de Crepúsculo. A pouca luminosidade, as araucárias e outras árvores a povoar a região em seus exércitos abastados, todos de continência a seus postos. Os jovens com suas camionetes a cortar o asfalto nas noites, driblando fiscalizações em missões não como os contrabandos dos Estados Unidos no início do século passado, mas portando e consumindo bebida alcoólica no revezamento dos motoristas, designando a infração contra a lei. Sabiam que uma rápida observação com a lanterna para dentro do espaçoso carro resultaria em apreensões e problemas federais com os de uniforme azul e amarelo.
Mas "faz parte". Ela própria, em geral, respeitava as mais obtusas leis de nosso Estado. Difícil bancar a mãe dos outros, de idades semelhantes ou às vezes inclusive maiores, o tempo todo. O alerta por ela era dado, o registro era feito, mas a decisão, a escolha eram dos demais ocupantes. Os amigos e os amigos dos amigos. Out of control.
Era bem dedicada aos estudos, mas não sabia exatamente o que estudar. Tinha aptidão para diversas áreas, da saúde, com seus instintos protetores, ao direito-penal. Não era difícil imaginá-la em discurso bem ponderado, coerente e obstinado perante Vossa Excelência. Em fechamentos discursivos que não raramente dariam início a uma salva de palmas e uma unânime condenação, caso escolhesse esse lado, ou uma unânime absolvição, como no dia a dia lhe era mais frequente.
Possuía uma empatia muito grande pelos demais seres humanos e animais. Conhecida nossa personagem de olhos e cabelos negros e de preferências totalitárias noturnas em relação ao brilho do dias, chegamos aos pequenos personagens. As minúsculas esferas brilhantes, porém tímidas. Fieis aliados como um exército devidamente equipado da arma à qual ela precisava nas mais distintas situações. Os obedientes (ou desobedientes) piercings eram estruturas centrais para entendermos Laís.
Você deve estar pensando "ok, ela gostava de piercings, mas e daí?" mas a questão ia muito além disso. Ao ter os piercings com ela, espalhados por regiões visíveis cotidianamente ou não, ela adaptou a melhor desculpa possível para fugir de situações constrangedoras, ou cansativas, ou maçantes em geral. Sempre que algo se encaminhava para resultar nesse enredo pouco confortável, Laís de prontidão preparava sua melhor atuação - atriz desse porte semi-profissional que era - e após uma ou outra engolida em seco, disparava a frase: "perdi minha bolinha do piercing".
Tudo bem, o pessoal que entendia mais ou menos das complexas estruturas piercierianas, iniciava o mutirão pela recuperação do mais legítimo elo perdido. Após uma vasculhada pelo solo, em que todos se propunham na dura missão de visualizar o desafio à miopia e, ao mesmo tempo, tentando não pisar por cima do sumido dito cujo. Laís defensivamente sensata esperava alguns movimentos, uns cabisbaixos como se estivessem preparando-se para a mais fidedigna imitação de um avestruz, ou de pombo a catar os grãos jogados nas praças, e então a menina protagonista (ou eram os piercings?) abdicava da ideia e dizia ao público-geral, informando a suspensão das buscas: "acho que perdi antes, já volto".
Ela saía do recinto e recusava qualquer auxílio-extra. "Não, não, podem continuar aí, não quero atrasar vocês". E, coração bom que ali pulsava, não queria mesmo, somente a paz que tanto zelava e estava ameaçada segundos antes. Mais eis o singelo sabor da liberdade em poder tirar um tempo de tanta socialização, de tanto barulho e conversa alta. Tirava um tempo para contemplar a natureza, um de seus escapes favoritos, principalmente nas noites estreladas em que se deliciava a procurar - e a encontrar! - constelações. Ou ela ia a um banheiro e se fechava na cabine para refletir sobre a imensidão da expansiva vida, aquele universo que fugia ao seu perfeito alcance, mas não ao interesse.
Teórica, filosófica, exploradora da natureza. De fato que, como possuía os piercings em áreas de total desconhecimento do que a cercavam, ninguém duvidava de seu curioso método de retirada. As tropas saíam em debandada, ela e seu exército de orientandos piercings. Moça peculiar - no adjetivo dos mais elegantes - até esquisita - nas mais diretas palavras em tons veladamente ofensivos. Ela sabia que era impossível fugir desses comentários maldosos, mas as saídas dos ambientes tóxicos - palavra da moda para época - eram cruciais para a manutenção da sua saúde mental. Ela sabia disso e assim vivia.
Mesmo em excursões, viagens a locais novos: "perdi minha bolinha do piercing". E Laís sumia no horizonte para receptores estupefatos daquela repetitiva cena. "Ah, não, Laís, de novo" e ela mal ouvia, apressada, rumando para seus tramados esconderijos. Dizem que a primeira coisa que a pessoa tímida nota em um novo recinto é a porta pela qual ela pode escapar. Laís ia além e preparava verdadeiras táticas de guerra, estratégias ademais do conhecimento dos maiores generais. Justo ela, menina interiorana gaúcha, tão distante de ocupar um apropriado e nada exagerado cargo de Ministra da Defesa. Sim, capitã.
Ela fazia nenhuma evacuação como descer em um cano escorregadio com uma maquiagem militarmente camuflada, nada disso. Nem saltos de dublê pelas janelas dos prédios para se acocorar nas árvores. Os piercings faziam o trabalho duro por ela e depois era só meditação e autoconhecimento, orgulho para o ET Bilu e demais praticantes das teses elaboradas desde a Grécia de Sócrates, Xenofontes e Platão.
Não importava a ocasião, Laís imaginariamente riscava sobre a pele clara e sardenta das bochechas as pinturas guerrilheiras abaixo dos atentos olhos. Estreitava aquele par de amêndoas e botava em prática a frase mais vital para ela do que estourar uma granada em cerceamento inimigo: "gente, perdi a bolinha do piercing". Ela se acostumou a ouvir dos amigos e amigas mais próximos que precisava dar um jeito nisso. Comprar de outra marca, ser mais atenta, tirar logo essas porcarias, bradavam os já impacientes ou propositalmente implicantes contra a moça, que mergulhava vez a vez para um campo de suspeita. Afinal de contas, espiã de guerra de tantas e recorrentes missões acaba se tornando alvo das linhas adversárias. Não é sempre que o contexto de infiltração nas linhas inimigas saía com a mais perfeita distinção e discrição. Mas ela era boa, confiem na Laís.
Não raras vezes salvou bêbados em bares underground, mas prudentemente não esperava pelo avanço das tropas aliviadas em hálito vômito-fresco. Boa hora para perder a bolinha do piercing, com certeza. Outra vez eram os amigos dos amigos, eles achavam que "ah, mas agora vai, ela tão solitária, tão na dela, esse é um bom rapaz e nem bebeu demais", mas que nada. Laís ao banheiro, Laís para o corredor mais rápido, Laís para longe, procurar a bolinha de alguns dos revezados piercings na missão de proteger sua hospedeira.
Das amigas, que ela tanto ajudava nos anos anteriores, passou a ganhar títulos e apelidos curiosos pelo seu comportamento excêntrico, mas no fundo as mais próximas, sim, elas bondosamente reconheciam o papel fundamental de Laís na formação do grupo, perfil conciliador, entendedora das dores alheias melhor do que qualquer enfermeira ou mapeadora googleana de perfis esquizóides. Laís reconciliava amigas prontas para se darem tesouradas, juntava casais separados, lia a sorte nas borras do café e o futuro cartomante nos naipes do baralho. Mentira, não trazia o amor de volta em três dias. Não sempre, o que significa que uma propaganda no outdoor aqui poderia caracterizar publicidade enganosa e não queremos isso. Nem Laís nos pagou mensalidade de anúncio em 199,99 reais.
Leitora assídua de autores conturbados, poetas marginais e das periferias dos países mais ou menos periféricos, fazia uma boa ponte desse conhecimento tão desconhecido da sua geração brasileira aprendiz das versões traduzidas por Herbert Richers. Transpunha olhar para o céu e ver as estrelas que memorizava e tão natural para ela era recordar dos nomes, mas olhava para si mesma, em espelhinhos de bolsa ou espelhos pichados a batom ou canetas góticas nos banheiros e não saber o que via. Laís se viu só escudo naquela batalha, tão solitária era ela e suas bolinhas de piercing. Defendia-se mesmo de quem estava próximo e querendo ajudar.
De piercing em piercing perdido, logo logo eles podiam ficar quietos no contato com sua pele, porque era ela mesma quem não aparecia nos locais. Não tinha tempo ao cinema, não iria à festa da Fulana porque ela já não se sentia à vontade e não tinha mais idade para festa, dizia diretamente ou para si mesma - cansada de cuidar bêbados conhecidos ou desconhecidos - deixem meus piercings quietos!
Sua mãe estranhava ela mais para dentro da prisão domiciliar de seu quarto, ela que há meses nem para piercing mais saía de casa. Não pensem que ela andava com o rosto refletindo cada raio de sol. Não, os piercings eram discretos, uma orelha, um mamilo, uns mais para baixo. Mas nenhuma ida ao agulheiro para novas ideias ou renovações no exército dos piercings e suas artilharias de bolinhas perdíveis. Laís andava realmente cansada.
Para as aulas, na terceira graduação que iniciava, ela ainda ia. Os novos colegas estavam tão pouco familiarizados à moça que nem sabiam que ela perdia as bolinhas dos piercings. Ou, perdão, não perdia. Vocês entenderam. Mas a Laís não se entendia. O que havia crucialmente mudado? As pessoas eram as mesmas, ou pelo menos semelhantes, não estava no ser humano a resposta. Ou estava? Nas noites com ou sem lua, nas constelações da Cruzeiro do Sul, das Ursas ou da Fênix. Pássaro vindouro era o que ela precisava ser. Renascer praticamente, porque assim já não dava, não havia condições de suportar esse atordoante sofrimento. "Laís, pelo menos a janta, minha filha." "Já vou, mãe", respondia, mas não ia, não saía daquele quarto.
Foi então que estava prestes a tomar medidas drásticas: arrancaria todos os piercings. Uma revolução que não seria televisionada, nem pelo rádio. No silêncio daquela operação. Entretanto, ela nunca ocorreu, porque, na véspera do dia derradeiro, da tomada de coragem, na respiração em garganta profunda para essa decisão, veio um acontecimento marcante para servir de reviravolta.
Ela era magra, roupas escuras como as de Laís, cabelo escuro e com uma franjinha que tapava levemente o olho direito, em uma união com sobrancelha que nossa heroína jamais esqueceu. Ela apareceu pelo campus e era a primeira vez sem dúvida que Laís a viu naquela graduação chamada vida. Ela comprou um sanduíche e um suco e Laís, metódica que sempre foi, olhou cada sumiço de queijo e alface e o desaparecimento do líquido na garrafa até o final do conteúdo naquele fatídico intervalo. A informação que estava sendo destrinchada foi concebida em seguida pelos piercings: pessoal, nós vamos ficar.
Laís não mexeu nos piercings no dia seguinte, nem no outro, nem na semana posterior. Mas mexeu suas atitudes e foi de encontro àquela figura que lhe havia tomado o ápice da atenção. Conversaram sobre Beatles, esporte, aquecimento global e o que Gessinger acrescentaria em hora certa, crime e religião. Se traduziram da melhor maneira possível, da forma como estava inimaginável para Laís sair de seu cronograma frustrado rumo à derrocada definitiva de seus amáveis piercings. A melhor parte era essa: Júlia gostou dos enfeitados piercings.
E foi nesse trajeto de crescente amizade, Laís no curso de administração, Júlia na antropologia, que elas seguiram se encontrando entre intervalos e sextas que viravam sábados e, por que não? domingos. Laís voltando ao cinema e retornando a sair para comer alguma coisa, não só a janta que sua mãe insista nas repetidas batidas na porta pelas noites. Laís reencontrou velhos e novos amigos, tão novos que ainda nem tinham sido feitos, mas começavam seus laços. Júlia foi uma grande resposta. Laís olhava para o céu e não entendia com as estrelas a sorte que teve de encontrá-la, naquele intervalo de aula, naquele intervalo de tempo, no que ela realmente precisava, mais do que nunca, que digam os agradecidos piercings. Você os salvou, Júlia.
E Júlia merecidamente os conheceu. Foi os conhecendo e reconhecendo e totalmente acostumada um após o outro. Conheceu em salas fechadas, tateou em aulas experimentais em meio à natureza. Conheceu nas cabines de banheiro muito bem ocupadas. Deixaram iniciais naquele espelho e Laís já se entendia melhor com as novas manias com a beatlemaníaca. Entendia sua amiga em harmonia com os astros, com Freud, Carl Gustav Jung, Edgar Morin, Melanie Klein, Ana Mercês Bahia Bock e toda a sorte de autores e autoras. Entendia sobretudo a certeira tomada da boa paz quando, com ela ao lado, ombro a ombro, peito a peito, corações ritmando ora fortes, ora calmos, bem suaves, um cilindro com vida própria entre o indicador e o dedo médio e Paul McCartney e John Winston Lennon a repetir o que se propaga há anos: all you need is love.
Créditos rolando na tela. Intactos na formação inicial dessa Laís, que concluiu a sua terceira tentativa de graduação no ensino superior, diplomada em administração, as bolinhas dos piercings jamais, em momento algum, sumiram na presença de Júlia que, sim, arrepiava os quase imperceptíveis pelos em volta delas. As minúsculas esferas ainda desaparecem estranhamente em cotidianos sublimes, mas Laís, confidencialmente, garante que o percentual de vezes é cada vez mais verdadeiro. "Faz parte."
22/04/2020
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